MAÇARICO*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 –
16/04/2003)
Antonio Marçal,
menino filho de engomadeira, criado numa pobreza de fazer dó, ao lado da
irmãzinha Jatí, teve muitas vezes vontade de haver nascido morto ou de não ter
nascido. Além da vida de penúria que levava, e de ver a mãe naquele sacrifício
tremendo dia e noite, a lavar e engomar para poder sustentarem-se; a natureza
havia sido ingrata com ele. Braços e pernas exageradamente compridos e a cabeça
também disforme, chata e volumosa. E não tardou que lhe pusessem o apelido de
Maçarico. As canelinhas finas, à falta de alimento davam-lhe mesmo o aspecto
daquele esquisito pássaro das lagoas e margens dos rios. Tinha desgosto de tudo
isso. Mas na verdade o que mais lhe doía era ver a mãe e a maninha,
desconfiadas, de olhos compridos como quem espera alguma coisa que não chega. E
não era outra coisa senão a falta de tudo em casa. Medo de ter que dormir com
fome e acordar sem ter o que comer.
Maçarico saia pelo arruado a procurar pequenos
trabalhos, fazer mandados, limpar quintais, contanto que voltasse para casa com
alguma coisa.
O que ninguém via,
ninguém sabia, nem antevia era que naquele corpo franzino e na naquela cabeça chata,
estava uma inteligência privilegiada. Facilidade de aprender, vocação para a
música e dotado de uma voz agradável. Sem roupa par ir à escola, ficava muitas
vezes à janela da escola, pensativo e invejoso. Mas um dia, pensava, teria que
ir.
Observava o mundo dos
outros meninos, as casas onde viviam, as roupas bonitas, muitas delas que sua
mamãe engomava e aquilo lhe dava coragem e ânimo pra chegar até lá. Foi
crescendo mais, sempre magricela, até que conseguiu um modesto emprego de
serviçal numa casa de família. Esforçava-se como um desesperado para não perder
aquele rico emprego. Fazia os mandados correndo e cuidava de suas tarefas com o
maior zelo. À noite, depois do jantar, davam-lhe as sobras para sua mamãe e a irmãzinha.
Às vezes um pouco mais do que as sobras. No final das semanas recebia o salário
e corria para entregar à mãe.
-Toma mamãe, compra
alguma coisa para as duas. Estou comendo bem. E na hora das refeições fico a me
lembrar que talvez não tenham comida. E o que como, me amarga como fel. Mas um
dia, mãe, essa pobreza vai se acabar.
Já familiarizado com as palavras,
pediu a dona Maria das Graças para lhe ensinar a ler e escrever. E logo em
seguida, ficou imaginando e voltou a falar com dona Gracinha.
- Não tem jeito não,
nem me lembrei que não tinha dinheiro para comprar a cartilha, caderno e lápis.
O dinheiro que recebo é para mamãe e maninha. E foi saindo desconsolado.
- Vem aqui, maçarico.
Não fiques triste. Vou comprar tudo e te ensinar alguma coisa.
Maçarico começou a
chorar, chorar de alegria. O seu sonho começava a realizar-se. Apressava o desempenho
de suas tarefas para apegar-se à cartilha e a desenhar letras na lousa, onde
havia, na parte de cima, o ABC escrito e bem legível. Procurava imitar corretamente
a bonita letra de dona Gracinha. À noite levava para casa o seu material de estudo
e não perdia tempo. Não” andava” na aprendizagem. Voava como se quisesse percorrer
o mundo num vôo só. O progresso era tão rápido que resolveram mandá-lo à
escola. Trabalhos pela manhã e aulas à tarde. Inteligência e boa vontade lhe
sobravam. Tornara-se o melhor aluno de sua classe. Chegou o Natal e ganhou um
presente dos patrões. Um realejo de boca. A esta altura já não era mais o
Maçarico. Passou a ser Antonio Marçal. Mas até gostava de seu apelido.
- Chamem-me mesmo de
Maçarico. Estou tão habituado, que o apelido chega a me fazer falta. Antonio
Marçal nem parece que sou eu.
O realejo de boca
tinha sido uma dádiva da providência. Tinha facilidade em aprender músicas e
não tardaria em aprender várias coisas. E foi mesmo. Parecia até que as músicas
saiam do instrumento como por encanto.
- Vem cá Marçal. Como
aprendes com tamanha facilidade?
- Sei não. Trago as
músicas na cabeça e é só ir soprando no realejo. Acho que é assim, sabe dona
Gracinha, vou juntar dinheiro para comprar uma sanfona. Ora que bobagem esta minha.
Comprar uma sanfona. Morro de velho e não chego lá. Mas talvez arranje uma
emprestada. Nem isto. Com uma bichinha dessa iria ganhar dinheiro para comprar
mais o que comer.
E Maçarico, nestas
ocasiões, olhava distantes, absorto, como se aquilo fosse um sonho inatingível.
E dizia de si para si: - Quem nasce pobre, nasce marcado pelo destino. Com uma
sanfona, tocaria nas festas, nos bailes, nos forrós e poderia chegar a casa com
a bolada. Era bem certo o ditado. Deus
só dá toucinho a quem não tem cambito. Sabia que aprenderia logo. As músicas
estavam na cabeça e as notas estavam nas pontas dos dedos. Dona Gracinha e seu
Anízio ficaram se olhando, pensando na família de Maçarico e naquela
preocupação de Marçal. Não se esquecia da mãe e da irmãzinha, que em casa talvez
estivessem esperando pelo pouco que ele levava. Quando Maçarico despertou daquele
sonho de menino pobre, procuraram incentivá-lo e aumentar-lhe as esperanças.
- Quem sabe se antes
do que pensas, poderás comprar tua sanfona. Deus ajuda as pessoas boas.
- Uma sanfona
daquelas pequeninas. Nem queria mais pensar. “Maçarico, o sanfoneiro e cantador
de baião e de bonitas canções sertanejas”. Nem é bom ficar falando nessas
coisas impossíveis.
Maçarico
desdobrava-se nos estudos e no realejo de boca. Ao mesmo tempo procurava
aprender canções e tudo que chegasse aos ouvidos. A cabeça tinha espaço suficiente.
Para isto Deus a fizera daquele tamanho. Pouco mais de um mês depois, Maçarico
teve a grande surpresa. Uma sanfona das menores estava em suas mãos. Teve
vontade de pular com aqueles pernões finos, cantar, gritar, endoidecer de uma
vez. Mas por instantes, Maçarico ficou pensativo e meio tonto: - E se não
tivesse jeito para tocar sanfona. Realejo de boca ia bem, pois soprava as músicas
e o bichinho repetia. Com os dedos era outra coisa. Poderia ser um fiasco dos
diabos e Deus que o livrasse de acontecer um desastre. Com a sanfona não mão,
estava com medo de começar. Poderia ser um fracasso. E foi para longe,
enfiou-se por baixo do velho cajueiro, de onde ninguém ouvisse o som da bicha.
Abrira-a, apreensivo, meio abobalhado. Como seria o som da bichinha. E antes de
começar abraçou-se com ela, deu-lhe uma beijoca, olhou-a por todos os lados,
examinou os teclados, firmou-a em cima da perna e puxou o fole. Quase cai de
costas. Não, não era possível que aquilo estivesse acontecendo. Bem que a mãe e
a irmã poderiam estar ali assistindo tamanha felicidade. Fez alguns ensaios e
notou que não era tão difícil como supunha. A coisa dependia de acertar as
notas. O certo é que oito dias depois já solava qualquer coisa. Foi ao
sanfoneiro Idalino tomar algumas lições.
– Isso, menino é pra
quem tem bons dedos e bom ouvido. Mas vale a pena tentar. Tem uma coisa a teu favor,
a feiúra. É difícil ver um bom músico bonitão. Todos são de minha marca e da
tua. Começa como estou de ensinando e irás longe. Tens que ter bom ouvido.
Tocar por música não tem graça. A melodia sai do ouvido da gente.
Maçarico botou a
sanfona de lado e se foi. Meses depois já tocava o que queria. Deu uns ensaios
gratuitos para ser conhecido e começou a cobrar. Festas, bailes de casamento e
batizados, aniversários e mais o que aparecesse, lá estava Maçarico, tocando e
cantando.
- O bicho é feio, mas
é um cobra... Dizem que já arranjou até namorada.
- É isto mesmo,
Abdias, mulher é bicho arreado por canto e música...
Em casa de Maçarico
não faltava mais nada. Quem visse a mãe e a irmã não acreditaria que fossem as
mesmas: Sadias e coradas, tranqüilas. Maçarico era cuidado como se fosse um
santo, aliás, muito mais, pois enquanto apelara para a santada, à fome era a mesma
ou pior. Nem feijão, nem farinha... Com Maçarico, a mesa era cheia do
essencial.
- Reza meu irmão, mas
cuida na tua vida. Toma o exemplo da casa do Maçarico. Quanto mais rezavam,
mais o pão encolhia...
Em 1987.
*O conto pertence ao
livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.
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