CINIRA*
João Henriques da
Silva
(In Memoriam
20/09/1901 – 16/04/2003)
Cinira, menina de cidade do litoral,
não conhecia o sertão; terra que não lhe saia da memória. Moça de 18 anos
completos, educada em colégio de freira; saiu dali com uma visão mística das
coisas.
Ouvia falar nas grandes secas, nas
retiradas, em gente com fome, andando pelos caminhos com rostos murchos, as
mãos descarnadas, fugindo de uma desgraça maior. Por mais que procurasse se
distrair e esquecer, a imagem daquelas coisas tristes que não saía do pensamento.
E como gostaria de ajudar, de fazer
alguma coisa pelas crianças, pelos velhinhos que não tinham o que comer nem
onde ficar.
Perguntava a si mesma porque morava
gente numa terra assim tão ingrata, porque saiam de lá e
Voltavam
sempre. Que destino era aquele, que atração era aquela. E achava que não
poderia haver tristeza maior do que aquela de uma mãozinha magra, estendida
pedindo o que comer. Sentia abaladas as suas convicções religiosas e tudo sobre
os poderes divinos aprendidos no colégio.
Como poderia ser, gente morrendo de
fome só e só por falta de chuvas, chuvas que caiam demais na sua cidade, chuvas
que sobravam, como se não tivesse outro lugar para cair.
Queria conhecer o sertão, ver de
perto para poder entender.
Talvez o Deus de lá fosse outro, ou
se fosse o mesmo tivesse suas razões para castigar duramente a gente do sertão.
A gente e os bichos também. E que culpa poderiam ter as plantas, para que as
deixassem também morrer de fome e sede.
Tudo lhe parecia muito confuso. A
sua crença, a sua fé havia se dependurado por um fio que poderia se partir a
qualquer momento.
Bastava-lhe essa má repartição das
chuvas que gerava tanta desgraça, para não entender as coisas da criação. Sob o
mesmo céu, com o mesmo sol a iluminar a terra; havia tais disparates.
Porque, então, zonas sem chuvas, sem
rios perenes, quando a produção de alimentos dependia disso? Alguma coisa
estava errada. O seu Deus, segundo aprendera, nunca teve intenção de castigar
ninguém.
E via que existiam muitas coisas
erradas e contraditórias, como o mundo tivesse sido feito por um boboca,
qualquer.
Que Nosso Senhor a perdoasse
daquelas heresias, mas lhe doía demais saber que alguém sofria; se desesperava;
muitas vezes apenas, por falta de uma chuva na floração das lavouras
sertanejas. Enquanto isso vinha notícia de chuvas arrasadoras noutras regiões.
Cinira ficava pensando noutras coisa
injustificável, no seu entender. Por que não eram doces as águas do mar, por
que todas as mulheres não eram bonitas, por que essa necessidade horrível de
comer, por que havia cobras venenosas ou de qualquer espécie, por que o amor se
tornava assassino, por que o egoísmo, por que as terras não eram de todos.
E iria muito longe se quisesse rever
o rol das coisas tortas.
Cinira sonhava com o sertão.
Desejava conhecê-lo. Saber como era mesmo. Sentir o calor do sol e da sua
gente.
Dr. Agrício e sua esposa Maria José,
antes das festas do padroeiro de Santo Antônio, de sua cidade na Paraíba,
sempre iam ao Recife fazer compras e desparecer um pouco.
Cinira casualmente encontrou-os.
Irmã de uma ex-colega do Sr. Agrício, quando fazia faculdade em Pernambuco;
conhecera-o quando era ainda uma menina-moça.
Aquele encontro dava-lhe a
oportunidade de tornar o seu desejo uma realidade. Pois sabia que eram do
Sertãozão brabo, onde Judas tinha perdidos as botas. Não perdeu tempo. Entrou logo
no assunto como alguém que estava perdido e encontrou o caminho. Contou de sua
vontade louca de conhecer terras assoladas pelas secas e não se fez de rogada,
quase se convidando ou forçando um convite.
Maria José por simples deferência,
fez-lhe o convite. Não estava gostando da intimidade, dos gostos e daquela
alegria toda de Cinira.
Aquilo lhe cheirava às coisas
passadas. Moça da cidade, andando sozinha, quem sabe se não era uma doidinha; e
não tinha marido para aquele tipo de convivência. Mas, Cinira aceitou o convite
e segurou longamente a mão do Dr. Agrício, num agradecimento que parecia mais
uma entrega.
Maria José sentiu-se perdida.
Gentileza às vezes dá nisso. Quis ser educada, boazinha e agora estava
assustada.
- Cinira, você não conhece o sertão.
É uma terra triste sem atrativos, onde se vive porque não há outro jeito.
Cuidado para não se arrepender amargamente. Sair de uma cidade como esta para embarafustar
pelo sertão brabo, é uma temeridade.
- Ora, dona Maria José, já estou
cansada disso aqui. Festas, passeios, cinema, praia, namorados sem perspectiva
de casamento, só para passar o tempo, já enjoa. Preciso conhecer outros
ambientes, outras pessoas, outros tipos de diversões ou como já lhe disse: pretendo
contemporizar com gente sofrida dos Sertões e tentar ajudá-los ou sofrer com
eles.
O balanço do corpo, aquela boca vermelha,
aqueles olhos buliçosos, aquela maneira de acompanhar as palavras dando
palmadinhas no Dr. Agrício, engasgava Maria José. Via que o seu adorável marido
estava gostando daquele gingado e da idéia do convite.
- É um prazer, Cinira, levá-la. Mais
não para passar apenas uns diazinhos de nada. Prepare-se para uma boa temporada.
Além do mais é uma companhia para Maria José. Viu como ela gostou? Foi logo a
convidando. Apenas está receosa de que poderá não gostar.
- É sim! “Mas não fique sonhando demais”. Maria José
tinha cutucado o cão com vara curta. “Essa espevitada vai me dar trabalho”. Mas
tiro-lhe o sarro. Pelo jeito parece uma dessas mocinhas soltas e que gosta de
bons passatempos. E o Agrício está todo cheio de vida. Parece que nem mais me
vê... Está botando as unhas de fora. Imagino quando vem sozinho o que não
pinta. Com essas sirigaitas.
Está certo, Cinira. Daqui a dois dias. Não
pense que vai voltar logo. Muito prazer.
Maria José forçou uma despedida
alegre.
Três dias depois estavam nas
Aroeiras. Maria José acompanhava a conversa, os gestos, os requebros de Cinira.
A festa começou. Dos sítios, das fazendas, de todos os cantos chegavam gente.
Um novenário em homenagem a Santo
Antonio, por sinal o Santo casamenteiro a quem Maria José tinha especial
devoção. A sua felicidade matrimonial, devia-se a ele. E todo o dia levava
dinheiro e flores que colocava aos pés do santo milagroso e protetor das
vitalinas, sobretudo. E merecia. Não era brincadeira tirar uma moça velha do
barricão. Precisava ter muita força. Mas, foi não foi, desencalhava uma, a
troco de muita vela, muita fita, uns cobrezinhos e reza forte.
Santo Antonio não queria nada
daquilo. Fazia para se divertir e por comprazer.
Cinira não era nada daquilo que
Maria José pensava. Era uma moça de muito juízo. Divertia-se era verdade, mas
não era de se entregar como uma doidivana. Namorava sem malícia e ninguém que
se metesse a cavalo do cão.
Adorou o sertão, na sua simplicidade;
extasiava-se com o céu estrelado, com as noites de luar, com os campos, o canto
dos pássaros, o gado solto tocando chocalho, os rebanhos de cabras e de
ovelhas, e o povo sadio, franco, sempre risonho, como se a vida lhe fosse
sempre um dia de festa.
Era a penúltima noite de novenário,
dedicado ao santo protetor das moças que se atrasava no casamento, e para quem comprava
mais fitas e se acendiam mais velas.
Cinira, apesar de impressão que
causava a Maria José, era uma menina inteiramente diferente, a menos que
estivesse fingindo.
Talvez fosse o ambiente novo, onde estava
com aquela gente simples e sincera do sertão. Conservava apenas o riso
constante, a alegria de quem se sente bem. Assistia as festas de rua e da
igreja em companhia de Maria José e algumas moças a quem ia sendo apresentada.
Conhecia o sertão num período do
qual não podia ter ao menos noção ligeira das situações anormais, dos anos de
seca.
E via, então, que o sertanejo tinha
razão sobrada de voltar a sua terra, depois dos rebentões secos que
martirizavam a região.
Não se via ninguém triste, nem com
sinal de pobreza. Dançava nos olhos de todo mundo uma alegria que Cinira desconhecia.
E ficava cada vez mais admirada daquela gente animada e corajosa que não tinha
medo de desgraça. Convencia-se de que o sertão não era aquela miséria que
trazia desenhada na sua memória.
As coisas tinham um sabor diferente.
O ar que respirava tinha um cheiro gostoso de virgindade, um cheiro bom de uma
natureza virgem. A cidade não cheirava a fuligem que envenenava o ambiente.
Aquilo sim, era vida ao natural.
Olhava o semblante saudável das
velhinhas quase centenária, que o tempo não conseguia amarrotar. Ali não havia
falsificação. Não necessitavam de rebocar a cara e dar-lhe diariamente uma
pintura nova para esconder a buraqueira e a palidez das coisas mal conservadas.
E imagina como seria o amor daquela
gente. Deveria ser como uma fruta rara que se conserva entre verde e madura,
que só será colhida com o mesmo sabor e o mesmo perfume.
Paulo Sarmento, com mais alguns
passos transpunha a casa dos trinta. Por muito considerado o mais requintado
pelas meninas de sua terra. Namorava por passatempo.
Metido a rico, com um físico
atraente, ia sempre enganando a todas. Depois, nem as mulatas da ponta da rua,
confiava nele.
Era-lhe inútil tentar. Sentiu-se só
e triste. Durante a festa, sentiu-se perdido. Festa sem namoro é como a gaiola
sem passarinho. Dá idéia de solidão de abandono. Paulo Sarmento não se
conformava. Qualquer cafuçu, com a sua namorada, misturando risos, alegrias,
promessas de amor, misturando festas, e ele em estado de desgraça. Não
adiantava espichar os olhos pra ninguém. Aquilo supunha era uma conspiração já pensava
em largar-se para a fazenda, enterrar a cara por lá. Sumir-se, enfim. Ia a
igreja assistir o novenário.
Olhava pra Santo Antonio, ornado de
fitas e quase tinha raiva da sua impassividade.
Devia estar medito no “coloio”. Mas,
findou reconhecendo que havia andando mal. A culpa era sua e Santo Antonio
fazia muito bem em proteger as suas devotas.
Pediu perdão ao Santo. Bem que
podia, aliás, ajudá-lo naquele descompasso, naquela fossa em que estava.
Devia mesmo haver safadeza. Os
pensamentos tumultuavam. Que se danasse tudo. E não fazia mal que o mundo
pegasse fogo e só deixasse as cinzas. Lembrou-se que estava na igreja. Podia
receber um castigo maior.
Perdoa Santo Antonio. Mas coloque-se
no meu lugar. Fiz bobagem, mas a culpa não foi minha. Bem que me podiam ter
dado melhor compreensão. Fazem as coisas erradas e o pobre diabo é quem paga.
Paulo Sarmento viu Maria José do
outro lado da igreja. Estava acompanhada. Era Cinira. Um raio de esperança
começou a passar dentro dele. Moça de fora certamente não sabia do seu passado
idiota.
O diabo é que podia ser casada.
Sentiu um frio na espinha. Antes que a novena terminasse colou-se no adro da
igreja. Cumprimentaria Maria José. Perguntaria pelo Dr. Agrício. Esperaria uma
apresentação. Agora era pra valer. Trinta anos nas constas de um sujeito já
começa a ser uma brincadeira de mau gosto.
O tempo é um vagabundo safado. Não
espera por seu ninguém. Dana-se pela estrada do infinito, deixando o sujeito
com os seus problemas, com as suas angustias, com os dias diminuindo,
envelhecendo feito um idiota.
Paulo, inquieto, numa expectativa
mortificante, esperava. Poderia ser um coice na sua sorte. Os pares de
namorados iam passando juntinho dele e cada um, o deixando cada vez mais
revoltado contra essa porcaria que se chama destino.
Maria José não aparecia. Seria uma
coisa proposital? Poderia ter saído pela lateral. O diabo não perde tempo para
fazer uma das suas. Anda de olho nos infelizes para torná-los mais infelizes
ainda. Quem o inventou já foi com essa intenção. Aliás, ele também não tinha
culpa. O que não se podia entender era alguém ter tido a maldade de criar o
diabo e só para com o fim de fazer o mal, meter o bedelho na vida de todo
mundo. E ainda tem quem acha que a criação do universo foi à maravilha das
maravilhas. Afinal, o diabo desta feita não havia se metido. Foi até bonzinho.
Maria José apareceu.
- Boa noite dona Maria José, Dr.
Agrício vai bem?
- Ficou atendendo clientes.
Apresentou-lhe a amiguinha. Cinira. Do Recife. Veio passar uma temporada em Aroeiras. Queria
conhecer o sertão...
- Com muito prazer, senhorita. Está
em ótima companhia. Espero que não tenha ficado desapontada com a nossa terra.
- Lugar pequeno, com pouca coisa
para ver. Era o meu maior desejo. Estou encantada. Gente boa, alegre, corajosa,
animada. E a beleza dos campos, do céu estrelado, do luar.
- Aqui se vive e se respira o que há
de mais puro e saudável. E essa festa com tanta moça bonita, rapazes
comunicativos, cada um com a sua namorada, como se fosse às vésperas de uma
grande noite de núpcias.
- Para os que têm sorte. E,
francamente, tenho inveja da felicidade dos outros. Ando até com desgosto de
viver. Pode ser falta de jeito ou burrice minha.
- Talvez apenas, falta de
oportunidade ou desinteresse. A menos que haja coisa fora de minha percepção.
Maria José interferiu:
- Paulo é uma ótima criatura. Pode
ser que se considere acima do nível das moças da terra. Moço ainda, com boa
fortuna nas mãos, não acredito que a culpa seja das moças.
Pararam na casa do Dr. Agrício.
Cinira também não tinha compromisso. Mas não desejava namoro passa tempo. O que
pretendia, enfastiada da vida fútil da cidade, era simplesmente, casar-se. Ter
o seu lar, o seu companheiro e se pudesse, morar no sertão, com aquela tranqüilidade
que até então desconhecia.
Poderiam dar umas voltinhas pela
festa.
- Paulo Sarmento! Cinira é uma moça
honesta, de confiança. Um belo par, aliás.
Caiu a mosca no mel. Era justamente
isso que desejam os dois. Embora não fosse usual. Cinira tomou o braço de Paulo
e os dois enfrentaram os comentários.
- Olha aí, menina. O Sarmento com
quem anda. Aquela mocinha do Recife. De certo ela não o sabe quem é. Vai
enganar a coitada.
- Enganar coisa nenhuma. Aquilo deve
ser escolada. Quando anda por aqui já é para ver se pega algum besta, um idiota
qualquer. Aquilo já se perdeu por lá, quem sabe. Olha aí, já anda de braço
entrançado.
- É bom até que seja assim. Ele só
queria enrolar as moças daqui. Enganou a todas. É fazendeiro, sabe tapar
buracos. Deixa pra lá. Um safadório. Chupa-lhe o dinheiro, bota-lhe uns galhos
e está feita a festa.
Era a Pureza que fazia esses
comentários. Velhota, desenganada, em sua vida amorosa, frustrada, encostada,
criando teia de aranha como uma casa abandonada. Sempre que podia desandava a
lenha em Santo Antonio. O
dinheiro, as fitas, as velas votivas, não foram levadas na menor consideração.
- Pifeza, pura pifeza.
Disso resultou-lhe mais uma lição.
Não se deve confiar em todo mundo. Mesmo canonizado.
Menos de trinta dias depois da
festa, Cinira estava noiva e de casamento marcado, Paulo Sarmento não queria
mais conversa. Não passaria outro novenário sozinho. Era negócio pra doido.
As moças do lugar iam ver como ia
viver Cinira. Boa casa, vestidos e jóias para fazer inveja. E amor para
esbanjar.
- Estão vendo aí? O traste vai mesmo
casar com a lambisgóia de Recife. O bicho está reformando e pintando a casa. Se
tivesse noivado com uma moça daqui, iria morar na casa velha, sem reformar e
sem pintar.
Dona Pureza se encarregava,
desapontada, tocava fogo na canjica e se lamentava também. A vida é pior do que
sovaco de aleijado. Com um tipão daquele não fazia questão nenhuma de me
juntar. O resto ficava por conta de Santo Antonio, que não deu sorte. Mais não
tem nada não. O diabo há de me ajudar a botar chifre naquela bichota. Estou por
tudo. Não pense ninguém que vou morrer de pernas cruzadas. Um dia ele se enjoa
da farinha de casa e vai me encontrar pela frete. Vou me cuidar e a sabidinha
que se cuide. Se for pecado ou não, isso não é comigo. Não me permitiram o
caminho certo, pois, então, tomo qualquer vereda. Qualquer caminho dá da venda.
Apesar da ciumada a festa do
casamento rolou animada até o amanhecer.
Cinira fez questão de casar-se ali
mesmo. Dizia que queria casar-se também com o sertão de quem há tempo já era
noiva. A família compareceu. Gente fina e cheia das granas.
A inveja aumentou. Dona Pureza
sentiu-se tonta. Teve vontade de desistir de seus planos. “Essa gente não
merece isso”. Mas o diabo já andava rondando. Era sua profissão. E o tempo foi
passando, passando.
Dona Pureza observava o casal. Já não
andavam tão agarradinhos. “É. A coisa está esfriando”. E começou a se chegar.
Animava as visitas. Queria intimidade, para disfarçar seus intentos. Não era
feia de cara, nem de corpo. Paulo Sarmento começava a perceber os olhares
quentes, furtivos e convidativos de Dona Pureza.
Cinira caiu na besteira de ir a
Recife passar uns dias. Dona Pureza não perdeu tempo. Pouco se incomodava que
as más línguas falassem. Estava por conta do diabo. E tudo terminou como ela
queria. O difícil, agora, era só controlar quando a Cinira chegasse. Se pelo
menos o fogo se apagasse. Mas não contava com isso. Levara a vida toda juntando
lenha. Lenha do sertão, de alta caloria. Tinha que dar um jeito. O difícil era
começar. Ela sustentou-se um pouco, embora noites inteiras sem um sumaço de
sono.
Inesperadamente a coisa tornou-se
mais difícil do que ela pensava. As suas rondas não rendiam. Notava também que
Sarmento não se interessava mais. Começou a raciocinar. Tinha soltado o
passarinho na seara alheia. Cinira lhe parecia uma menina decente. Tinha sido
tentação do diabo. Sujeito safado. Em todo caso estava realizada. Só era pura
no nome. Bastava esta satisfação íntima. E findou dando graça ao diabo. Bem que
o bicho preto tinha suas boas artimanhas. E quem sabe se mais adiante não lhe
faria nova surpresa. Não lhe acendeu uma vela porque sabia que o diabo não
tolera cheiro de vela e laço de fitas, muito menos. Procurou controlar-se. Deixava
a sua sorte por conta do tempo. Mas inesperadamente começou a agoniar-se.
Sentia coceiras estranha. Devia ser o capiroto atiçando o fogo. Tomou uma
resolução. Suicidar-se. Acabar de uma vez com aquela inquietação.
Arsênico, sim, arsênico. Coisa ligeira.
Foi ao comércio pediu formicida. Matar as formigas, que estavam cortando o seu
pé de Mangerona. Mas logo de volta jogou-o fora. Burrada, pura burrada. Vendeu
o que tinha e caiu fora. Terra pequena é um pinícula. Não se pode nem ao menos
cumprir sagrados mandamentos.
Dona Pureza teve sorte. Casou-se. É
verdade que foi com um pedreiro. Soube escolher, ou antes, teve sorte, Sabia
usar argamassa para os retoques. Perito em tapar a buraqueira... Nunca teve
filho. Melhor assim. Cuidava apenas da casa e das ferramentas do pedreiro. O
dinheiro que levava emprestou à juros. Não mais se queixou da vida. Quando lhe
deu saudades voltou a Aroeiras. Apresentou o marido. Homem rústico, mas de boas
conversas.
Aproveitou o ensejo e foi com o
marido à igreja. Queria que Santo Antonio a visse. O santo estava coberto de
fitas. De fora só aparecia a carinha do Zé Promessa. A bandeja, a seus pés, com
algumas moedas. Teve pena de seu vigário. O padroeiro não estava colaborando. Colocou
algumas moedas na bandeja e comentou: - Pobres moças. Tanto laços de fita sem
nenhum enlace. Vai, Santo Antonio ser bonzinho com as meninas. Elas estão
envelhecendo. Tu não sabes o que é uma mulher depois dos trintas. Os
desenganos, as ansiedades, as doidices quer pode fazer. Conversa comigo que te
conto. Fui pura até quando pude. Não fui eu quem caminhou para entrega. Foram
as forças incontroláveis dos desejos e das insatisfações que me arrastaram. Se
isso é pecado perdoa-me. Minha alma e meu coração continuam puros. E assim são
todas as mulheres que se sentiram frustradas. Olha Santo Antonio, cada fitinha
que te oferecem ou cada vela que te acendem, já é um incêndio de que a vida da
gente começa a doer, que o corpo começa a pedir e a inquietar-se. E foi Deus
que fez a gente assim. Não há nada de imoral. Apenas a sociedade exige, antes
da doação, um pouco de água benta ou um compromisso oficial.
E será que quem os celebra tem mesmo
moral?
Dona Pureza não olhou para traz.
Santo Antonio não entendeu nada. E lá se ficou todo coberto de fitas como se
fosse uma pastorinha.
- Velha idiota. Fez do que fez e vem
com essa longo-longa pra cima de mim. Não sei quem enfiou no quengo dessas
bestas que sou Santo casamenteiro. Uma ova! Quem quiser se vire ou faça como a
santinha da Dona Pureza. Não quero fitas nem velas. Um dinheirinho vá lá.
Empresto a seu vigário, sem juros e sem prazo.
Cinira e Sarmento tomaram uma
resolução. Aumentar o ciclo de amizades, visitando os fazendeiros das
vizinhanças. O primeiro contato seria em sua casa. Cinira tinha jeito para os
arranjos. Paulo Sarmento fez os convites. Seria um domingo de congraçamento. E
nesse dia a casa encheu-se. Coronel Justiniano e a família chegaram cedo.
Cinira ficou encantada com os olhos
verdes da filha única, na moldura daquele rosto bonito e alegre; apagara-se
diante dela. Só mesmo o clima sertanejo poderia conservar aquelas feições de
santa. O brilho de seus olhos devia ser uma mistura de raios de sol e raios de
luar ou uma gota de orvalho numa manhã luminosa. O corpo, decerto teria sido delineado
para modelo de expressão corporal. Desejaria, por isso, ter nascida no sertão, à
terra das mulheres incomparáveis, onde mesmo as que não são bonitas são atraentes.
Em casa de Paulo Sarmento, foi um
dia inesquecível para Cinira e os convidados. Daí por diante, as visitas, as
reuniões, se sucederam, as amizades cresceram e já havia ansiedade na espera. Era
uma forma de conviver, com aquela franqueza sertaneja, onde se contava os fatos
pitorescos da região ou da vida de cada um.
*Este
conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.
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