quinta-feira, 11 de setembro de 2014

CINIRA

CINIRA*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)


            Cinira, menina de cidade do litoral, não conhecia o sertão; terra que não lhe saia da memória. Moça de 18 anos completos, educada em colégio de freira; saiu dali com uma visão mística das coisas.
            Ouvia falar nas grandes secas, nas retiradas, em gente com fome, andando pelos caminhos com rostos murchos, as mãos descarnadas, fugindo de uma desgraça maior. Por mais que procurasse se distrair e esquecer, a imagem daquelas coisas tristes que não saía do pensamento.
            E como gostaria de ajudar, de fazer alguma coisa pelas crianças, pelos velhinhos que não tinham o que comer nem onde ficar.
            Perguntava a si mesma porque morava gente numa terra assim tão ingrata, porque saiam de lá e
Voltavam sempre. Que destino era aquele, que atração era aquela. E achava que não poderia haver tristeza maior do que aquela de uma mãozinha magra, estendida pedindo o que comer. Sentia abaladas as suas convicções religiosas e tudo sobre os poderes divinos aprendidos no colégio.
            Como poderia ser, gente morrendo de fome só e só por falta de chuvas, chuvas que caiam demais na sua cidade, chuvas que sobravam, como se não tivesse outro lugar para cair.
            Queria conhecer o sertão, ver de perto para poder entender.
            Talvez o Deus de lá fosse outro, ou se fosse o mesmo tivesse suas razões para castigar duramente a gente do sertão. A gente e os bichos também. E que culpa poderiam ter as plantas, para que as deixassem também morrer de fome e sede.
            Tudo lhe parecia muito confuso. A sua crença, a sua fé havia se dependurado por um fio que poderia se partir a qualquer momento.
            Bastava-lhe essa má repartição das chuvas que gerava tanta desgraça, para não entender as coisas da criação. Sob o mesmo céu, com o mesmo sol a iluminar a terra; havia tais disparates.
            Porque, então, zonas sem chuvas, sem rios perenes, quando a produção de alimentos dependia disso? Alguma coisa estava errada. O seu Deus, segundo aprendera, nunca teve intenção de castigar ninguém.
            E via que existiam muitas coisas erradas e contraditórias, como o mundo tivesse sido feito por um boboca, qualquer.
            Que Nosso Senhor a perdoasse daquelas heresias, mas lhe doía demais saber que alguém sofria; se desesperava; muitas vezes apenas, por falta de uma chuva na floração das lavouras sertanejas. Enquanto isso vinha notícia de chuvas arrasadoras noutras regiões.
            Cinira ficava pensando noutras coisa injustificável, no seu entender. Por que não eram doces as águas do mar, por que todas as mulheres não eram bonitas, por que essa necessidade horrível de comer, por que havia cobras venenosas ou de qualquer espécie, por que o amor se tornava assassino, por que o egoísmo, por que as terras não eram de todos.
            E iria muito longe se quisesse rever o rol das coisas tortas.
            Cinira sonhava com o sertão. Desejava conhecê-lo. Saber como era mesmo. Sentir o calor do sol e da sua gente.
            Dr. Agrício e sua esposa Maria José, antes das festas do padroeiro de Santo Antônio, de sua cidade na Paraíba, sempre iam ao Recife fazer compras e desparecer um pouco.
Cinira casualmente encontrou-os. Irmã de uma ex-colega do Sr. Agrício, quando fazia faculdade em Pernambuco; conhecera-o quando era ainda uma menina-moça.
            Aquele encontro dava-lhe a oportunidade de tornar o seu desejo uma realidade. Pois sabia que eram do Sertãozão brabo, onde Judas tinha perdidos as botas. Não perdeu tempo. Entrou logo no assunto como alguém que estava perdido e encontrou o caminho. Contou de sua vontade louca de conhecer terras assoladas pelas secas e não se fez de rogada, quase se convidando ou forçando um convite.
Maria José por simples deferência, fez-lhe o convite. Não estava gostando da intimidade, dos gostos e daquela alegria toda de Cinira.
            Aquilo lhe cheirava às coisas passadas. Moça da cidade, andando sozinha, quem sabe se não era uma doidinha; e não tinha marido para aquele tipo de convivência. Mas, Cinira aceitou o convite e segurou longamente a mão do Dr. Agrício, num agradecimento que parecia mais uma entrega.
            Maria José sentiu-se perdida. Gentileza às vezes dá nisso. Quis ser educada, boazinha e agora estava assustada.
            - Cinira, você não conhece o sertão. É uma terra triste sem atrativos, onde se vive porque não há outro jeito. Cuidado para não se arrepender amargamente. Sair de uma cidade como esta para embarafustar pelo sertão brabo, é uma temeridade.
            - Ora, dona Maria José, já estou cansada disso aqui. Festas, passeios, cinema, praia, namorados sem perspectiva de casamento, só para passar o tempo, já enjoa. Preciso conhecer outros ambientes, outras pessoas, outros tipos de diversões ou como já lhe disse: pretendo contemporizar com gente sofrida dos Sertões e tentar ajudá-los ou sofrer com eles.
 O balanço do corpo, aquela boca vermelha, aqueles olhos buliçosos, aquela maneira de acompanhar as palavras dando palmadinhas no Dr. Agrício, engasgava Maria José. Via que o seu adorável marido estava gostando daquele gingado e da idéia do convite.
            - É um prazer, Cinira, levá-la. Mais não para passar apenas uns diazinhos de nada. Prepare-se para uma boa temporada. Além do mais é uma companhia para Maria José. Viu como ela gostou? Foi logo a convidando. Apenas está receosa de que poderá não gostar.
            - É sim!  “Mas não fique sonhando demais”. Maria José tinha cutucado o cão com vara curta. “Essa espevitada vai me dar trabalho”. Mas tiro-lhe o sarro. Pelo jeito parece uma dessas mocinhas soltas e que gosta de bons passatempos. E o Agrício está todo cheio de vida. Parece que nem mais me vê... Está botando as unhas de fora. Imagino quando vem sozinho o que não pinta. Com essas sirigaitas.
 Está certo, Cinira. Daqui a dois dias. Não pense que vai voltar logo. Muito prazer.
            Maria José forçou uma despedida alegre.
            Três dias depois estavam nas Aroeiras. Maria José acompanhava a conversa, os gestos, os requebros de Cinira. A festa começou. Dos sítios, das fazendas, de todos os cantos chegavam gente.
            Um novenário em homenagem a Santo Antonio, por sinal o Santo casamenteiro a quem Maria José tinha especial devoção. A sua felicidade matrimonial, devia-se a ele. E todo o dia levava dinheiro e flores que colocava aos pés do santo milagroso e protetor das vitalinas, sobretudo. E merecia. Não era brincadeira tirar uma moça velha do barricão. Precisava ter muita força. Mas, foi não foi, desencalhava uma, a troco de muita vela, muita fita, uns cobrezinhos e reza forte.
            Santo Antonio não queria nada daquilo. Fazia para se divertir e por comprazer.
            Cinira não era nada daquilo que Maria José pensava. Era uma moça de muito juízo. Divertia-se era verdade, mas não era de se entregar como uma doidivana. Namorava sem malícia e ninguém que se metesse a cavalo do cão.
            Adorou o sertão, na sua simplicidade; extasiava-se com o céu estrelado, com as noites de luar, com os campos, o canto dos pássaros, o gado solto tocando chocalho, os rebanhos de cabras e de ovelhas, e o povo sadio, franco, sempre risonho, como se a vida lhe fosse sempre um dia de festa.
            Era a penúltima noite de novenário, dedicado ao santo protetor das moças que se atrasava no casamento, e para quem comprava mais fitas e se acendiam mais velas.
            Cinira, apesar de impressão que causava a Maria José, era uma menina inteiramente diferente, a menos que estivesse fingindo.
            Talvez fosse o ambiente novo, onde estava com aquela gente simples e sincera do sertão. Conservava apenas o riso constante, a alegria de quem se sente bem. Assistia as festas de rua e da igreja em companhia de Maria José e algumas moças a quem ia sendo apresentada.
            Conhecia o sertão num período do qual não podia ter ao menos noção ligeira das situações anormais, dos anos de seca.
            E via, então, que o sertanejo tinha razão sobrada de voltar a sua terra, depois dos rebentões secos que martirizavam a região.
            Não se via ninguém triste, nem com sinal de pobreza. Dançava nos olhos de todo mundo uma alegria que Cinira desconhecia. E ficava cada vez mais admirada daquela gente animada e corajosa que não tinha medo de desgraça. Convencia-se de que o sertão não era aquela miséria que trazia desenhada na sua memória.
            As coisas tinham um sabor diferente. O ar que respirava tinha um cheiro gostoso de virgindade, um cheiro bom de uma natureza virgem. A cidade não cheirava a fuligem que envenenava o ambiente. Aquilo sim, era vida ao natural.
            Olhava o semblante saudável das velhinhas quase centenária, que o tempo não conseguia amarrotar. Ali não havia falsificação. Não necessitavam de rebocar a cara e dar-lhe diariamente uma pintura nova para esconder a buraqueira e a palidez das coisas mal conservadas.
            E imagina como seria o amor daquela gente. Deveria ser como uma fruta rara que se conserva entre verde e madura, que só será colhida com o mesmo sabor e o mesmo perfume.
            Paulo Sarmento, com mais alguns passos transpunha a casa dos trinta. Por muito considerado o mais requintado pelas meninas de sua terra. Namorava por passatempo.
            Metido a rico, com um físico atraente, ia sempre enganando a todas. Depois, nem as mulatas da ponta da rua, confiava nele.
            Era-lhe inútil tentar. Sentiu-se só e triste. Durante a festa, sentiu-se perdido. Festa sem namoro é como a gaiola sem passarinho. Dá idéia de solidão de abandono. Paulo Sarmento não se conformava. Qualquer cafuçu, com a sua namorada, misturando risos, alegrias, promessas de amor, misturando festas, e ele em estado de desgraça. Não adiantava espichar os olhos pra ninguém. Aquilo supunha era uma conspiração já pensava em largar-se para a fazenda, enterrar a cara por lá. Sumir-se, enfim. Ia a igreja assistir o novenário.
            Olhava pra Santo Antonio, ornado de fitas e quase tinha raiva da sua impassividade.
            Devia estar medito no “coloio”. Mas, findou reconhecendo que havia andando mal. A culpa era sua e Santo Antonio fazia muito bem em proteger as suas devotas.
            Pediu perdão ao Santo. Bem que podia, aliás, ajudá-lo naquele descompasso, naquela fossa em que estava.
            Devia mesmo haver safadeza. Os pensamentos tumultuavam. Que se danasse tudo. E não fazia mal que o mundo pegasse fogo e só deixasse as cinzas. Lembrou-se que estava na igreja. Podia receber um castigo maior.
            Perdoa Santo Antonio. Mas coloque-se no meu lugar. Fiz bobagem, mas a culpa não foi minha. Bem que me podiam ter dado melhor compreensão. Fazem as coisas erradas e o pobre diabo é quem paga.
            Paulo Sarmento viu Maria José do outro lado da igreja. Estava acompanhada. Era Cinira. Um raio de esperança começou a passar dentro dele. Moça de fora certamente não sabia do seu passado idiota.
            O diabo é que podia ser casada. Sentiu um frio na espinha. Antes que a novena terminasse colou-se no adro da igreja. Cumprimentaria Maria José. Perguntaria pelo Dr. Agrício. Esperaria uma apresentação. Agora era pra valer. Trinta anos nas constas de um sujeito já começa a ser uma brincadeira de mau gosto.
            O tempo é um vagabundo safado. Não espera por seu ninguém. Dana-se pela estrada do infinito, deixando o sujeito com os seus problemas, com as suas angustias, com os dias diminuindo, envelhecendo feito um idiota.
            Paulo, inquieto, numa expectativa mortificante, esperava. Poderia ser um coice na sua sorte. Os pares de namorados iam passando juntinho dele e cada um, o deixando cada vez mais revoltado contra essa porcaria que se chama destino.
            Maria José não aparecia. Seria uma coisa proposital? Poderia ter saído pela lateral. O diabo não perde tempo para fazer uma das suas. Anda de olho nos infelizes para torná-los mais infelizes ainda. Quem o inventou já foi com essa intenção. Aliás, ele também não tinha culpa. O que não se podia entender era alguém ter tido a maldade de criar o diabo e só para com o fim de fazer o mal, meter o bedelho na vida de todo mundo. E ainda tem quem acha que a criação do universo foi à maravilha das maravilhas. Afinal, o diabo desta feita não havia se metido. Foi até bonzinho. Maria José apareceu.
            - Boa noite dona Maria José, Dr. Agrício vai bem?
            - Ficou atendendo clientes. Apresentou-lhe a amiguinha. Cinira. Do Recife. Veio passar uma temporada em Aroeiras. Queria conhecer o sertão...
            - Com muito prazer, senhorita. Está em ótima companhia. Espero que não tenha ficado desapontada com a nossa terra.
            - Lugar pequeno, com pouca coisa para ver. Era o meu maior desejo. Estou encantada. Gente boa, alegre, corajosa, animada. E a beleza dos campos, do céu estrelado, do luar.
            - Aqui se vive e se respira o que há de mais puro e saudável. E essa festa com tanta moça bonita, rapazes comunicativos, cada um com a sua namorada, como se fosse às vésperas de uma grande noite de núpcias.
            - Para os que têm sorte. E, francamente, tenho inveja da felicidade dos outros. Ando até com desgosto de viver. Pode ser falta de jeito ou burrice minha.
            - Talvez apenas, falta de oportunidade ou desinteresse. A menos que haja coisa fora de minha percepção.
            Maria José interferiu:
            - Paulo é uma ótima criatura. Pode ser que se considere acima do nível das moças da terra. Moço ainda, com boa fortuna nas mãos, não acredito que a culpa seja das moças.
            Pararam na casa do Dr. Agrício. Cinira também não tinha compromisso. Mas não desejava namoro passa tempo. O que pretendia, enfastiada da vida fútil da cidade, era simplesmente, casar-se. Ter o seu lar, o seu companheiro e se pudesse, morar no sertão, com aquela tranqüilidade que até então desconhecia.
            Poderiam dar umas voltinhas pela festa.
- Paulo Sarmento! Cinira é uma moça honesta, de confiança. Um belo par, aliás.
            Caiu a mosca no mel. Era justamente isso que desejam os dois. Embora não fosse usual. Cinira tomou o braço de Paulo e os dois enfrentaram os comentários.
            - Olha aí, menina. O Sarmento com quem anda. Aquela mocinha do Recife. De certo ela não o sabe quem é. Vai enganar a coitada.
            - Enganar coisa nenhuma. Aquilo deve ser escolada. Quando anda por aqui já é para ver se pega algum besta, um idiota qualquer. Aquilo já se perdeu por lá, quem sabe. Olha aí, já anda de braço entrançado.
            - É bom até que seja assim. Ele só queria enrolar as moças daqui. Enganou a todas. É fazendeiro, sabe tapar buracos. Deixa pra lá. Um safadório. Chupa-lhe o dinheiro, bota-lhe uns galhos e está feita a festa.
            Era a Pureza que fazia esses comentários. Velhota, desenganada, em sua vida amorosa, frustrada, encostada, criando teia de aranha como uma casa abandonada. Sempre que podia desandava a lenha em Santo Antonio. O dinheiro, as fitas, as velas votivas, não foram levadas na menor consideração.
            - Pifeza, pura pifeza.
Disso resultou-lhe mais uma lição. Não se deve confiar em todo mundo. Mesmo canonizado.
            Menos de trinta dias depois da festa, Cinira estava noiva e de casamento marcado, Paulo Sarmento não queria mais conversa. Não passaria outro novenário sozinho. Era negócio pra doido.
            As moças do lugar iam ver como ia viver Cinira. Boa casa, vestidos e jóias para fazer inveja. E amor para esbanjar.
            - Estão vendo aí? O traste vai mesmo casar com a lambisgóia de Recife. O bicho está reformando e pintando a casa. Se tivesse noivado com uma moça daqui, iria morar na casa velha, sem reformar e sem pintar.
            Dona Pureza se encarregava, desapontada, tocava fogo na canjica e se lamentava também. A vida é pior do que sovaco de aleijado. Com um tipão daquele não fazia questão nenhuma de me juntar. O resto ficava por conta de Santo Antonio, que não deu sorte. Mais não tem nada não. O diabo há de me ajudar a botar chifre naquela bichota. Estou por tudo. Não pense ninguém que vou morrer de pernas cruzadas. Um dia ele se enjoa da farinha de casa e vai me encontrar pela frete. Vou me cuidar e a sabidinha que se cuide. Se for pecado ou não, isso não é comigo. Não me permitiram o caminho certo, pois, então, tomo qualquer vereda. Qualquer caminho dá da venda.
Apesar da ciumada a festa do casamento rolou animada até o amanhecer.
            Cinira fez questão de casar-se ali mesmo. Dizia que queria casar-se também com o sertão de quem há tempo já era noiva. A família compareceu. Gente fina e cheia das granas.
            A inveja aumentou. Dona Pureza sentiu-se tonta. Teve vontade de desistir de seus planos. “Essa gente não merece isso”. Mas o diabo já andava rondando. Era sua profissão. E o tempo foi passando, passando.
            Dona Pureza observava o casal. Já não andavam tão agarradinhos. “É. A coisa está esfriando”. E começou a se chegar. Animava as visitas. Queria intimidade, para disfarçar seus intentos. Não era feia de cara, nem de corpo. Paulo Sarmento começava a perceber os olhares quentes, furtivos e convidativos de Dona Pureza.
            Cinira caiu na besteira de ir a Recife passar uns dias. Dona Pureza não perdeu tempo. Pouco se incomodava que as más línguas falassem. Estava por conta do diabo. E tudo terminou como ela queria. O difícil, agora, era só controlar quando a Cinira chegasse. Se pelo menos o fogo se apagasse. Mas não contava com isso. Levara a vida toda juntando lenha. Lenha do sertão, de alta caloria. Tinha que dar um jeito. O difícil era começar. Ela sustentou-se um pouco, embora noites inteiras sem um sumaço de sono.
            Inesperadamente a coisa tornou-se mais difícil do que ela pensava. As suas rondas não rendiam. Notava também que Sarmento não se interessava mais. Começou a raciocinar. Tinha soltado o passarinho na seara alheia. Cinira lhe parecia uma menina decente. Tinha sido tentação do diabo. Sujeito safado. Em todo caso estava realizada. Só era pura no nome. Bastava esta satisfação íntima. E findou dando graça ao diabo. Bem que o bicho preto tinha suas boas artimanhas. E quem sabe se mais adiante não lhe faria nova surpresa. Não lhe acendeu uma vela porque sabia que o diabo não tolera cheiro de vela e laço de fitas, muito menos. Procurou controlar-se. Deixava a sua sorte por conta do tempo. Mas inesperadamente começou a agoniar-se. Sentia coceiras estranha. Devia ser o capiroto atiçando o fogo. Tomou uma resolução. Suicidar-se. Acabar de uma vez com aquela inquietação.
            Arsênico, sim, arsênico. Coisa ligeira. Foi ao comércio pediu formicida. Matar as formigas, que estavam cortando o seu pé de Mangerona. Mas logo de volta jogou-o fora. Burrada, pura burrada. Vendeu o que tinha e caiu fora. Terra pequena é um pinícula. Não se pode nem ao menos cumprir sagrados mandamentos.
            Dona Pureza teve sorte. Casou-se. É verdade que foi com um pedreiro. Soube escolher, ou antes, teve sorte, Sabia usar argamassa para os retoques. Perito em tapar a buraqueira... Nunca teve filho. Melhor assim. Cuidava apenas da casa e das ferramentas do pedreiro. O dinheiro que levava emprestou à juros. Não mais se queixou da vida. Quando lhe deu saudades voltou a Aroeiras. Apresentou o marido. Homem rústico, mas de boas conversas.
            Aproveitou o ensejo e foi com o marido à igreja. Queria que Santo Antonio a visse. O santo estava coberto de fitas. De fora só aparecia a carinha do Zé Promessa. A bandeja, a seus pés, com algumas moedas. Teve pena de seu vigário. O padroeiro não estava colaborando. Colocou algumas moedas na bandeja e comentou: - Pobres moças. Tanto laços de fita sem nenhum enlace. Vai, Santo Antonio ser bonzinho com as meninas. Elas estão envelhecendo. Tu não sabes o que é uma mulher depois dos trintas. Os desenganos, as ansiedades, as doidices quer pode fazer. Conversa comigo que te conto. Fui pura até quando pude. Não fui eu quem caminhou para entrega. Foram as forças incontroláveis dos desejos e das insatisfações que me arrastaram. Se isso é pecado perdoa-me. Minha alma e meu coração continuam puros. E assim são todas as mulheres que se sentiram frustradas. Olha Santo Antonio, cada fitinha que te oferecem ou cada vela que te acendem, já é um incêndio de que a vida da gente começa a doer, que o corpo começa a pedir e a inquietar-se. E foi Deus que fez a gente assim. Não há nada de imoral. Apenas a sociedade exige, antes da doação, um pouco de água benta ou um compromisso oficial.
            E será que quem os celebra tem mesmo moral?
            Dona Pureza não olhou para traz. Santo Antonio não entendeu nada. E lá se ficou todo coberto de fitas como se fosse uma pastorinha.
            - Velha idiota. Fez do que fez e vem com essa longo-longa pra cima de mim. Não sei quem enfiou no quengo dessas bestas que sou Santo casamenteiro. Uma ova! Quem quiser se vire ou faça como a santinha da Dona Pureza. Não quero fitas nem velas. Um dinheirinho vá lá. Empresto a seu vigário, sem juros e sem prazo.
            Cinira e Sarmento tomaram uma resolução. Aumentar o ciclo de amizades, visitando os fazendeiros das vizinhanças. O primeiro contato seria em sua casa. Cinira tinha jeito para os arranjos. Paulo Sarmento fez os convites. Seria um domingo de congraçamento. E nesse dia a casa encheu-se. Coronel Justiniano e a família chegaram cedo.
            Cinira ficou encantada com os olhos verdes da filha única, na moldura daquele rosto bonito e alegre; apagara-se diante dela. Só mesmo o clima sertanejo poderia conservar aquelas feições de santa. O brilho de seus olhos devia ser uma mistura de raios de sol e raios de luar ou uma gota de orvalho numa manhã luminosa. O corpo, decerto teria sido delineado para modelo de expressão corporal. Desejaria, por isso, ter nascida no sertão, à terra das mulheres incomparáveis, onde mesmo as que não são bonitas são atraentes.
            Em casa de Paulo Sarmento, foi um dia inesquecível para Cinira e os convidados. Daí por diante, as visitas, as reuniões, se sucederam, as amizades cresceram e já havia ansiedade na espera. Era uma forma de conviver, com aquela franqueza sertaneja, onde se contava os fatos pitorescos da região ou da vida de cada um.

*Este conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.
           
           
           
           
           
           
           
           
           

           


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