segunda-feira, 9 de setembro de 2013

MARTINHA



MARTINHA*

 João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 - 16/04/2003)




Martinha já havia se casado três vezes e se separado igual número. Não havia quem a sustentasse. Mandava todos os maridos para a irmandade de São Cornélio. Era dessas que não podiam ver homem bater-lhe as pestanas. Diziam que era uma ninfomaníaca, quando na verdade não passava de uma refinada viciada sem respeito à água benta dos padres ou as leis dos juízes. Era uma tentação de mulher e conhecia a arte de atrair. Era uma tentação diabólica, quando dava um volteio no corpo ou cruzava displicentemente as pernas macias e coradas. Endoidava qualquer um e tinha ainda a vivacidade de fazer que não dava importância a ninguém, para despertar e aguçar os desejos dos pretendentes. Também não se chafurdava com nenhum, sem que houver casado.

Mudava-se de um local para outro, contanto que chegasse a um casamento legal. Depois que o último marido não a aguentou mais, apareceu-lhe um baixinho, de cabelos ruivos e olhos agateados, de quem Martinha passou a gostar.

Os amigos avisaram-no da esparrela em que ia se meter, mas o Tião advertiu-os de que já sabia e queria dar-lhe uma boa lição. Martinha iria ser somente dele e ninguém era nem doido para se meter com ela.

- Tião, a mulherzinha é viciada e uma mulher viciada tem manhas para botar chifre até no diabo. Não será o primeiro nem o segundo. Três já se foram.

- Mas onde se vai encontrar uma mulher apetitosa daquela. Ela não se entrega sem se casar e eu, sou gamado nela. Mas não se assustem não. Vou ensiná-la a respeitar marido.

- Com esse teu físico, é para se duvidar. A morena é uma marra de mulher. Derruba-te com um empurrãozinho. E depois de estares com ela, vai te botar feitiço e não terás coragem de tocá-la nem com um botão de rosa. Diz o ditado que quem me avisa, meu amigo é. Quer dizer, irás morrer sabendo ou terás que abandoná-la como os outros, na primeira semana. Ela já deve estar com os planos formados e escolhidos os futuros namorados de cama e mesa. Bota os olhos no ambiente em que ela vive e facilmente notarás quem são os cabras. A coleção não deve ser pequena. É uma criatura diabólica e insaciável. Com mulher não se deve brincar.

- Está certo, não confiam nos meus poderes, mas irão ver com quantos paus se faz uma jangada. Quero somente apanhá-la em minhas mãos. E não vou por nem peias, nem cabresto. Tenho meu plano traçado. Até aposto se quiserem.

- Não, ninguém quer ganhar teu dinheirinho assim de mão beijada. É uma pena que estejas tão enganado e tão confiante. Casa-te e verás. Lamentamos que um amigo de tua linha embarque assim facilmente numa canoa furada e bem furada. Deve ser força do teu destino. Não desejaríamos que entrasses para a irmandade. São Cornélio vai ter mais um irmãozinho...

Ninguém demoveu Tião. Estava enfeitiçado pelos encantos da Martinha. Que não enxergava outra mulher e que talvez nem fosse essas coisas todas. Há muito fruto bonito como o jiló e amarga como o fel. O cabra ou se acostuma com o amargor, ou o deixa sobrar.

Tião casou-se numa sexta-feira, por sinal, dia de São Cornélio. Uma péssima coincidência. Todo mundo de olho nele e nos prováveis sócios daquele casamento absurdo. Tião levou-a para casa, provou bem o que desejava, sem, contudo, saciar Martinha. Percebeu bem isto. Teve até a impressão que seus pensamentos não estavam nele, mas em alguém que ela desejava. Tião cansou-se e parou com a brincadeira.

- Cadê você, Tião. E agora! O que é que vamos fazer. Não posso ficar assim crivada de desejos. Só fizestes me assanhar. Já sabias como sou, ou nunca ouvistes falar da fome braba de Martinha!

- Já, já e casei-me contigo justamente por isto e não penses que irás me trair, seja qual for tua ganância por homens. Não te proibirei de sair, dar teus passeios, mas terás que me ser fiel. Como o padre disse. Até a morte e se tem amor por tua vida, haverás de me respeitar. Casei-me de propósito. Por aí a fora houve até apostas. Não quero nem saber de tua vida com os outros maridos, mas comigo a coisa é diferente. E vou logo te avisando que já tenho gente a ti vigiar e que jamais perceberás. Não te iludas. - Foi lá dentro, apanhou uma faca amolada dos dois lados, novinha em folha e mostrou-a: - Está aí o teu presente por qualquer deslize. Não me casei para ser corno, entendestes?

Há mulheres que zombam do que se diz, mas comigo terás que andar na linha. Não quero te enganar e não terei pena de ti. Terás meu amor, uma vida confortável, mas em troca disto, exijo fidelidade. Nem quero dizer o que farei contigo, mas podes bem imaginar.

- Deus me livre de qualquer tentação. Nunca fui tão má como dizem. É que me casei antes com três molengas. Saía e não me diziam nada de sério. Viciei-me e ficava mordendo aqui, mordendo ali, como uma mulher livre e insaciável. Mas, agora, nem pense nisto.

- Pois é. Gosto de ti, mas, é viva, ao meu lado e só minha. Irei para o meu trabalho sem preocupação e não te esqueças de que tens marido.

Martinha levou em conta o que lhe avisou o marido. Compreendeu logo que o magricela não estava brincando e seria uma temeridade fazer uma experiência. Entendeu, igualmente, que sempre lhe faltava um homem que não fosse apenas para diverti-la e saciá-la. Resolveu, então, ser honesta por obrigação e mesmo por respeito ao marido e às suas promessas um tanto quentes.

Martinha, no entanto, começou a sentir saudades do regime anterior. Não estava habituada com um homem só. Chegou à tentação de dar alguns passeios. Mas, quando se lembrava da lâmina da ponta afiada da faca de Tião, retraia-se, encolhia-se e mudava de idéia. Afinal, o mais certo mesmo era não se arriscar. Tião era um bom marido e todo homem pequeno costuma ser genioso. As promessas que havia feito poderiam ser legítimas o pau iria se quebrar em suas costelas, coisa pouco agradável.

De outra forma, os homens também receavam Tião e sobretudo pela tranquilidade que demonstrava. Por dentro daquele pedacinho de gente bem poderia morar um demônio. E se ele havia enfrentado Martinha é porque estaria disposto a fazê-la respeitá-lo.

Mesmo assim, o Deodato, um tanto atrevido, resolveu fazer uma tentativa, pretextando que onde foi casa é tapera. E, além disto era vidrado na Martinha. Não quis conselho de ninguém. Ela deveria andar com medo, mas, com ele a coisa seria diferente. As mulheres, em sua opinião, admiram e gostam de cabras destemidos e aventureiros. E dentro dessa filosofia de conquistador, começou a tentar Martinha. Chegou mesmo a convidá-la para uma saída. Não aconteceria nada. Que irá por ventura fazer o pobre do Tião, aquele porqueirinha de gente...

E embora Martinha o recusasse, continuava a insistir. Martinha contou ao marido. Não suportava mais a insistência. E não queria que o Tião descobrisse e pensasse que era ela quem estava se oferecendo. Tião ficou calado. Não disse sim ou não. Martinha era só para ele. Calado estava, calado ficou.

Mas, dias depois, a notícia espalhou-se num galope só. Entrava nas ruas, dobrava as esquinas, ia da sala à cozinha.

– Acharam o Deodato de olho virado. Uma facada profunda, mesmo no peito esquerdo. Não tivera nem tempo de fazer uma careta. Morrera de cima dos pés.

- Isto sempre acontece com os valentões. Gostava de ameaçar, dar pancadas, e quando tomava uma truaca, tornava-se insuportável. Teria que acabar assim.

Martinha assustou-se. Talvez tivesse sido a culpada. Não pensava que o Tião fosse capaz disso. Em todo caso, poderia não ter sido ele. E fazendo que não sabia, para não culpar o Tião, perguntou-lhe:

– Hem Tião, estão dizendo que mataram um homem à noite. Amanheceu morto de olho vidrado. Não ouvintes falar quem é?

- Nem ouvi e nem me interessa. Deve ser algum sujeito ruim!

Pela cidade andava uma suspeita. O Deodato, segundo as más línguas, andava arrastando a asa para a Martinha.

E Tião foi ouvido pelo delegado.

- Não, não sei absolutamente de nada. Confio na Martinha, ela tem sido correta e fiel e também jamais ouvi falar que alguém se atrevesse a tentá-la. Aí sim, se tal acontecesse, seria eu capaz de tudo. Pode chamar e perguntar-lhe se houve alguma coisa. Se o tal do Deodato, andava com segundas intenções, com ela, estou certo que dirá.

- Que nada seu delegado. Não houve nada. Nem agora nem antes. Não me lembro mesmo de tê-lo visto alguma vez. E se houvesse se enxerido para meu lado, eu mesma teria dado-lhe uma sapatada nas fuças. Juro que não houve nada e nem sei de qualquer coisa. Sou uma mulher casada, amo o meu marido e mais do que isto respeito-o e me respeita. O passado apagou-se em minha vida.

- O senhor seu delegado, - disse Tião, - pode procurar o réu noutra parte. Mesmo que eu tivesse motivo, seria incapaz de cometer tal desatino. Falam e sabe-se que o Deodato queria ser a palmatória do mundo e quem semeia vento, colhe tempestade. Era cheio de inimigos. Tenho pena de gente assim, pois sempre termina desse jeito. Como têm medo de valentão, faz a coisa por traição.

- É mesmo. Deixa pra lá. Não prestava para nada e já está emburacado no chão. Não irei mais perder meu precioso tampo. O governo me paga muito pouco por tanto trabalho e muito especialmente para cuidar de cabra ruim... Morreu, está morto e o povo livre dele. Muita gente até gostou... E deu uma boa gargalhada.

Na intimidade do lar, Martinha tentou aliviar seus temores: - Também não precisava de tanto, Tião. Uma surra, resolveria.

- Que surra que nada. Como é que eu poderia pegar um monstrengo daquele, com este meu físico. Brigar como. Assim, peguei o bicho na camaradagem. Medi bem o bico do peito e enterrei-lhe a paraibana até o cabo, de surpresa. Apagou-se como uma vela que cai dentro d’água. Quem não quiser apagar-se não mexa contigo. Não se lava honra com água e sabão...

Em 16.7.1986



*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.

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