A FAMÍLIA DOS JANUÁRIOS*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)
A família dos Januários era uma das mais conhecidas da zona rural onde
vivia. Não por que fosse afortunada ou pelo fato de ser dali mesmo desde suas origens,
e sim, por se constituir quase só de mulheres, oito moças alegres e cada uma
mais bonita do que a outra. Aliás, era herança do casal. Pai e mãe formavam um
par invejável. Bem proporcionados, sadios, corados, dos dois só poderia mesmo
sair uma moçada daquela. Todas ainda solteiras e nem pareciam ter pressa para
se casar. E não é que vivessem em regime tão rigoroso que dificultasse
relacionamentos. Era coisa própria delas. E tão unidas sempre foram que receavam
se separar. Quando alguma se ensaiava num namoro mais sério, caiam-lhe logo em
cima. – “Vais te separar da gente. Não podes fazer isso”. E lá o negócio
começava a esfriar. Até onde iriam tão apegadas, nem elas mesmas sabiam e nem
lhes dava preocupação.
Iguais no temperamento, iguais
na solidariedade, pouco se interessavam pelo mundo lá fora. Quando uma olhava
para outra era sempre sorrindo. Tudo quanto faziam tinha quer ser combinado e
bastaria um voto contra para uma mudança geral.
Na casa dos Januários não se falava em desgostos nem em doenças. E
sempre diziam: “onde há alegria, não entra doença”.
Além dos afazeres domésticos, as meninas faziam rendas, crochê e
bicos, arte que a mãe lhes ensinara. Sobravam encomendas. Marcavam prazos para
entrega e nisso eram pontuais.
Dona Maria José, preocupava-se com o destino das filhas. Trocava
idéias com seu Januário e geralmente não chegavam a qualquer conclusão. As
meninas deveriam se casar como acontece com as outras moças.
– “Parece, Januário, que estão combinadas para não se casarem. Quem já
viu disso. Depois ficam velhas, nervosas e ninguém mais vai requerer”.
Que é que tem Maria José. Parece que não gostas delas? Por mim, nunca
sairiam de casa. São tão amigas e tão boas que seria uma pena separá-las. Deixa
as meninas aí, mulher. Casa-se, não se dão bem, vão sofrer; lutar com filhos e
às vezes um marido ordinário. Não vês como é, criatura de Deus. E o difícil é
conseguir que se separem. Parece até que são todas gêmeas de uma barriga só.
Como podia ser?
- Que nada. Existem tantos moços bons por aí. Elas é que nem ligam.
Parece que não sentem nada. Vamos fazer uma festinha, uma dança, convidar a
turma e ver em que vai dar. É possível que alguma se interesse e quebra-se essa
corrente anti-matrimonial.
- Toma cuidado. As meninas não querem se separar. Depois a responsabilidade
será nossa.
- Moça é para se casar, Januário. Acostuma-se aos poucos. Já pensastes
envelhecerem dentro de casa só fazendo crochê e renda. Eu acho também que os
rapazes têm medo de ti, Januário. Essa tua cara sisuda, como se tivesses ciúmes
de tuas filhas.
- Ciúme tenho. Não quero vê-las sofrer, quando nos parecem tão felizes
reunidas. Filha minha, se casar com alguém que não cuide muito bem dela, tem
que voltar para casa, É uma lei de Januário.
- Ora, é ter cuidado. Gente ruim não encosta.
- Há tanto cabra por aí com cara de santo e depois bota as unhas de
fora. Vejas bem. Estamos na santa paz. Todos unidos, alegres, sem esse tal de
casamento.
- Bobagem. Todo mundo casa, tem filhos e se acontece alguma coisa, com
o tempo passa.
Preparou-se a festa com bastante antecedência. Tempo de mais para que
todos fossem avisados.
A velha Marcolina, íntima da família Januária, uma fofoqueira
diplomada, espalhou a notícia.
“A família Januária ia fazer uma festa com intensão de casar as
filhas”. Iria ser para valer. Mas tivessem cuidado com seu Januário. O homem
não botava água a pinto. Bastaria riscar um fósforo para virar um incêndio.
Mesmo assim, queria arranjar casamento para as filhas. Não fazia questão de
riqueza. Gente boa, sim. Para avaliar o comportamento dos candidatos, deixaria
tudo à vontade, com tanto que não se excedessem. Daí para frente seria com ele.
A festa começaria com um almoço e haveria comida até o dia amanhecer.
Bebidas controladas, a pesar de pagas. Compareceram muitas moças de famílias
vizinhas. E sabe como é. Moças do sertão são todas bonitas, coradas e alegres.
Mas a rapaziada tinha sede era nas filhas do Januário. Eram as mais difíceis e,
mas apetitosas.
A festa começou. Sanfona e violão, cantorias e dança. Seu Januário na
fiscalização. Houve advertência. – “Aqui não se bebe demais”. E foi só. Seu
Januário era respeitado.
O fole não parava. A sala cheia. Ao som de músicas sertanejas, a dança
já cheirava a moça suada. As meninas de seu Januário não perdiam parada. Cada
uma com seu namorado pareciam que estavam no paraíso. Abria-se um mundo novo
para elas. O dia amanheceu e a noite lhes pareceu curta demais. Era uma pena. À
hora das despedidas, a claridade foi testemunha das manifestações de afeto,
seguidos dos juramentos de amor e de reencontros. Oito dias depois ainda
comentavam a alegria da festa.
– Vocês não imaginam como estou feliz. E eu, E eu. E eu. O tom era o
mesmo. A verdade é que um mês depois, já quatro delas estavam noivas.
- Vai se casar, não é? E nós vamos ficar sozinhas, neste casarão?
- Ora vocês se casam também
- Como, se nem fomos pedidas.
- Depois chegaram os candidatos.
- Seria bom que casássemos todas de uma vez. Cada uma para sua casa,
com o seu noivo. Mas assim, pai e mamãe ficariam sozinhos, sem uma filha para
fazer-lhes companhia e ajudá-los, depois há uma outra vantagem. A gente vai
dizer a vocês se casar é bom.
- A gente já sabe que é.
Não, não é isso que vocês estão pensando. É na trabalheira da casa, na
responsabilidade de dona de casa.
Casaram-se as quatro, num grupo. O padre Tampinha fez mil
recomendações, mas somente falando em amor. Coisa desnecessária, óbvio. Quem é
que não sabia que amar era bom. Não falou no lava-pratos, no fogão, nas
vassouras, nas feiras: só pensava mesmo nas viradas. Talvez tivesse razão. O que
era bom lhe era proibido. E o que é proibido é o que da para pensar. Padre
Tampinha era um frustrado. Não podia ver uma noiva sem lhe doer o juízo e ficar
arrepiado. Coitado dele.
Romperam-se os elos no caso do seu Januário. Quatro filhas lá se foram
nos braços dos noivos. A casa ia ficando vazia. As quatro moças que ficaram
uniram-se ainda mais. Depois foi saindo uma, outra, casaram-se todas.
Januário visitava e fiscalizava os seus maridos. Cabra tinha que andar
direito. Qualquer suspeita estava ao pé da conversa: E bastava a presença de
Januário para modificar o ambiente.
As oito irmãs não quebraram a unidade. A vida de uma estava na vida da
outra. Uma solidariedade admirável. Dividiam-se tudo irmanamente. E a família
cresceu de prestígio e de respeito. Quando se falava nos Januários, tinha-se o
cuidado de pensar algumas vezes antes. – “Cuidado, aquele é genro do velho
Januário”.
“A Seriema”, terra dos Januários caracterizou-se depois pelas festas
da roça. Quem tinha moça pra casar, o caminho era esse, dança aqui, dança ali e
o padre Tampinha celebrando casamentos. Um santo remédio. Até moça velha
encruada saiu do barricão. Dançou casou!
Santo Antonio sofria uma concorrência dos diabos. Para arranjar um
noivo não necessitava mais do bom santinho de madeira. Sem fitas, sem velas acessa,
o coitado cochilava a vida inteira, coberto de poeira e sem um níquel na
bandeja aos seus pés. Uma ingratidão.
Mas em Seriema bastava mesmo um
bom arrasta-pé. Em todo caso, há, porém, uma exceção. Foi o caso da Marcolina.
Encalhada, não houve arrasta-pé que desse jeito. Também a mercadoria era sem
apresentação. Feia de cara, nariguda, queixo comprido e corpo desengonçado.
Cabeça afunilada e pernas pequenas, sustentadas por duas lapas de pés que vou
te dizer... Teve que apelar para Santo Antonio. Espanou o santinho, enrolou-o
de laços de fitas, acendeu-lhe velas, fez orações. Tudo inútil. Santo Antonio
teve pena da Marcolina, mas o seu poder não chegava a tanto. Marcolina, desesperada,
apelou para um casamento na igreja verde, fosse com quem diabo fosse: Ninguém
se atrevia. Mesmo sem ser da família dos Januários, os possíveis candidatos
tinham receio de quebrar o regime da terra. Nada de patifarias nos domínios dos
Januários. Marcolina é que não estava disposta a fazer parte do cordão azul das
onze mil virgens. Dona de si vendeu o que tinha: gados, fazendas, e preparou-se
para quebrar o resguardo, embora tivesse que se mudar. Era um desaforo, ficar
como estava, criando teias de aranha.
Pedro Pachola, também não tinha forma de gente. Qualquer bicho ganhava
pra ele. Além de tudo ruzagá. Marcolina botou-lhe o cavalo em cima. Fugiriam os
dois para onde ninguém mais os vissem. O Ruzagá ainda pediu prazo para pensar.
Também não era assim não. Enfrentar Marcolina, mesmo endinheirada, era dose pra
jacaré.
- Nos casaremos aonde chegar, Pedro Pachola!
- Pra casar, não. Assim também é demais!
De qualquer forma Ruzagá teve pena da Marcolina e fugiram os dois.
Mas antes de sair, Marcolina, por reconhecimento, enrolou Santo
Antonio de laços de fita e acendeu-lhe duas velas. Resultado: O velho santo de
madeira pegou fogo e amanheceu quase em cinzas. O povo teve que adquirir outro,
mas, de material resistente as velas de dona Marcolina.
Tempos depois correu a notícia que havia nascido uma filha de Marcolina
e Pedro Pachola. Todo mundo teve dó da bichinha...
Mas não foi assim. Nosso Senhor deu uma ajeitada. Usou a força do
atavismo e nasceu uma linda garotinha.
*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestina, no prelo.
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