domingo, 25 de novembro de 2012

A ESPERANÇA É A ÚLTIMA QUE MORRE


A ESPERANÇA É A ÚLTIMA QUE MORRE*

João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

A família de Almira mandou até rezar missa por um frade velho que já se dizia santo, para que ela não se cassasse com o Abreu. Estava visto que seria um desastre.                            
Ninguém sabia de onde havia vindo, comprara fazenda quase nos subúrbios da cidade e ali vivia retraído, cuidando apenas do que era seu. Na verdade não era pessoa ignorante; aparentando até um grau de instrução superior. Pela convivência podia-se ver muito bem que possuía bons hábitos de vida. Amigo, prestativo e manso. Pelo visual, não degradava ninguém.
Almira, então, não atinava porque a família se opunha. As irmãs já estavam casadas e bem casadas, e ela, a mais velha, esperando oportunidade, isto é, conseguir alguém que fosse do agrado da família. Não era, aliás, a primeira vez que a família a contrariava. Deveria ser má sorte sua ou inexperiência. Mas desta vez não estava disposta a ceder facilmente. Já não era uma criança e tinha medo do tempo que se ia passando sem se preocupar que ela estivesse envelhecendo. Era problema somente seu. O tempo não tinha nada a ver que ela se cassasse ou morresse solteirona e rabugenta. Havia de pedir explicações sobre o motivo da formal oposição. E destinou-se a isso. Que diabo, já era a terceira vez lhe acontecia isso.
            Almira tinha certeza de que o Abreu lhe queria bem, não estava caçando dote e o que desejava era somente ela, só ela. É certo que vivia muito bem em casa, com os pais, não lhe faltava nada, além de um marido que tanto desejava. Já era só em casa e as duas irmãs lhe causavam certa inveja. E não adiou o entendimento.
            - Papai, mamãe, gostaria de saber a razão pela qual se opõem ao meu casamento com o Abreu. Pelo que sei é uma criatura querida por todos e não se sabe de qualquer gesto que o desabone. Então porque não presta para casar comigo?
            - Ora filha, o teu Abreu é um ilustre desconhecido. Chegou para cá, não se sabe de onde veio quem é e se é uma pessoa honesta. Sabe que as aparências enganam. Bonzinho, bonzinho, e pode até ser que ande por aqui se ocultando de alguma coisa errada. No entanto, o principal não é ainda isso. Bem sabes que ele mora com uma mulher que tem já um filho. Nota-se que vive intimamente com ela. E assim, como pode ser. Ademais, ele terá que abandoná-la o que nos parece uma grande injustiça. Ainda não reparaste como se dão bem os dois, ou melhor, os três. Seria muito doloroso o abandono da moça com aquele filhinho, por sinal uma gracinha. Se o Abreu tem vivido até hoje com ela em completa harmonia, como poderíamos permitir que viesse contribuir para uma separação. É isso Almira. Atenta para nossa argumentação. Entrarias logo cometendo um desatino. Aquela moça seria uma tua permanente inimiga e com toda razão. Vai, Almira procurar outro. Há tanto moço bom por ai. Sabemos que deseja te casar e já deves estar enjoada de viver com esses dois velhos dentro de casa, mas poderás ter mais um pouco de paciência.
            - Não é nada disso. Onde poderia estar melhor do que na companhia de meus pais. Inclusive, se fosse possível me casaria e os dois iriam morar comigo.
Não sabemos quem é aquela moça. Pode ser que não tenha nada com o Abreu e esteja conjeturando coisas inexistentes. Se não me casar desta vez, será a última tentativa.
            - Está certo, vou falar com o senhor Abreu.
Era uma missão delicada, mas não poderia deixar de proteger a filha, que considera uma situação perigosa. E botou-se a fazenda do Abreu. Feitos os comprimentos, sem outro assunto, foi direto ao problema.
            - Sei que há um certo relacionamento do senhor com a minha filha. Foi ela própria que se declarou. No entanto, estamos apreensivos por não conhecermos quem na realidade é o senhor. Não se sabe de onde procede e, além disso, tem em sua companhia uma moça e um menino. Seu retraimento e sua conduta não permitiram até hoje que se decifrassem certos aspectos de sua vida. Desculpa-me essa interferência, mas tenho que zelar minha filha.
            - É. Em parte, nossa vida aqui é um segredo e justificável. Essa moça que mora comigo é nada mais, nada mesmo, que minha irmã. O menino é um filhinho dela. O pai do garotinho morreu, ou antes, foi liquidado. Tive que lhe cobrar o que havia feito com minha irmã, aliás, irmã única. Enganou-a e desprezou-a, zombando ainda de nossa tentativa para uma reparação. Deixei meus estudos na faculdade de odontologia e liquidei-o. Fui processado e absolvido. O povo de minha terra foi consciente. Não quis ficar por lá e vim parar aqui onde tenho sido bem acolhido. Minha irmã mesma aconselhou-me ao casamento. Sabe como é. Não havia motivos para declarar essas coisas. Conto ao senhor nesta hora porque amo a sua filha e desejo me casar com ela. Em todo caso, não quero contrariá-los. Talvez me considerem um criminoso e então me ausentarei de tudo. É um segredo de família e gostaria que o senhor o guardasse.
            - Não. Creio que não deverá ser assim. A sociedade precisa conhecê-los. O senhor cometeu um ato digno e não tem porque tanta reserva. Olhe, a impressão que se tinha era de que sua irmã era sua companheira, apenas e, por isso, ela estava pagando um preço muito alto. Isolada, sem amigas, deve sofrer muito por isto. Não tenho mais restrições a seu respeito. O casamento, agora, dependendo apenas do senhor e de Almira. Admiro sua modéstia e de sua irmã. O que aconteceu a ela poderia acontecer a qualquer uma. Vou fazer questão, de apresentá-los a sociedade. E para iniciar, exijo que vá o mais breve possível à nossa casa. Não há porque esconder, também, o seu ato de nobreza, acabando com um cafajeste. Se todos fizessem assim, seria muito menor o número das moças enganadas e nem tantas estariam nos lupanares sofrendo horrores. Meus parabéns. Pelo seu gesto de hombridade. Quero conhecer de perto sua irmã. Por favor, chame-a até aqui.
            - Margarida. Vem cá, Margarida. O senhor Pereira faz questão de te conhecer.
            Era uma jovem simpática, mas com um ar discreto de quem sofria ou havia muito sofrido.
            - Pelo que sei, parece que seremos em breve uma só família. O Abreu tenciona casar-se com minha filha Almira.
            - Ah! Tem desejado muito esta união. Sacrifiquei até hoje a vida do meu irmão. Sei que ele já me perdoou, mas guardo esse sentimento. Foi muito duro tudo quando aconteceu; mas ele precisa de uma reparação.
            - Ora dona Margarida, de hoje por diante, vamos esquecer todo esse passado infortúnio. São esquinas da vida. Hoje à noite os estamos esperando, sem qualquer cerimônia. Nossa casa será sua também. E não deixe de levar o garotinho. Iram adorá-lo. Sei que minha filha vai ser daqui a pouco a criatura mais feliz deste mundo. Ela parece-me adorar seu irmão.
            E a noite lá estavam para o jantar. Margarida já apresentava um semblante de moça feliz. Estava saindo da clausura em que vivia e que só lhe servia para aguçar-lhe as recordações. Mutismo é uma espécie de doença crônica. Vai corroendo as pessoas aos poucos.
            Dona Altina a recebeu com um carinho especial. Apesar do recolhimento em que vivia. Margarida mostrava excepcional bom gosto no vestir e se apresentar. Estava-se vendo que era uma moça de fino trato. Lá já sabiam de sua história, do seu amor infeliz. E Margarida fez questão de apresentar o filho, o seu adorado filho.
            Dois meses depois o padre Querino celebrava o casamento. Antes disso, porém, Margarida já havia acertado. O irmão iria morar na cidade e ela continuaria na fazenda com a companhia da preta generosa que a criara, por assim dizer. Cada um tinha seus hábitos, sua maneira de querer as coisas e de viver. Embora o novo casal se opusesse, não houve outra solução. Era tão pertinho. Estariam se vendo a todos os momentos. E gostava imensamente daquela vida de fazenda. O gado, as galinhas, as suas plantas do jardim. E os pássaros que cantavam nas árvores do pátio.
            A vida transcorria calma e mais afetuosa. Visitas, novas amizades e atenções. Tudo havia mudado.
            Abreu preocupava-se com a irmã, tanto quanto com sua casa. Ou mais ainda. Mas teve uma surpresa de cair das nuvens. Margarida contou-lhe um segredo. Estava pretendendo casar-se. Já havia sido consultada. No entanto, dependeria exclusivamente do irmão.
            - Já teve uma dura experiência, minha irmã. Outra seria de mais.
            - Creio que desta vez, não. Conheces bem a pessoa. É viúvo sem filhos. Parece-me um homem digno.
            - Estou ansiosa para saber quem será o felizardo.
            - Sei, sei. É o Carvalho. Antonio Carvalho, comerciante e dono da loja “Os Tecidos”. Que achas?
            - Pelo menos me parece uma pessoa responsável. Tenho-o em conta de boa gente. E será que ele conhece a sua história e a minha?
            - E quem já não sabe de tudo. Mesmo assim, já lhe narrei tudo. Disse-me não se interessa pelas coisas do passado. Também não se interessara pelos meus bens. Se não era rico, era, no entanto, afortunado. Tinha de sobra para uma vida tranqüila e o que lhe estava faltando era somente uma dona de casa.
            - E o teu filho.
            - Disse-me que era o complemento de sua vida. Adorava crianças e teve a má sorte de não os ter.
            - Dize a ele que fale comigo. Faço às vezes de teu pai... És independente, mas não posso deixar de seguir-te.
            - Ah! E o que seria de mim sem tua presença e teu amparo, sem pai, sem mãe, és tudo para mim, - pai, mãe, irmão, amigo e protetor.
            Antonio Carvalho não perdeu tempo. Foi à casa de Abreu já para fazer-lhe o pedido.
            - Por que o amigo não procurou outra moça. Sabe que minha irmã tem um filhinho. Filho de uma desventura sua. Isto que foi segredo por muito tempo já não é mais hoje e isto me valeu duras penas.
            - Sei de tudo, sem faltar uma vírgula. Em minha situação de viúvo e já provado na vida, ninguém poderia se ajustar melhor ao meu temperamento e a minha condição, do que dona Margarida. Não vivo mais de certas fantasias. Acho que sua irmã é exemplo de dignidade e tenho certeza que serei imensamente feliz com ela. Espero que ela também o seja. Minha conduta creio, que é por demais conhecida. Sou uma criatura modesta, de vida simples. O que me constrange é a solidão em que vivo. E não é justo continuar assim. Tinha porem que escolher, ou melhor, encontrar a criatura que fosse capaz de compreender-me e a quem eu pudesse confiar plenamente. Por isto, aqui estou para pedir-lhe a dona Margarida em casamento. Quero que ponha a parte nossa relação de amizade. Não olhe para mim, mas unicamente para sua irmã. Caso tenha qualquer dúvida, só me responda depois. Não ficarei magoado, com uma negativa. Estou autorizado por dona Margarida a fazer-lhe a comunicação e o pedido. Todavia é natural que a consulte.
            - Por mim, o senhor é de minha confiança e estima. Só não quero é que se repita o que já aconteceu comigo, embora tenha a convicção de que minha irmã fez uma boa escolha.
            Margarida entendeu as precauções do irmão. Considerou, entretanto, que não seria possível que lhe acontecesse uma segunda desgraça. Confiava em Deus que não seria novamente castigada. E casou-se. E a vida lhe sorriu para sempre.
             É por isso que não se deve desesperar.  Força do destino. Ninguém foge dele.
             Deus já deixou tudo determinado. Logo... Não adianta estrebuchar. Há hora para nascer, hora para morrer. Deve-se por isso aproveitar a vida, rindo e cantando quando se possa.
             Margarida se houvesse se casado quando foi enganada, iria sofrer a vida toda. Sofreu e fez sofrer, mas estava lhe reservado um futuro feliz. Antes tarde do que nunca.

Em 02.05.85.

*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo

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