quinta-feira, 3 de maio de 2012

O JUIZ




O JUIZ*

                                                                                                                João Henriques da Silva
                                                                                         (In Memoriam 20/09/1901 - 16/04/2003

            Sertão brabo da Paraíba. Para se chegar até lá tinha que varar caatinga, cariris e tabuleiros em costas de burro durante dias. E levar o farnel. Descansar debaixo de árvores e ter que alcançar local onde houvesse água para matar a sede. Cidades muito distantes umas das outras, medindo-se por léguas os estirões. Nos períodos secos, então, tudo se agravava. Traçar previamente o itinerário e ainda mais, andar cauteloso para escapar dos bandoleiros que infestavam os sertões.
            A fome e a miséria completa obrigavam a pegar no pau-furado para tomar de quem tivesse. Foi numa dessas fases críticas que o governo nomeou um bacharel recém – formado, juiz de uma cidade tradicional do alto sertão.
            Moço pobre teve que enfrentar os perigos da viagem por uma região inteiramente desconhecida. Após dias no lombo de uma montaria, guiado por um bagageiro.
             Dr. Antonio Bento, procurava um local para repouso e descanso dos animais. Extenuado e com saudades de casa, tinha a impressão que já estava perdido no oco do mundo e que havia dobrado a linha onde o sol se põe. Já deveria estar fazendo a volta para o outro lado da terra.
             Precisava do emprego e futuramente, se acertasse o caminho, estaria de volta. Era necessário começar. Aliás, havia sido nomeado porque ninguém aceitara o lugar.
            Bem a margem de um riacho, com seus velhos juazeiros, faziam uma boa sombra. Botou-se para lá sob a orientação de seu portador. Já havia gente arranchada. Um cavalariano, isto é, um negociante de cavalos. Não teve saída. Pergunto se poderia descansar também ali.
            - Pois não, - respondeu um sujeitão de cara grossa, queimado de sol, sem ser gordo, de fala arrastada, bicho sisudo. Dr. Antonio Bento, apreensivo, diante do brutamonte e do aspecto dos seus tangerinos, desceu do cavalo, segurando as calças. E não era para menos. Numa altura daquela, num ambiente daquele tinha mesmo que assustar-se. Poderia ser ali o fim de sua viagem de Juiz. Logo depois tudo mudou. Apesar do estupor do homem que enfrentava, era um sujeito agradável, cordial e passou a sentir-se amparado. Convidou-o para o almoço e terminaram comendo juntos. Armadas as redes nos galhos das árvores, veio à conversa sobre a vida de cada um. Dr. Antonio Bento criara alma nova. Narrou às peripécias da viagem, a primeira que fazia sertão a fora, o cargo que iria exercer, falou sobre sua família e as impressões a que vinha tendo do sertão.
            Ananias Cordeiro, o cavalariano, esmiuçou também a sua vida. Conhecia todos aqueles sertões. De muito tempo ocupava-se em comprar e vender cavalos. Cavalos só, não, burros também. E já ia de volta para o lado dos engenhos com um bom lote de burros. Dava bom dinheiro nas vésperas das moagens, para a cambitagem de cana.
            Ananias já pensava em mudar de profissão. Além de arriscada era trabalhosa. Sempre a andar para comprar e vender. Ao mesmo tempo condoeu-se do Dr. Antonio Bento. Pois como era que um moço daquele, saído de uma faculdade ia meter-se num fim de mundo daquele, terra de cabra valente, longe da família, arriscando-se a tudo. E, então, fez-lhe uma proposta:
            - Dr. Antonio Bento. Não faça isso. Volte daqui. O senhor tão moço, inteligente e formado, um jovem de futuro, metido numas brenhas dessa. Não dá doutor. Não dá mesmo. Faço um negócio como o senhor. Tome meu conselho. Volte daqui. Sertão é para um cabra bruto de minha marca, grosso como sou. Volte para a capital, vá advogar por lá, ter a vida que o senhor merece e sua família deseja. Não faça isso, volte daqui.
            - Não tenho como, senhor Ananias. Sou de família pobre e nem terei como começar.
            - Quem é inteligente como o senhor e novo como é não lhe faltará oportunidade. Dar-lhe-ei os meios, faremos uma permuta. O senhor me dá a portaria de nomeação e eu lhe darei toda a cavalhada e parte do dinheiro que tenho. O meu pessoal sabe onde vender a bom preço. O senhor volta e eu irei ser o Juiz em seu lugar. Não posso admitir que um homem como seja o senhor vá se meter num fim de mundo daquele, tendo um grande futuro pela frente. O nosso encontro, Deus marcou para salva-lo. São 42 burros novos e bons. O senhor deve levar por aí alguns livros de direito. Entrarão na troca, aqueles que o senhor julgar mais necessário especialmente um tal de Código. Com pouco tempo decoro um bocado de coisas. Como Juiz, darei minhas decisões e ninguém será besta para desobedecer. E, aliás, o mais fácil é não condenar ninguém. Dependerá dos amigos e da política. Da para ajeitar muito bem a coisa, Dr. Antonio Bento.
            Por fim, o Dr. Antonio Bento convenceu-se de que Ananias tinha razão. Tocou de volta. Vendeu a burralhada e mandou-se para Recife. Lá se tornou um advogado de nomeada.
            Ananias Cordeiro instalou-se como Juiz, e, como um Juiz daqueles tempos era uma espécie de coisa sagrada, era respeitado. Os seus julgamentos eram preparados antes do júri e ditado pelos chefes políticos. Não havia possibilidade de erro. Quem não quisesse mofar na cadeia que respeitasse os chefes locais. Os jurados eram escolhidos a dedo. Não havia necessidade de complicações. A vida já era cheia de problemas e porque complicar. Lá, ainda mais. Prende o homem, solta o homem, e acabou a história. Tudo muito simples e natural.              Tornou-se notável. E popularizou-se. Andava sempre com camisas de mangas longas, desabotoadas, inclusive os punhos desbengolados. Moreno, grossão andava pela cidade como se estivesse no quintal, arrastando uns chinelões de couro. Conheci-o assim; depois de muitos anos foi transferido para outra Comarca. Houve lá, então, um processo rumoroso de indenização: danos e perdas contra uma empresa poderosa.
            Providenciou uma sentença arrasadora contra a mesma. Houve apelação. O tribunal confirmou a sentença diante do brilhantismo da mesma. Criou maior notoriedade.
            - Doutor, a sua sentença foi uma das mais notáveis já oferecidas por um Juiz. O senhor está de parabéns.
            - Sabe de uma coisa, pedi para fazer aquilo e nem cheguei a ler. Por sinal foi elaborada pelo advogado do reclamante, uma das maiores autoridades jurídicas da época.
            Coisa mesmo de cavalariano. O fato é que se aposentou como Juiz de Terceira Entrância, graças ao brilhantismo de sua última sentença... Está vivendo na Santa paz do Senhor. Foi um ótimo Juiz e é uma criatura boníssima.
            
* Este conto pertence ao livro "Vidas Nordestinas", no prelo.

maracajag@hotmail..com

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