CONVERSA DE URUBU*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)
Dois urubus já
sesquicentenários, filho naturais da serra da Maraba, nas Alagoas, sempre
levaram vida folgada. Onde dormir, sempre tiveram. O local também não servia
para outra coisa. A única preocupação era exclusivamente ter que andar girando
no espaço para localizar alimento. Mas naqueles bons tempos não faltava. Havia
sempre com certa abundância.
Um boi ali, um
cavalo velho acolá outro bicho qualquer que as doenças dizimavam. Tempão
folgado. E entre a espécie sempre houve solidariedade. Onde comia um, comia um
bando todo. A disputa era apenas pelas partes melhores, coisa, aliás, natural.
Quem não quer o melhor? O casal era inseparável. Não havia rugas, nem desquite,
nem nada. Uma vida normalíssima. Nasciam os filhotes, criavam-nos até aprender
a voar e procurar alimentos.
Daí por diante
cada casal tomava seu destino. Não apareciam nem para pedir a benção aos pais.
Total
independência. Era norma geral da instituição urubuneana. E sempre deu certo.
Mas os tempos foram mudando, a vergonha do povo foi se acabando, a ladroeira
aumentando e perdem-se o controle de tudo.
O casal de urubus
– Tatá e Teté – começou a passar mal. Embora ainda quase na flor da idade,
tinham suas grandes preocupações. Faltava comida. Riscavam o céu por todos os
lados e nem sinal de carniça. Resolveram mudar de região. Permanecer seria um
suicídio. Tentaram descobrir as causas da escassez. Rondavam o espaço e por fim
lhes veio uma suspeita: Estava havendo uma concorrência desleal. Morrer bichos
continuava morrendo, não tinham dúvida, mas não era mais para urubu.
Morreu, morreu.
Foi melhor. Não precisava matar. Era só esfolar, esquartejar e levar para o
mercado. Carniça passava a ser alimento para o consumo público.
- Viste teté,
morreu de parto aquela vaca velha da fazenda do coronel, e nada sobrou pra
gente.
- Ora, Tatá,
carniça hoje é carne de primeira para branco, preto de nossa marca, nem mais as
tripas.
E Tatá e Teté
foram percorrendo espaços. A mesma desgraça.
- Só tem um
jeito, Tatá, é a gente ir morar na cidade, freqüentar as feiras e os açougues.
Lá tem carniça com fartura.
- E dinheiro,
Teté. Onde iremos buscar. Um quilo de carniça está custando os olhos da cara.
Vamos correr mundo. Não é possível que esteja tudo assim. Pode ser que ainda
haja alguém com vergonha na cara, por aí a fora.
- Difícil. Mas em
todo caso, vamos voar, pois andando não da mais.
Tatá e Teté, de
papo vazio volteavam por toda parte. Era sempre a mesma conversa. Bicho morria
sim senhor, mas não sobrava pra urubu. Feira, mercado, gente comprando carniça
das mãos dos ladrões e urubu morrendo de fome. No meio da carne melhor iam às
mantas de carniça.
Os mais pobres e
os menos experientes compravam aquela desgraça e lá vinham os distúrbios e as
intoxicações.
- Tatá, não
tem jeito. Vamos morrer de fome. É uma miséria. A urubuzada sumiu. Vamos cair
no mundo. Deve haver ainda algum lugar de gente honesta e caridosa.
- Difícil
Teté. Está tudo contaminado. De cima até em baixo.
O que podia
nos salvar era carne de gente. Mas enterram a sete palmos de fundura ou dentro
de quatro paredes donde não sai nem o fedor.
- E quem iria
comer aquela desgraça, Tatá. Carne velha branca, adocicada, azulada, com uma
catinga enjoada. Nem cachorro come quanto mais urubu. Só em falares já estão me
dando náuseas. Muda de assunto. Diziam que os índios queimavam para não
empestar o mundo de fedor azedo.
- É, tem
razão. Além disso, um saco de doenças. De sífilis a bexiga braba. Deus nos
livre.
- Vamos
tentar comer outras coisas. Capim, frutas, folhas, qualquer outra droga.
- Não temos
estômago para agüentar essas delicadezas, Teté.
- E o que
iremos fazer?
- Voar, voar,
voar e procurar descobrir onde andam os companheiros. Que diabo iremos fazer
aqui sozinhos.
A verdade é
que ficaram mais alguns dias. Uma fome danada. Papo completamente vazio. Num
dos vôos de reconhecimento, entretanto, avistaram uma vaca estendida no chão,
já nas últimas.
- Vamos
esperar. Desta feita encheremos o papo. Pelo menos em poucos dias teremos uma
boiazinha regular.
- Faltou a
vaca Estrela. Caiam em campo. Aconteceu alguma coisa. Nunca faltou ao curral.
A certa
distância a vaca estrela lá estava de canelas esticadas. Tatá e Teté, famintos,
davam bicadas pelos locais mais acessíveis.
– “Olha lá,
os pestes dos urubus estão estragando a carne. Desaforo. Emparelha os dois. - Ouviu-se
o ronco da espingarda e Tatá e Teté, virou de pernas pro ar. – Vão comer carne
no inferno”...
*Conto
pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.
Maracajag@hotmail.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário