segunda-feira, 7 de maio de 2012

CONVERSA DE URUBU




CONVERSA DE URUBU*

João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

            Dois urubus já sesquicentenários, filho naturais da serra da Maraba, nas Alagoas, sempre levaram vida folgada. Onde dormir, sempre tiveram. O local também não servia para outra coisa. A única preocupação era exclusivamente ter que andar girando no espaço para localizar alimento. Mas naqueles bons tempos não faltava. Havia sempre com certa abundância.
            Um boi ali, um cavalo velho acolá outro bicho qualquer que as doenças dizimavam. Tempão folgado. E entre a espécie sempre houve solidariedade. Onde comia um, comia um bando todo. A disputa era apenas pelas partes melhores, coisa, aliás, natural. Quem não quer o melhor? O casal era inseparável. Não havia rugas, nem desquite, nem nada. Uma vida normalíssima. Nasciam os filhotes, criavam-nos até aprender a voar e procurar alimentos.
            Daí por diante cada casal tomava seu destino. Não apareciam nem para pedir a benção aos pais.
            Total independência. Era norma geral da instituição urubuneana. E sempre deu certo. Mas os tempos foram mudando, a vergonha do povo foi se acabando, a ladroeira aumentando e perdem-se o controle de tudo.
            O casal de urubus – Tatá e Teté – começou a passar mal. Embora ainda quase na flor da idade, tinham suas grandes preocupações. Faltava comida. Riscavam o céu por todos os lados e nem sinal de carniça. Resolveram mudar de região. Permanecer seria um suicídio. Tentaram descobrir as causas da escassez. Rondavam o espaço e por fim lhes veio uma suspeita: Estava havendo uma concorrência desleal. Morrer bichos continuava morrendo, não tinham dúvida, mas não era mais para urubu.
            Morreu, morreu. Foi melhor. Não precisava matar. Era só esfolar, esquartejar e levar para o mercado. Carniça passava a ser alimento para o consumo público.
            - Viste teté, morreu de parto aquela vaca velha da fazenda do coronel, e nada sobrou pra gente.
            - Ora, Tatá, carniça hoje é carne de primeira para branco, preto de nossa marca, nem mais as tripas.
            E Tatá e Teté foram percorrendo espaços. A mesma desgraça.
            - Só tem um jeito, Tatá, é a gente ir morar na cidade, freqüentar as feiras e os açougues. Lá tem carniça com fartura.
            - E dinheiro, Teté. Onde iremos buscar. Um quilo de carniça está custando os olhos da cara. Vamos correr mundo. Não é possível que esteja tudo assim. Pode ser que ainda haja alguém com vergonha na cara, por aí a fora.
            - Difícil. Mas em todo caso, vamos voar, pois andando não da mais.
            Tatá e Teté, de papo vazio volteavam por toda parte. Era sempre a mesma conversa. Bicho morria sim senhor, mas não sobrava pra urubu. Feira, mercado, gente comprando carniça das mãos dos ladrões e urubu morrendo de fome. No meio da carne melhor iam às mantas de carniça.
            Os mais pobres e os menos experientes compravam aquela desgraça e lá vinham os distúrbios e as intoxicações.
- Tatá, não tem jeito. Vamos morrer de fome. É uma miséria. A urubuzada sumiu. Vamos cair no mundo. Deve haver ainda algum lugar de gente honesta e caridosa.
- Difícil Teté. Está tudo contaminado. De cima até em baixo.
O que podia nos salvar era carne de gente. Mas enterram a sete palmos de fundura ou dentro de quatro paredes donde não sai nem o fedor.
- E quem iria comer aquela desgraça, Tatá. Carne velha branca, adocicada, azulada, com uma catinga enjoada. Nem cachorro come quanto mais urubu. Só em falares já estão me dando náuseas. Muda de assunto. Diziam que os índios queimavam para não empestar o mundo de fedor azedo.
- É, tem razão. Além disso, um saco de doenças. De sífilis a bexiga braba. Deus nos livre.
- Vamos tentar comer outras coisas. Capim, frutas, folhas, qualquer outra droga.
- Não temos estômago para agüentar essas delicadezas, Teté.
- E o que iremos fazer?
- Voar, voar, voar e procurar descobrir onde andam os companheiros. Que diabo iremos fazer aqui sozinhos.
A verdade é que ficaram mais alguns dias. Uma fome danada. Papo completamente vazio. Num dos vôos de reconhecimento, entretanto, avistaram uma vaca estendida no chão, já nas últimas.
- Vamos esperar. Desta feita encheremos o papo. Pelo menos em poucos dias teremos uma boiazinha regular.
- Faltou a vaca Estrela. Caiam em campo. Aconteceu alguma coisa. Nunca faltou ao curral.
A certa distância a vaca estrela lá estava de canelas esticadas. Tatá e Teté, famintos, davam bicadas pelos locais mais acessíveis.
– “Olha lá, os pestes dos urubus estão estragando a carne. Desaforo. Emparelha os dois. - Ouviu-se o ronco da espingarda e Tatá e Teté, virou de pernas pro ar. – Vão comer carne no inferno”...

*Conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.
Maracajag@hotmail.com



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