sábado, 19 de maio de 2012

SECA 2012



SECA 2012

Secas, fenômeno climático que aterroriza as populações interioranas há tempos imemoriais, vetoras de catástrofes, inimiga pungente da qualidade de vida, artifício vergonhoso de uma indústria mais que secular.

A história das secas no nordeste brasileiro é antiga. Inúmeros registros descreveram com linhas fortes a ação inexorável da natureza sobre o homem do semiárido, pois diversas trouxeram o signo de tragédias indescritíveis.

A calamidade que atingiu o nordeste brasileiro quando da grande e inesquecível seca de 1877-1879, a qual na definição de Rodolfo Teófilo caracterizou-se por ter sido um dos mais castigante fenômeno de estiagem que atingiu a região nordestina, responsabilizou-se só no Ceará pela morte ou pela emigração de mais de 300 mil pessoas.

O ano de 2012 iniciou-se com uma incógnita: chuvas cairão para alento do heroico povo do semiárido? Poucos milímetros estão sendo registrados, mesmo assim impossíveis de garantir que a agricultura de subsistência abasteça com o excedente os centros urbanos, tendo em vista que o agrobusiness impera de forma avassaladora visando o mercado externo, com toda tecnologia de primeiro mundo que desdenha a necessidade da maioria da população que depende da química dos céus a fim de garantir o sucesso do plantio.

Seca lastimável, providências tétricas e patéticas que nem sempre cumprem papel democrático em assistir o imenso somatório de desafortunados que em um passado distante comoveram Jesuíno Brilhante, fazendo-o agir de forma Robinhoodiana nos sertões potiguares e paraibanos à base da força coercitiva dos seus bacamartes que ousaram com coragem a apontar bem no coração dos agentes a serviço da indústria das secas.

A calamidade que se agiganta, trazendo dia após dia agruras à população, provocadas com a seca de 2012, está sendo comparada ao que foi observado há trinta anos quando da indescritível estiagem que teve inicio em 1979 e adentrou de forma intolerável, desumana e horripilante até meados da década seguinte do século passado.

Dramático observar que a poesia de Patativa do Assaré, imortalizada pelo expoente maior da música regional nordestina, continua atualíssima. A fuga em direção a centros mais hospitaleiros do ponto de vista socioeconômico, de geração de emprego e renda, embora eivado de preconceitos, ainda continua a afligir mentes e corações daqueles que são por natureza apegados à terra, possuidores de relação telúrica extraordinária com o meio. 

Cotidianamente milhares de nordestinos desembarcam na porção mais rica da nação em busca de melhores condições de vida. Em inúmeros casos encontram condições de existência piores do que deixou em seu torrão natal. Subemprego e marginalidade passam a integrar de forma corriqueira as paisagens nas quais se inserem.

Triste constatar em nossas feiras que a lei da oferta e da procura rege as relações comerciais. O feijão, símbolo da agricultura familiar, alcança preços estratosféricos a cada dia que passa, frutos da indisponibilidade do produto em razão da ausência de chuvas.

Penoso é saber que a falta de critérios e de humanismo com a região nordeste em tempos de crises provocadas pelo drama climatérico ainda são constantes e tidos como naturais por aquela minoria que usurpou o poder e todas as benesses enquanto legados meticulosamente trabalhados desde a nossa formação socioeconômica.

* José Romero Araújo Cardoso, geógrafo, professor-adjunto do departamento de geografia do Campus Central da UERN.


segunda-feira, 7 de maio de 2012

ANIVERSARIO DE MEU PAI




ANIVERSÁRIO DE MEU PAI

Vinte de setembro. Relembrando esta data, me lembrei de Raimundo Correia, quando bateu a saudade:
Vai-se a primeira pomba despertada...
Vai-se outra mais... Mais outra... Enfim dezenas
Das pombas vão-se dos pombais, apenas
Raia sanguínea e fresca a madrugada

E à tarde, quando a rígida nortada
Sopra, aos pombais, de novo elas, serenas,
Ruflando as asas, sacudindo as penas,
Voltam todas em bandos e em revoada...

Também dos corações onde abotoam
Os sonhos, um a um, céleres voam,
Como voam as pombas dos pombais;

No azul da adolescência as asas soltam,
Fogem...Mas aos pombais as pombas voltam,
E eles aos corações não voltam mais.

Cento e dez anos faz hoje que nasceu meu pai – João Henriques da Silva.  Parece que estou vendo como se meu lar fosse um pombal e minha família em revoada partindo para outros sítios sem querer voltar, como os sonhos.

Partiu primeiro minha irmã Níobe, se avexou, não sei por que tanta pressa, ainda tinha tanto que fazer.
Depois lá se foi o Robério. Eita danado! Os cabras, seus leitores ficaram virado na peste. Reclamando das suas crônicas inteligentes.
 Aí quase beirando os cento e dois anos, partiu o Dr. João. Acho que realmente havia cumprido sua missão, já era tempo mesmo, já não aguentava ser mandado por ninguém.
De saudade; pouco tempo depois voou minha mãe, quase setenta e cinco anos de casada, e, como os pombos, não podiam jamais se separar, pois são monógamos, lá se foi ela atrás dele.
Não demorou muito, corre o Parsival a procurá-los, achando que os traria de volta. Também; não podia ir mais a rua trocar seus relógios. Desistiu!
Pela escala de idade, vivo dizendo que quem vai agora é minha irmã Ceres, mas se dana logo e diz que não pode, pois tem que ainda regurgitar para seus filhotes, - cada um mais velho do que ela.
 Isis a mais nova, fim de rama, não posso prever, apenas seguimos a ideia de que primeiro parte os mais velhos, então vamos deixar que o tempo se arrume com ela.
Aí fico eu, morrendo de inveja deles juntos lá em cima, e de saudade também, doido pra da um voo solo, e com medo de deixar meu poleiro sem ter cumprido minhas obrigações. 
Ah! Se a gente pudesse dominar o destino e previr o futuro! Mas seria bom? Como a gente iria enfrentar as presepadas do passado que deixamos de acertar contas? Era bom se Jesus tivesse resolvido deixar Lázaro vir contar pra gente. Nos dias de hoje era até fácil, danava um e-mail pro céu e rapidinho vinha à resposta, em forma de boleto, com todos os dados pra gente pagar, nalgum banco aqui da terra, ou nas prisões do dia a dia neste mundo de meu Deus.

Campina Grande, 20 de setembro de 2011
Grijalva Maracajá Henriques
maracajag@hotmail.com


CONVERSA DE URUBU




CONVERSA DE URUBU*

João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

            Dois urubus já sesquicentenários, filho naturais da serra da Maraba, nas Alagoas, sempre levaram vida folgada. Onde dormir, sempre tiveram. O local também não servia para outra coisa. A única preocupação era exclusivamente ter que andar girando no espaço para localizar alimento. Mas naqueles bons tempos não faltava. Havia sempre com certa abundância.
            Um boi ali, um cavalo velho acolá outro bicho qualquer que as doenças dizimavam. Tempão folgado. E entre a espécie sempre houve solidariedade. Onde comia um, comia um bando todo. A disputa era apenas pelas partes melhores, coisa, aliás, natural. Quem não quer o melhor? O casal era inseparável. Não havia rugas, nem desquite, nem nada. Uma vida normalíssima. Nasciam os filhotes, criavam-nos até aprender a voar e procurar alimentos.
            Daí por diante cada casal tomava seu destino. Não apareciam nem para pedir a benção aos pais.
            Total independência. Era norma geral da instituição urubuneana. E sempre deu certo. Mas os tempos foram mudando, a vergonha do povo foi se acabando, a ladroeira aumentando e perdem-se o controle de tudo.
            O casal de urubus – Tatá e Teté – começou a passar mal. Embora ainda quase na flor da idade, tinham suas grandes preocupações. Faltava comida. Riscavam o céu por todos os lados e nem sinal de carniça. Resolveram mudar de região. Permanecer seria um suicídio. Tentaram descobrir as causas da escassez. Rondavam o espaço e por fim lhes veio uma suspeita: Estava havendo uma concorrência desleal. Morrer bichos continuava morrendo, não tinham dúvida, mas não era mais para urubu.
            Morreu, morreu. Foi melhor. Não precisava matar. Era só esfolar, esquartejar e levar para o mercado. Carniça passava a ser alimento para o consumo público.
            - Viste teté, morreu de parto aquela vaca velha da fazenda do coronel, e nada sobrou pra gente.
            - Ora, Tatá, carniça hoje é carne de primeira para branco, preto de nossa marca, nem mais as tripas.
            E Tatá e Teté foram percorrendo espaços. A mesma desgraça.
            - Só tem um jeito, Tatá, é a gente ir morar na cidade, freqüentar as feiras e os açougues. Lá tem carniça com fartura.
            - E dinheiro, Teté. Onde iremos buscar. Um quilo de carniça está custando os olhos da cara. Vamos correr mundo. Não é possível que esteja tudo assim. Pode ser que ainda haja alguém com vergonha na cara, por aí a fora.
            - Difícil. Mas em todo caso, vamos voar, pois andando não da mais.
            Tatá e Teté, de papo vazio volteavam por toda parte. Era sempre a mesma conversa. Bicho morria sim senhor, mas não sobrava pra urubu. Feira, mercado, gente comprando carniça das mãos dos ladrões e urubu morrendo de fome. No meio da carne melhor iam às mantas de carniça.
            Os mais pobres e os menos experientes compravam aquela desgraça e lá vinham os distúrbios e as intoxicações.
- Tatá, não tem jeito. Vamos morrer de fome. É uma miséria. A urubuzada sumiu. Vamos cair no mundo. Deve haver ainda algum lugar de gente honesta e caridosa.
- Difícil Teté. Está tudo contaminado. De cima até em baixo.
O que podia nos salvar era carne de gente. Mas enterram a sete palmos de fundura ou dentro de quatro paredes donde não sai nem o fedor.
- E quem iria comer aquela desgraça, Tatá. Carne velha branca, adocicada, azulada, com uma catinga enjoada. Nem cachorro come quanto mais urubu. Só em falares já estão me dando náuseas. Muda de assunto. Diziam que os índios queimavam para não empestar o mundo de fedor azedo.
- É, tem razão. Além disso, um saco de doenças. De sífilis a bexiga braba. Deus nos livre.
- Vamos tentar comer outras coisas. Capim, frutas, folhas, qualquer outra droga.
- Não temos estômago para agüentar essas delicadezas, Teté.
- E o que iremos fazer?
- Voar, voar, voar e procurar descobrir onde andam os companheiros. Que diabo iremos fazer aqui sozinhos.
A verdade é que ficaram mais alguns dias. Uma fome danada. Papo completamente vazio. Num dos vôos de reconhecimento, entretanto, avistaram uma vaca estendida no chão, já nas últimas.
- Vamos esperar. Desta feita encheremos o papo. Pelo menos em poucos dias teremos uma boiazinha regular.
- Faltou a vaca Estrela. Caiam em campo. Aconteceu alguma coisa. Nunca faltou ao curral.
A certa distância a vaca estrela lá estava de canelas esticadas. Tatá e Teté, famintos, davam bicadas pelos locais mais acessíveis.
– “Olha lá, os pestes dos urubus estão estragando a carne. Desaforo. Emparelha os dois. - Ouviu-se o ronco da espingarda e Tatá e Teté, virou de pernas pro ar. – Vão comer carne no inferno”...

*Conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.
Maracajag@hotmail.com



RESPOSTA À REVISTA VEJA





RESPOSTA À REVISTA VEJA
Abaixo estou enviando uma cópia da carta escrita por uma professora que trabalha  no Colégio Estadual Mesquita, à revista Veja. Peço por favor que repasse a todos que conhece, vale a pena ler.
ALexandre Ferreira
Sou professora do Estado do Paraná e fiquei indignada com a reportagem da jornalista Roberta de Abreu Lima “Aula Cronometrada”. É com grande pesar que vejo quão distante estão seus argumentos sobre as causas do mau desempenho escolar com as VERDADEIRAS  razões que  geram este panorama desalentador. Não há necessidade de cronômetros, nem de especialistas  para diagnosticar as falhas da educação. Há necessidade de todos os que pensam que: “os professores é que são incapazes de atrair a atenção de alunos repletos de estímulos e inseridos na era digital” entrem numa sala de aula e observem a realidade brasileira. Que alunos são esses “repletos de estímulos” que muitas vezes não têm o que comer em suas casas quanto mais inseridos na era digital? Em que  pais de famílias oriundas da pobreza  trabalham tanto que não têm como acompanhar os filhos  em suas atividades escolares, e pior em orientá-los para a vida? Isso sem falar nas famílias impregnadas pelas drogas e destruídas pela ignorância e violência, causas essas que infelizmente são trazidas para dentro da maioria das escolas brasileiras. Está na hora dos professores se rebelarem contra as acusações que lhes são impostas. Problemas da sociedade deverão ser resolvidos pela sociedade e não somente pela escola. Não gosto de comparar épocas, mas quando penso na minha infância, onde pai e mãe, tios e avós estavam presentes e onde era inadmissível faltar com o respeito aos mais velhos, quanto mais aos professores e não cumprir as obrigações fossem, escolares ou simplesmente caseiras, faço comparações com os alunos de hoje “repletos de estímulos”. Estímulos de quê?  De passar o dia na rua, não fazer as tarefas, ficar em frente ao computador, alguns até altas horas da noite, (quando o têm), brincando no Orkut, ou, o que é ainda pior, envolvidos nas drogas. Sem disciplina seguem perdidos na vida.
Realmente, nada está bom. Porque o que essas crianças e jovens procuram é amor, atenção, orientação e disciplina.
Rememorando, o que tínhamos nós, os mais velhos,  há uns anos atrás de estímulos? Simplesmente: responsabilidade, esperança, alegria. Esperança que se estudássemos teríamos uma profissão, seríamos realizados na vida. Hoje os jovens constatam que se venderem drogas vão ganhar mais. Para quê o estudo? Por que numa época com tantos estímulos não vemos olhos brilhantes nos jovens? Quem, dos mais velhos, não lembra a emoção de somente brincar com os amigos,  de ir aos piqueniques, subir em árvores?
E, nas aulas, havia respeito, amor pela pátria... Cantávamos o hino nacional diariamente, tínhamos aulas “chatas” só na lousa e sabíamos ler, escrever e fazer contas com fluência.
Se não soubéssemos não iríamos para a 5ª. Série. Precisávamos passar pelo terrível, mas eficiente, exame de admissão. E tínhamos motivação para isso.
Hoje, professores “incapazes” dão aulas na lousa, levam filmes, trabalham com tecnologia, trazem livros de literatura juvenil para leitura em sala de aula (o que às vezes resulta em uma revolução),  levam alunos à biblioteca e a outros locais educativos (benza, Deus, só os mais corajosos!) e, algumas escolas públicas onde a renda dos pais comporta, até a passeios interessantes, planejados minuciosamente, como ir ao Beto Carrero.
E, mesmo, assim, a indisciplina está presente, nada está bom. Além disso, esses mesmos professores “incapazes”, elaboram atividades escolares como provas, planejamentos, correções nos fins de semana, tudo sem remuneração;
Todos os profissionais têm direito a um intervalo que não é cronometrado quando estão cansados. Professores têm 10 minutos de intervalo, quando têm de escolher entre ir ao banheiro ou tomar às pressas o cafezinho. Todos os profissionais têm direito ao vale alimentação, professor tem que se sujeitar a um lanchinho, pago do próprio bolso, mesmo que trabalhe 40 h.semanais. E a saúde? É a única profissão que conheço que embora apresente atestado médico tem que repor as aulas.Plano de saúde? Muito precário.
Há de se pensar, então, que  são bem remunerados... Mera ilusão! Por isso, cada vez vemos menos profissionais nessa área, só permanecem os que realmente gostam de ensinar, os que estão aposentando-se e estão perplexos com as mudanças havidas no ensino nos últimos tempos e os que aguardam uma chance de “cair fora”.Todos devem ter vocação para Madre Teresa de Calcutá, porque por mais que  esforcem-se em ministrar boas aulas, ainda ouvem alunos chamá-los de “vaca”,”puta”, “gordos “, “velhos” entre outras coisas. Como isso é motivante e temos ainda que ter forças para motivar. Mas, ainda não é tão grave.
Temos notícias, dia-a-dia,  até de agressões a professores por alunos. Futuramente, esses mesmos alunos, talvez agridam seus pais e familiares.
Lembro de um artigo lido, na revista Veja, de Cláudio de Moura Castro, que dizia que um país sucumbe quando o grau de incivilidade de seus cidadãos ultrapassa um certo limite.
E acho que esse grau já ultrapassou. Chega de passar alunos que não merecem. Assim, nunca vão saber porque devem estudar e comportar-se na sala de aula; se passam sem estudar mesmo, diante de tantas chances, e com indisciplina... E isso é um crime! Vão passando série após série, e não sabem escrever nem fazer contas simples. Depois a sociedade os exclui, porque não passa a mão na cabeça. Ela é cruel e eles já são adultos.
Por que os alunos do Japão estudam? Por que há cronômetros? Os professores são mais capacitados? Talvez, mas o mais importante é  porque há disciplina. E é isso que precisamos e não de cronômetros.  Lembrando: o professor estadual só percorre sua íngreme carreira mediante cursos, capacitações que são realizadas, preferencialmente aos sábados. Portanto, a grande maioria dos professores está constantemente estudando e aprimorando-se. Em vez de cronômetros, precisamos de carteiras escolares, livros, materiais, quadras-esportivas cobertas (um luxo para a grande maioria de nossas escolas), e de lousas, sim, em melhores condições e em maior quantidade..
Existem muitos colégios nesse Brasil afora que nem cadeiras possuem para os alunos sentarem. E é essa a nossa realidade!  E, precisamos, também,urgentemente de educação para que tudo que for fornecido ao aluno não seja destruído por ele mesmo
Em plena era digital, os professores ainda são obrigados a preencher os tais livros de chamada, à mão: sem erros, nem borrões  (ô, coisa arcaica!), e ainda assim se ouve falar em cronômetros. Francamente!!!
Passou da hora de todos abrirem os olhos  e fazerem algo para evitar uma calamidade no país, futuramente. Os professores não são culpados de uma sociedade incivilizada e de banditismo, e finalmente, se os professores  até agora  não responderam a todas as acusações de serem despreparados e  “incapazes” de prender a atenção do aluno com aulas motivadoras é porque não tiveram TEMPO.
Responder a essa reportagem custou-me metade do meu domingo, e duas turmas sem as provas corrigidas.
Vamos fazer uma corrente via internet, repasse a todos os seus!
 Grata
 Vanessa Storrer - professora da rede Municipal de Curitiba.

Vamos começar uma corrente nacional que pelo menos dê aos professores respaldo legal quando um aluno o xinga, o agride... Chega de ECA que não resolve nada, chega de Conselho Tutelar que só vai a favor da criança e adolescente (capazes às vezes de matar, roubar e coisas piores), chega de salário baixo, todas as profissões e pessoas passam por professores, deve ser a carreira mais bem paga do país, afinal os deputados que ganham 67% de aumento tiveram professores, até mesmo os "alfabetizados funcionais". Pelo amor de Deus somos uma classe com força!!! Somos politizados, somos cultos, não precisamos fechar escolas, fazer greves, vamos apresentar um projeto de Lei que nos ampare e valorize a profissão.


sexta-feira, 4 de maio de 2012

O GRÁ




O GRÁ*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

            Graciliano – o Grá – tinha a mania de ostentar grandeza. Mal os seus rendimentos davam para comer com a mulher e os filhos, mas, fazia ginásticas, dava saltos mortais para todos os lados contanto que estivesse sempre em evidencia. Havia de comparecer a reuniões, festas sociais e políticas, e bem apresentável. Não tinha raiva de pobre, mas detestava pobreza. Não entendia como se podia ser pobre, uma coisa feia, feia e humilhante.
            Farejava festas e mesmo sem lavadeira e engomadeira, tinha que estar presente, com terno limpinho e bem passado. A mulher que cuidasse da casa, dos filhos e, rigorosamente, de suas roupas. As calças haviam de estar com os vincos certinhos e as golas e os colarinhos sem vestígios de ruga. A coitada já vivia esfalfada de tanta luta e tanta exigência. Mesmo grávida, com o barrigão pelos ares, tinha que se curvar sobre a mesa de engomar e secar a boca de soprar as brasas do ferro a carvão para deixar, brilhando a ilustre roupa do Grá.
Considerava a mulher uma sua serviçal e não admitia desculpas no tocante a qualquer pequeno defeito nos seus ternos. Queria-os escovados, limpos, na maior correção. Até o lencinho branco, de seda do bolsinho do paletó havia de estar dobradinho e com as quatro pontas bem iguaizinhas aparecendo. E nem se falasse nos sapatos que teriam de estar engraxados e lustrosos.
            Dona Margarida havia de largar tudo, inclusive o almoço dos filhos para cuidar religiosamente da farpela do marido que, além do mais lhe tomava os restinhos da loção que ela guardava para uma ou outra saída casual. Dona Margarida já não agüentava mais as impertinências do marido, um inútil, vaidoso, e abobalhado. Não tinha prestigio político nada sabia além da rotina do emprego na Prefeitura, um empreguinho do qual não saia. Melhoria, nem se falava, a não ser quando havia um reajuste geral. Havia de dar um jeito naquela vida de escrava. Os dois ternos velhos não suportavam mais o vai e vem do ferro de engomar, Estavam prestes a se puir. E seria um Deus nos acuda.
            - Olha, Grá, essas tuas roupas não agüentam mais ferro e nem eu suporto mais viver debruçada tirando pregas de tuas roupas. Cuida em arranjar outras ou então vai logo te preparando para o pior. Não tardará em se puírem.
            - Nem me fales nisto. E usa mão leve. Não posso perder reuniões e não tenho como comprar outras. A Prefeitura é uma miséria, não da um aumento e quando o faz é para beneficiar os parentes e os chaleiras.
            - Esta tua conversa é muito velha. O que há é que não fazes por onde merecer. Isto sim. E prepara-te. As golas estão se puindo. E já estou de braços doídos. Parece que não estás vendo meu sacrifício.
            - Será que não queres zelar o teu marido, ajudando a conviver com a nata social da cidade?
            - Olha, chegou a hora de ser franca contigo. Estou para ir para casa de meus pais com os dois meninos. Não me casei para ser escrava de ninguém e esta tua vida de maníaco me enjoa. Arranja logo quem passe ferro. Eu, mais não! As golas estão se puindo e não quero que seja em minhas mãos. Já cansei de tanto alisa, alisa e de tanta reclamação.
            - Tens paciência, mulher, são coisas da vida. Nasci para ser rico ou pelo menos para levar vida de rico.
            - Explorando minha paciência, mas não. Já estou saturada dessa tua vaidade de doido. Por que não baixas logo a cabeça e toma o teu verdadeiro lugar. Um liso, com um paletó velho já se puindo e metido a cavalo-do-cão.
            - Seria minha maior infelicidade, meu maior infortúnio. O que iriam pensar de mim, quando estou no auge da contemplação privando dos melhores ambientes sociais e políticos.
            Com menos de um mês os paletós se puíram. Grá levou-os ao alfaiate para mudar as golas. Não havia alternativa.
            - Não, não tem mais jeito. Só outros. Compre logo uns ternos novos. Um homem como o senhor, cheio das granas e ainda pensa em fazer um aproveitamento desta ordem. Para que quer o dinheirão. Bote as notas para fora. Quer logo ver uns cortes de casimira? Tenho-os de primeiríssima e por preço antigo.
            - Não, não, vamos deixar para depois. Também aqui não se tem muito aonde ir...
            - É, mas às vezes, um convite, uma missa solene, um enterro. Sabe como é, se o senhor não comparece ficam reparando. Outro, não, mas logo o senhor das altas esferas. Pelo menos um terno.
            - Volto depois. O senhor tem razão. Não posso faltar a certos atos e solenidades.
            Intimamente Grá estava arrasado, aniquilado. Não dispunha sequer do magro dinheirinho da feira e aquele filho de uma luvana querendo vender um terno novo. Se aquele safado soubesse como ando nem tocaria no assunto. Cadê que se prontificou a fazer o terno fiado. Mas pensa, pela minha própria ostentação, que sou um sujeito rico e quer é dinheiro. Só se for buscar em casa do diabo. A mulher é que está certa. Se eu fosse um sujeito humilde compraria fiado ou a prestação, mas sou um pelado metido a besta e o resultado é este. E agora para me sair desta, vai ser muito difícil. Logo em cidade pequena em que se sabe e se vê tudo. Cada um deve ser mesmo o que é. E o pior é que os joelhos das calças estão se puindo também. Não vestir paletó, passa, mas sem calça, não há como. Só haverá uma saída, que é mudar de cidade. Mas, como, se o ganha pão é aqui mesmo.
- Nunca pensei mulher, que essas roupas durassem tão pouco. Pois não é. Apenas seis anos de uso...
            - Duraram até demais e acabaram com as minhas forças. Deveriam ter se acabado muito antes.
            - E o que vou fazer para ir ao emprego. Na Prefeitura exigem paletó e gravata.
            - Compra uma roupinha de brim e mete-se no teu lugar. Pobre metido a rico é isto mesmo. Cai nestas. Afunda-se antes de tempo.
            Com um ternozinho de brim barato, Grá entrou na Prefeitura desconfiado. Parecia que todos olhavam para ele, avalizando-o dos pés à cabeça.
            - Vejam só como seu Grá está tão mudado. Andando no brinzinho pardo.
            - Também a casimira dele já estava muito surrada.
            O Grá notava que havia comentários a seu respeito e deveria ser em face da mudança de farpela. Tomou a iniciativa, então, de dar uma satisfação. O clima quente da estação seria um bom motivo.
            - A gente só aprende vivendo. Sofri muito mormaço antes metido naquelas roupas quentes. Foi a mulher que me advertiu e quase me obrigou a mandar confeccionar este terno de brim. E que diferença. Uma roupa fresca, arejada, leve. Quando tempo perdi e só por falta de idéia e lembrança! Nunca mais visto roupa pesada.
            Mas já estávamos tão habituados a vê-lo enfatiotado na casimira, que estávamos estranhando. Sabíamos que alguma coisa estaria acontecendo. Além disso, casimira está custando hoje uma fortuna.
            - Não, por isto não. Por mim, neste particular tanto faz como tanto fez. Dinheiro só serve mesmo para satisfazer desejos. No entanto, despedi-me de roupas grossas e quentes. Nunca mais. Daqui por diante é no brim e cada vez mais leve e arejado. Creio que perdi muitos anos de vida.
            Dias depois correu a notícia trágica. Morrera subitamente o Sr. Prefeito, chefe do Grá. E agora, sem uma roupa preta ou escura para acompanhar o enterro. O paletó mais escuro com a gola esfarrapada e a calça com os joelhos se puindo. E não podia faltar. Seria uma falta imperdoável. Ir de roupa de brim, quando todo mundo ia de roupa escura ou preta. Uma gafe dos diabos e uma vergonha.
- E agora, mulher? O que diabo vou fazer. Como é que aquele desazado vai morrer logo numa fase desta. E o enterro é amanhã à tarde. Enterro de rico. E eu somente eu de roupa clara e logo de brim.
            - Dá-se um jeito, Grá.  Tua cabeça não da para nada. Juízo mole. Vai comprar um pacote de tinta de tingir e amanhã te darei um terno preto.
            - És uma santa, menina. Deus te conserve.
            E dona Margarida meteu a roupa na tinta, colocou-a para enxugar e pela manhã passou ferro.
            - Um brinco de roupa, Margarida. Imagina se não tivesse casado contigo.
            E a tarde seu Grá estava pegando na asa do caixão. Precisava dar uma demonstração de amizade e prestígio.
            Por dentro sofria a maior decepção de toda sua vida. Ninguém estava de preto ou de roupa escura. Cumpria-se um pedido do morto e da família. Não queria luto no seu enterro, pois tornava o ato mais triste ainda.
            E Grá era como um pingo de tinta nanquim numa toalha branca. Não sabia onde se socar. Era um desinformado de tudo e por culpa exclusiva de suas manias de riqueza.
            Emocionado, e, em parte, feliz com a idéia da mulher, nem se lembrava do trabalho.
            - Como é, Grá. Não vais hoje a Prefeitura.
            - Que coisa, mulher. Nem me dava conta disso. Minha roupa.
            - Está no teu quarto onde deixaste.
            Quando Grá viu o pretume, assustou-se. Ir para o trabalho com a roupa do enterro e aquele pretume de coisa tingida de novo. Que horror. O enterro foi ontem.
            - Chega mulher, me socorre. A roupa tingida dava certo para o enterro e agora, como é que vou trabalhar feito um urubu. Nossa mãe. Pobre é uma desgraça! E o pior é um pobre metido a rico. Só passa decepções. Imagina Margarida, ir à repartição, com a mesma roupa do enterro.
            - Está visto que és mesmo a maior incapacidade criativa que conheço.
            - Como, Margarida. Julgas-me tão burro assim?
            - Vai à cidade e me compras uma tira de pano preto. Farei uma tarja para colocar em tua mesa em sinal de sentimento. De luto. Então estarás de preto pelo mesmo motivo.
            - És uma mulherzinha formidável!
            Grá entrou na Prefeitura como uma tarja. Preto como um frango de urubu. Lustroso. E notou que todos olharam para ele com admiração.
            - O que é que há seu Grá?
            - Uma homenagem ao grande chefe!
            - Mas ele odiava a cor preta. É melhor ir para casa trocar de roupa e faça o favor de retirar essa bandeirinha preta e agourenta de cima da mesa. É uma desatenção ao pedido do chefe. E vá para casa trocar o terno. Nada de luto, nada de preto aqui dentro.
            - Chega Margarida. Outra decepção. É proibido entrar de preto na Prefeitura. O homem não tolerava preto. Nunca empregou um negro e o que lá existia, demitiu. Tira depressa esse pretume do meu terno.
            - Ah! Isso não. É impossível. A tinta preta é indelével.
            - E então?
            - Toma meu novo conselho.
            - Qual. O que?
            - Veste o terno de casimira velho. É a solução. Nesses dias de tristeza, ninguém vai reparar. Está puído na gola, mas isso passará despercebido.
            Entonou-se e voltou. Entrou na sala, fazendo-se de ignorado e indiferente.
            - Olá seu Grá. Anda com frio num tempão quente deste?
            - Que nada. Saudades. Coisa impossível da gente se livrar. Quando aperta faz o que quer. Minha mulher ficou revoltada, mas, tive que contrariá-la. É muito difícil esquecer os velhos amores.
            Pedia às doze mil virgens que o expediente terminasse para ver-se livre dos olhos dos curiosos.
            - É! Eu mesmo gosto do meu pijama velho já todo puído. Quando não me deito com ele o sono custa a chegar...
            - Pois não é. Meu guarda-roupa está lotado de ternos, mas não resisti à tentação de me entonar nesta jóia.
            - Posso propor-lhe uma coisa?
            - Pode sim.
            - Tenho amanhã que comparecer a uma festinha de aniversário e estou sem poder ir à falta de um terno adequado. Amanhã passarei lá e me emprestará um. Só por uma noite. Nosso corpo veste o mesmo figurino. Creio que não me vai negar.
            - Olha, é uma pena, mas tenho uma horrível superstição. Emprestar roupa dá uma azar dos diabos. Por isto, desculpe-me.
            - Tenho que mandar confeccionar um terno e gostaria de escolher um padrão que me agradasse da melhor forma. Creio que não irás me negar o prazer de ver os teus, pra uma escolha acertada.
            - É muito pior e além, disso não gosto que façam roupas iguais às minhas.
            - Mas, Grá, que falta de companheirismo. Pois se queres ver meu guarda-roupa, vai lá quando entenderes.
            Coitado do Grá, não se agüentava mais com a tradição de riqueza. Foi para casa revoltado e decepcionado.
            - Vem cá, Margarida. Olha, teus conselhos foram excelentes, mas tudo deu errado. Acontece tudo exatamente o contrário de minhas previsões. Vamos embora desta terra e para bem longe. Não tenho mais jeito de comparecer à Prefeitura. Ali só tem patife, depois que o chefão enterrou-se. Está todo mundo botando as unhas e a cara cínica de fora. Não deixam em paz as minhas roupas. Todo o dia tem um sacrísta para fazer apreciações. Lá não irei com este abafador e nem com o terno preto. E agora...
            - Ora, Grá, já está tudo resolvido. Troquei teu terno preto por um de brim azulado. Só que me parece um pouco apertado para teu corpo.
            - E com que quem?
            - Foi do defunto Epaminondas. Morreu, deixou-o e o filho estava sem poder comprar um pro luto. Ficou exultante. Vem dar uma prova.
            Grá apressou-se em vestir o novo terno. Era de fato um pouco justo, mas dava para quebrar o galho. O maior defeito era ser um tanto comprido. As mangas do paletó quase lhe cobriam as mãos, mas havia de disfarçá-las.
            No dia seguinte, depois de elogiar dona Margarida, saiu para o emprego. Queria saber se ainda iria aparecer um safado para fazer reparos. Entrou assobiando baixinho, querendo solfejar uma canção da moda e foi logo topando com o pior dos safadórios da Prefeitura. Teve logo uns arrepios. Iria sair indireta.
            - Muito bem seu Grá, de terno novo? Está botando o guarda-roupa pra fora. E é engraçado, esse terno é igualzinho um de seu Epaminondas que foi enterrado na semana passada. Só que ele era um pouco mais alto, mais magro e tinha os braços compridos. Mesma padronagem e o formato da gola o mesmo. Era também de três botões. É por isto que não faço e nem nunca fiz roupa igual as dos outros. O homem morreu e fica-se pensando que o defunto era mais magro.
            Seu Grá não deu atenção nem resposta. Apenas teve pena de não possuir uma arma para botar os fatos de um na poeira.
            Chegou em casa pisando alto, querendo bater até no vento e dando rabissaca na pobre da mulher.
            - Calma muita calma, Grá. Nada de violência. Estás pagando pela tua vaidade de querer ser rico sem ser. Vou fazer economia para comprar roupas novas e decentes. Deixa que me viro.
            - Virar como, Margarida?
            - Já estás pensando no pior. E se fosse o que estás pensando, não seria melhor do que andares humilhado.
            - Tem razão, mulher. Todo caminho da na venda.
            - Há, é assim, não é, pois queria somente te experimentar. Então para andar bem enfatiotado não te incomodaria se eu me prostituir-se?
            - Nada disso. Apenas não queria discordar. Tens sido tão boa para mim que até admitiria esse teu sacrifício. Afinal de contas ninguém iria te arrancar pedaços. Parece que não sabes ainda o quanto vale um terno novo.
            E na semana seguinte, o Grá entrou na Prefeitura, enfatiotado numa roupa nova...
Em 29.10.1986

*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo


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quinta-feira, 3 de maio de 2012

O JUIZ




O JUIZ*

                                                                                                                João Henriques da Silva
                                                                                         (In Memoriam 20/09/1901 - 16/04/2003

            Sertão brabo da Paraíba. Para se chegar até lá tinha que varar caatinga, cariris e tabuleiros em costas de burro durante dias. E levar o farnel. Descansar debaixo de árvores e ter que alcançar local onde houvesse água para matar a sede. Cidades muito distantes umas das outras, medindo-se por léguas os estirões. Nos períodos secos, então, tudo se agravava. Traçar previamente o itinerário e ainda mais, andar cauteloso para escapar dos bandoleiros que infestavam os sertões.
            A fome e a miséria completa obrigavam a pegar no pau-furado para tomar de quem tivesse. Foi numa dessas fases críticas que o governo nomeou um bacharel recém – formado, juiz de uma cidade tradicional do alto sertão.
            Moço pobre teve que enfrentar os perigos da viagem por uma região inteiramente desconhecida. Após dias no lombo de uma montaria, guiado por um bagageiro.
             Dr. Antonio Bento, procurava um local para repouso e descanso dos animais. Extenuado e com saudades de casa, tinha a impressão que já estava perdido no oco do mundo e que havia dobrado a linha onde o sol se põe. Já deveria estar fazendo a volta para o outro lado da terra.
             Precisava do emprego e futuramente, se acertasse o caminho, estaria de volta. Era necessário começar. Aliás, havia sido nomeado porque ninguém aceitara o lugar.
            Bem a margem de um riacho, com seus velhos juazeiros, faziam uma boa sombra. Botou-se para lá sob a orientação de seu portador. Já havia gente arranchada. Um cavalariano, isto é, um negociante de cavalos. Não teve saída. Pergunto se poderia descansar também ali.
            - Pois não, - respondeu um sujeitão de cara grossa, queimado de sol, sem ser gordo, de fala arrastada, bicho sisudo. Dr. Antonio Bento, apreensivo, diante do brutamonte e do aspecto dos seus tangerinos, desceu do cavalo, segurando as calças. E não era para menos. Numa altura daquela, num ambiente daquele tinha mesmo que assustar-se. Poderia ser ali o fim de sua viagem de Juiz. Logo depois tudo mudou. Apesar do estupor do homem que enfrentava, era um sujeito agradável, cordial e passou a sentir-se amparado. Convidou-o para o almoço e terminaram comendo juntos. Armadas as redes nos galhos das árvores, veio à conversa sobre a vida de cada um. Dr. Antonio Bento criara alma nova. Narrou às peripécias da viagem, a primeira que fazia sertão a fora, o cargo que iria exercer, falou sobre sua família e as impressões a que vinha tendo do sertão.
            Ananias Cordeiro, o cavalariano, esmiuçou também a sua vida. Conhecia todos aqueles sertões. De muito tempo ocupava-se em comprar e vender cavalos. Cavalos só, não, burros também. E já ia de volta para o lado dos engenhos com um bom lote de burros. Dava bom dinheiro nas vésperas das moagens, para a cambitagem de cana.
            Ananias já pensava em mudar de profissão. Além de arriscada era trabalhosa. Sempre a andar para comprar e vender. Ao mesmo tempo condoeu-se do Dr. Antonio Bento. Pois como era que um moço daquele, saído de uma faculdade ia meter-se num fim de mundo daquele, terra de cabra valente, longe da família, arriscando-se a tudo. E, então, fez-lhe uma proposta:
            - Dr. Antonio Bento. Não faça isso. Volte daqui. O senhor tão moço, inteligente e formado, um jovem de futuro, metido numas brenhas dessa. Não dá doutor. Não dá mesmo. Faço um negócio como o senhor. Tome meu conselho. Volte daqui. Sertão é para um cabra bruto de minha marca, grosso como sou. Volte para a capital, vá advogar por lá, ter a vida que o senhor merece e sua família deseja. Não faça isso, volte daqui.
            - Não tenho como, senhor Ananias. Sou de família pobre e nem terei como começar.
            - Quem é inteligente como o senhor e novo como é não lhe faltará oportunidade. Dar-lhe-ei os meios, faremos uma permuta. O senhor me dá a portaria de nomeação e eu lhe darei toda a cavalhada e parte do dinheiro que tenho. O meu pessoal sabe onde vender a bom preço. O senhor volta e eu irei ser o Juiz em seu lugar. Não posso admitir que um homem como seja o senhor vá se meter num fim de mundo daquele, tendo um grande futuro pela frente. O nosso encontro, Deus marcou para salva-lo. São 42 burros novos e bons. O senhor deve levar por aí alguns livros de direito. Entrarão na troca, aqueles que o senhor julgar mais necessário especialmente um tal de Código. Com pouco tempo decoro um bocado de coisas. Como Juiz, darei minhas decisões e ninguém será besta para desobedecer. E, aliás, o mais fácil é não condenar ninguém. Dependerá dos amigos e da política. Da para ajeitar muito bem a coisa, Dr. Antonio Bento.
            Por fim, o Dr. Antonio Bento convenceu-se de que Ananias tinha razão. Tocou de volta. Vendeu a burralhada e mandou-se para Recife. Lá se tornou um advogado de nomeada.
            Ananias Cordeiro instalou-se como Juiz, e, como um Juiz daqueles tempos era uma espécie de coisa sagrada, era respeitado. Os seus julgamentos eram preparados antes do júri e ditado pelos chefes políticos. Não havia possibilidade de erro. Quem não quisesse mofar na cadeia que respeitasse os chefes locais. Os jurados eram escolhidos a dedo. Não havia necessidade de complicações. A vida já era cheia de problemas e porque complicar. Lá, ainda mais. Prende o homem, solta o homem, e acabou a história. Tudo muito simples e natural.              Tornou-se notável. E popularizou-se. Andava sempre com camisas de mangas longas, desabotoadas, inclusive os punhos desbengolados. Moreno, grossão andava pela cidade como se estivesse no quintal, arrastando uns chinelões de couro. Conheci-o assim; depois de muitos anos foi transferido para outra Comarca. Houve lá, então, um processo rumoroso de indenização: danos e perdas contra uma empresa poderosa.
            Providenciou uma sentença arrasadora contra a mesma. Houve apelação. O tribunal confirmou a sentença diante do brilhantismo da mesma. Criou maior notoriedade.
            - Doutor, a sua sentença foi uma das mais notáveis já oferecidas por um Juiz. O senhor está de parabéns.
            - Sabe de uma coisa, pedi para fazer aquilo e nem cheguei a ler. Por sinal foi elaborada pelo advogado do reclamante, uma das maiores autoridades jurídicas da época.
            Coisa mesmo de cavalariano. O fato é que se aposentou como Juiz de Terceira Entrância, graças ao brilhantismo de sua última sentença... Está vivendo na Santa paz do Senhor. Foi um ótimo Juiz e é uma criatura boníssima.
            
* Este conto pertence ao livro "Vidas Nordestinas", no prelo.

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