quarta-feira, 20 de agosto de 2025

DICOTILEDÔNEA

 

DICOTILEDÔNEA

 

Esse nome me fascinava. Era como um pedaço de mim que desconhecia. Vivi, até pouco tempo, desencantado da vida porque não soubera desmistificar seu segredo. Por falta de tempo ou por vagabundagem mental. Desprezei-a, mas quando alguém pronunciava seu nome ou então lia por aí, me dava uma ciumeira da gota serena. Esse nome era meu. Havia descoberto sozinho aos poucos anos de vida quando aprendi a ler e a mexer nos alfarrábios do meu pai. Eram centenas de livros, revistas folhetos e muito mais coisas distribuídas em várias estantes, todas fechadas e com portas de vidros, como para mostrar a riqueza escondida. Os bichos eram em inglês, espanhol, francês, tupi guarani e no bom e velho português. Tinha sobre todos os assuntos, no começo procurava principalmente aqueles que tinham figuras coloridas. Folheava, no começo as escondidas, meu pai gostava mais dos livros do que da pirralhada, acho! O tempo foi passando e eu perpendicularmente acompanhando por muito tempo esses queridos livros dele.  Viajaram como turistas junto a gente, de rua em rua de cidade em cidade e de estado em estado, como se fosse gente mesmo. Era um amor sem fim que meu pai dedicava a aquelas milhares de letras pintadas no papel branco, as vezes já meio amarelado pelo tempo, traduzindo a fantástica “Ideia” posta no papel e aí me lembro do Augusto, que o conheci dentro daquelas estantes:

De onde ela vem? De que matéria bruta
Vem essa luz que sobre as nebulosas
Cai de incógnitas criptas misteriosas
Como as estalactites duma gruta?!

Vem da psicogenética e alta luta
Do feixe de moléculas nervosas,
Que, em desintegrações maravilhosas,
Delibera, e depois, quer e executa!

Vem do encéfalo absconso que a constringe,
Chega em seguida às cordas da laringe,
Tísica, tênue, mínima, raquítica…

Quebra a força centrípeta que a amarra,
Mas, de repente, e quase morta, esbarra
No mulambo da língua paralítica!

Era por isso que meu pai tinha tanto cuidado e amor pelas ideias dos outros que estavam escritas; seguimos seus rastros, juntando qualquer pedaço de papel rabiscado até agora.  Aí vem um dos maiores poetas de pareia com Augusto, o fabuloso Castro, dizendo:

Oh! Bendito o que semeia
Livros... livros à mão cheia...
E manda o povo pensar!
O livro, caindo n'alma
É germe – que faz a palma,
É chuva – que faz o mar!

E eu na minha insignificância ainda pensando o que poderia ser dicotiledônea. Entre milhares de milhares de palavra, apenas essa ficou gravada na minha obtusa memória. O tempo passa sorrateiramente pela gente e o “mundo não poupa, o tempo cobra caro não perdoa juros nem dá prazo a gente” como dizia o poeta. Segui em frente, as vezes de banda, pegando atalhos para poupar tempo, fui indo e sempre pensando nos caminhos que trilhei. Coisa que a gente não pode esquecer durante nossa caminhada.

Depois de cansado e atrevido me meti a besta e fui estudar o ramo da ciência que meu pai dedicou por oitenta e mais anos. Chamado de: O conjunto das ciências e dos princípios que regem a prática da agricultura; no mesmo estado onde ele lutou para aprender seus vastos conhecimentos do curso na Escola Superior de Agronomia e Medicina Veterinária de Belo Horizonte. Cheguei perto, fiquei por Caratinga, onde ainda estou pelejando, e, por atrevimento, achando pouco, fui complementar para entender o que meu pai nos ensinava, o curso de Zootecnia na Universidade Federal da Paraíba Campus de Areia. Isso tudo à procura do meu dourando sonho: o que Bixiga da gota serena é Dicotiledônea?

E o pior era que sempre fui um transeunte durante meus oitenta anos, entre suas belíssimas, raízes, caules, flores, frutos, sementes e folhas. Mas mesmo assim, ainda não sabia distinguir o que era a danada da dicotiledônea.

Aí veio a ciência para dirimir de vez por todas minhas dúvidas e de qualquer quadrupede que deseje conviver sabiamente com a mãe natureza.

Dicotiledôneas são plantas com flores (angiospermas) que possuem duas folhas embrionárias, chamadas cotilédones, nas sementes. Dois cotilédones presentes na semente, que fornecem nutrientes para o desenvolvimento inicial do embrião. As nervuras das folhas são reticuladas, ou seja, formam uma rede que se ramifica. Sus raízes pivotantes, que crescem profundamente no solo. Os feixes vasculares no caule são arranjados em um padrão circular. As peças florais (pétalas, sépalas, etc.) são geralmente em números de 5 ou múltiplos de cinco. 

 Agora sei de cor e salteado...

Morria e não sabia que essa danada andava, entrava de boca a dentro e me seguia, ora dando sombra ora me alimentando; semeei, plantei, colhei, roubei seus descendentes pelo mundo afora. 

Vejam as riquezas que são as dicos (apelido que botei para facilitar), até a mitologia já falavam delas: plantas e flores frequentemente desempenham papéis simbólicos importantes, muitas vezes representando a vida, a morte, o amor, a transformação e a conexão com o divino. A hortelã, o Jacinto, o Narciso, a Romã, o Lotus, a Rosa e por aí vai.

Aqui em baixo, na plebe, a gente acha coincidentemente juntos e misturados: as roseiras, a soja, feijão, ervilha, tomate, girassol, abacate, mamão, café, algodão, margarida, eucalipto, pau d’arco, macambira, xique-xique, mandacaru, pau brasil, acerola, vitória régia, amendoim, laranja, batata, alface, manga e muito mais.

Acho que agora vou me acostumar...

Campina Grande 19 de maio de 2022

Grijalva

 

 

 

 

 

sexta-feira, 23 de maio de 2025

 

QUERO SER GENTE

 

Nasci de uma ninha de doze irmãos, comigo treze passa fome no mundo de meu Deus. Fazer o quê, se a vida é para ser vivida de um jeito ou de outro. Minha casa era bem aconchegante e quentinha. Só não gostava muito do local por causa da zoada da turma que vinha jogar lixo perto do meu lar doce lar.  Minha mãe era magrinha, que dava pena; mas o que fazer, estava tudo caro pelo preço da morte. Jogavam no lixo tudo menos resto de comida, era mesmo uma falta de respeito com a gente. Pensavam que a gente não era gente. Coisa difícil deles entenderem. Minha pobre mãe saía devagarinho pra não acordar a turma, antes mesmo que o sol botasse sua cara quente de fora, a procurar no nosso café, almoço e janta; e as vezes voltava com os olhos molhados, sei que eram de lágrimas, e a boca vazia e espumando de contrariedade por não ter achado nem um ossinho de nada para a gente pelo menos sentir o cheiro bom de carne. Deitava-se ao nosso lado, mas para descansar do que para oferecer um gole quente do leite tão precioso para nossa sobrevivência. Ninguém reclamava, apenas ficávamos brincando de procurar o maná milagroso, de peito em peito magro, mas cheiroso, Cheiro de mãe!

Meu velho pai, não o conhecemos de perto. Sabemos que foi amor verdadeiro. Como sempre, quando chega o dia das mães se amarem, derramam um tal de feromônio incrível que bate nas ventas de dezenas de pretendentes pelas redondezas atraindo para uma competição de quase vida ou morte.  Chegava primeiro o que morava mais próximo e se mostrava altaneiro e prepotente. Rodava em volta, cheirava e perguntava que tal? Minha mãe se fazia de difícil. Sabia que muitos pretendestes já, já apareceriam com a mesma cantada. Dessa vez, não ia cair na lábia fácil. Queria um cabra que fosse forte e valente para ajudar na lida da ninhada. Sujeito que tivesse presente pelo menos nos primeiros dias do puerpério.

Com o tempo ganhamos o mundo desmantelado e cheio de preconceito. Cada qual seguiu um destino imprevisível. Não sei quantos dos irmãos ainda estão vivos.  Vivemos em média apenas uns quatro anos e isso já basta. A vida de cachorro vira-lata não é fácil. Falo assim porque a gente ouve por ande passa – Sai daqui vira-lata safado. Ninguém tem a coragem de chamar – sai daqui seu Sem Raça Definida. Não ter padrão nem origem conhecida, e por esse motivo não tem pedigree. Só não aceito é ser chamado de ladrão. Somos caçadores inteligentes a procura da sobrevivência, possuímos o melhor olfato da turma canina, por isso vivemos comendo do bom e do melhor, claro, pelo meio do mundo, já que somos proibidos de fazer compras nos açougues e super mercados.

Não sabem de que raça sou. Raça mais velha do mundo, possuo sangue de todas as qualidades de DNA existente entre os canídeos. Sou forte para nascer e para bater as botas também. Não morro tão fácil assim. Doenças, desconheço quase todas! Mesmo vivendo a margem da sociedade, desprezado e jogado a força pelos arrabaldes das cidades e até nas zonas rurais somos menosprezados.

Coisa de cachorro mesmo! Mas nem ligo. Sou teimoso e resistente não abro nem pro cão do segundo livro, - modesta a parte, esse não é da nossa raça. Não tenho inveja desses ajeitadinhos metidos a ricos, cheios de fricotes e por qualquer coisinha dão logo um chilique. Todos com nomes pomposos; Bijoux, Brando, Dolce, Jax, Lulu, Mimi, Monet, e Winston, Mel, Nina, Thor, Luna, Amora, Luke, Bob, Bella, Chloe, e por aí vai.

Lá em casa, mãe nos chamava de Baleia, Mocotó, Piaba, Corisco, Ramela, Rajado, Nevoeiro, Leão, Parafuso, Mosquito, Carniça, Tubarão e o meu de Zé, até hoje não sei o porquê. Onde danado mãe achava todos esses nomes?

 Além disso me considero como um brasileiro de coração. Somos cem por cento brasileiros, dizem os sabidos.  Já fomos cotados para estampar a cédulas de 200 mil. Somos estudados por cabras metidos a besta, como um tal de Nelson Rodrigues, que transformou nosso “tipo” em “complexo de Vira-lata”, como síndrome do brasileiro em sentir inferioridade a outras pessoas do mundo. Ledo engano. Somos felizes, não nos trocamos por nenhuns mequetrefes, ricos, bonitões ou estrangeiros. Somos os caras!

Nossa pelagem possuem todas as cores, estou presente nos recantos mais impossíveis de se viver e nos mais comuns também. Becos, avenidas, estradas, shopping, universidades, hotéis, cinemas e o diabo a quatro. As vezes corro atrás de motos só por diversão. Sempre procuro ser amigo desse povo que se diz mais inteligente, pra ver se arranjo um cantinho e um pouco de carinho, coisa que o mundo nos tem negado. Um dia Deus com certeza vai mudar essa relação entre todos os habitantes da terra ou será no céu? Quem viver verá! Mas, não abro mão de também ser gente.

Tenho dito.

Zé Cachorro