A SECA*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)
Chico
Basílio, recostado ao mourão da porteira do curral, espiava o céu acinzentado,
sem um farrapo de nuvem. Repetiam-se os dias e as semanas sem uma esperança de
chuva. Pelos tabuleiros, quebradas e serras distantes era a mesma tonalidade e
o mesmo silêncio. Não se ouvia mais o badalar dos chocalhos nem o mungido do
gado. O sertão dizimado pelo rebentão de seca retorcia-se e agonizava. Lá de
cima o sol assistia o drama dos retirantes, sem ter jeito para dar. Cumpria
diariamente a sua obrigação. Aquecia e iluminava os campos, esperando também
pelas chuvas que não chegavam. Acumulava sua energia na terra e nos vegetais,
sem poder, entretanto realizar o milagre da fotossíntese com que reverdeceria
aquela natureza quase morta. Fazendo rebentar a ramaria e reflorescer novamente
o Sertão. Não se importava com a injustiça que lhe faziam.
– O sol está devorando tudo!
Era
sempre o culpado pelas fontes que secaram, pelos gados que morriam, pelas
lavouras perdidas.
- Sol impiedoso!
Mas
tinha esperança que um dia chegariam a entender que a culpa era da falta das
chuvas, daquele céu limpo, sem uma nuvem que desse para tapar um chocalho. E
dava graças a Deus quando virava a última esquina do sertão e se escondia no
outro lado da terra. Era como se fechasse os olhos para não assistir o drama
comovente da calamidade que envolvia a terra mais bela do mundo, quando chegavam
às chuvas.
Chico
Basílio tinha medo de entrar em casa, de olhar para a sua Conceição e para o
corpinho emagrecido do Chiquinho, diminutivo do nome do pai. Sim, tinha medo
daquela tristeza, de olhar para o fogão apagado e a despensa quase vazia. Medo
de saber que os últimos recursos estavam no fim. Dos bichos que possuíra, só lhe
restavam o Jerico Moleque, duas cabrinhas de leite e o cachorro Xereu.
Empurrou
a porta da casa e entrou de mansinho. Sentou-se à mesa e esperou que Conceição
e Chiquinho comessem.
- Não
vais comer Basílio?
-
Vou, sim, mulher!
-
Pois come homem, senão vai esfriar e fica ainda mais desgostosa...
A
noite chegou, enfiando-se pela casa adentro. Eram assim todos os dias. Só a
claridade mortiça de uma lamparina fazia enxergar as coisas. Lá fora, o céu
todo salpicadinho de estrelas, amenizavam um pouco as angustias do sertão.
-
Vamos deitar Conceição.
Era uma
forma de procurar esquecer. Já ia bem longe à noite. Conceição chamou Basílio.
Não havia ainda conseguido dormir.
-
Ainda estás acordada Ceição?
-
É, homem, pensando na vida, no Chiquinho. Está se acabando tudo. A cabra preta
já hoje não deu quase leite. E o que se vai dar as bichinhas. Parece que a
gente está demorando demais. Estamos ficando sozinhos. Os outros já se foram...
-
É, Ceição. Já pensava assim, mas não queria te assustar. Não é bom a gente confessar
à mulher que está com medo. Sabes como é... E é melhor a gente se ir de uma
vez. Deixar para toda vida este sertaozão brabo, desadorado. Isto aqui não dá camisa
a ninguém. Olha bem. A fora o jumentinho, o cachorro e as duas cabras, não têm
mais nada além da terra. O sol acaba, liquida com tudo.
-
Pois é, Basílio. Vamos criar Chiquinho noutro lugar, onde se tenha ao menos o
que comer. Vende essa terra com as duas cabrinhas magras ao Coronel Vieira,
bota o dinheiro no bolso e a gente se atira de sertão abaixo, lá para as bandas
das matas, onde o sol é mais brando.
-
Justo, mulher!
E
dois dias depois, madrugada ainda, Basílio dava volta na chave, abandonando-a
na porta. A chave rangiu na fechadura e aquilo doeu em Basílio. Fora ali dentro
que nascera o Chiquinho, fruto de seu primeiro amor. Nunca iria esquecer Ceição
nos seus braços, no silencio da casa, sonhando com ele. E já se iam oito anos
sem que se apagasse o enlevo do primeiro encontro.
E
lá se iam os três. Chiquinho escanchado no jerico e o cachorro Xareu deixando
no caminho os rastros da fuga. Ao amanhecer já estavam distantes. Ninguém os
tinha visto sair. Andavam em silencio como se tivessem medo de falar. Até que enfim,
sentiram uma aragem vindo do lado nascente, cheiro de chuva!
O sol ia espiando lá de cima, a marcha dos
retirantes. E tinha vontade de gritar-lhes:
- Vai
Chico Basílio, vai Conceição, vai Chiquinho. E vocês também, Moleque e Xareu. A
seca não perdoa ninguém. São Pedro não manda chuva. O sol não pode sem água, criar
as lavouras e as pastagens, encher as espigas, produzir alimentos. Não sou eu,
Chico Basílio, o fabricante de secas. Venho todos os dias esperar pelas chuvas.
Mas olha para o céu. Nem um fiapo de nuvem. Minha tristeza é maior do que a tua,
Chico Basílio. Ver o sertão destruído, arruinado povo fugindo, andando pelos
caminhos sem um destino certo. Isto me dói Chico Basílio. Por onde andam as
chuvas, caindo muitas vezes em demasia noutros lugares. Parece que o mundo não
foi bem planejado... Vai, vai para onde não faltam as chuvas e eu estarei
sempre lá, distribuindo energia para que não falte pão ao Chiquinho e a tua
Conceição.
A
caminhada prosseguia nas horas mais amenas do dia. Entardecia quando Chico
Basílio parou o jerico à margem do São Francisco. Aquele mundão de água
correndo espantou o Chiquinho. Conhecia apenas os riachos de sua terra, botando
água quando chovia e secando depois. Podia brincar nos bancos de areia e
lembrou-se, então, do rastro da cascavel que havia passado por lá, deixando-o
assustado. Desceram a barranca para beber água doce e molhar os pés. O jerico
matou a sede e foi logo devorando as touceiras de capim verde, coisa que há
muito não via.
Uma
canoa passava perto e foi parar bem de frente a casa do velho André, pescador
desde moleque.
Chico
Basílio botou-se para lá. Tinha que arranjar um arrancho.
-
Boa tarde, meu senhor.
-
O mesmo lhe digo. Vão também se retirando como o medo da seca ou vão se
mudando.
-
De mudança. O sertão, agora só a passeio e em tempo de inverno. Quando não se
tinha mulher e filho, agüentava tudo. Hoje não. Quem pode olhar para a cara do
bichinho com cara de fome. Dá tanta pena que a gente resolveu sair. Nem é bom
falar.
Não
disse que havia vendido a terra e que levava o dinheiro no bisaco. Embora não
fosse um molenga. Qualquer dinheiro dá cobiça e naqueles tempos brabos,
cangaceiros andavam por ai assaltando as fazendas. Coronel Vieira, mantinha
meia dúzia de cabras guardando a casa. Ficavam trabalhando ali por perto, mas o
rifle entupido de balas 44 e outras muitas no bisaco. Guardavam o dinheiro, a
mulher e as filhas.
-
O amigo quer arrancho, é? Já vi que vem com mulher e filho. Bote-se lá para
casa. Pelo menos peixe e farinha, têm-se para comer. Dormir, dorme-se com os
olhos fechados...
Chico
Basílio encostou. A mulher gostou da casinha do pescador. Rede de pesca e
anzóis pendurados pelas paredes. O chão limpinho, bem varrido. Parecia não faltar
nada em casa de seu André. Pensou em uma morada assim. E não esquecia o aguão correndo
pertinho para aguar seus canteiros de cebola e coentro. Água para as roseiras,
os craveiros da janela e o pé de bugari. Tudo havia ficado já quase morrendo de
sede. O sol acabava com tudo. E como tinha saudade de suas plantas.
Desde
mocinha habituara-se a cultivá-las. E onde parasse teria que recomeçar. Nem era
possível esquecer o dia de seu casamento com buquê de cravos e bugari que, em
seguida perfumaram a sua primeira noite de amor.
Depois
do jantar, conversavam as mulheres e conversavam os homens. Cada um que contasse
coisas de sua vida.
Mestre
André fora ali mesmo que abrira os olhos para ver onde estava muito tempo atrás.
Sua roça, sua fazenda, era o rio. Plantava somente para as necessidades da
casa. Isso mesmo aos cuidados da mulher e do filho.
Chico
Basílio vinha dos confins do sertão, tangido pela seca.
-
Aqui chove para criar as lavouras. Raramente se perdem.
-
É num lugar assim que desejo ficar. Chuva e água. Lá no meu sertão, as terras
são ricas, noites estreladas são bonitas demais e quando a lua é cheia, clareia
o Sertão quase como fosse dia. O sertanejo é alegre. Terra de mulheres bonitas
e de cabras valentes, que não tem medo de ponta de faca, foge apenas do sol.
-
As terras daqui também produzem bem. As chuvas vão chegar brevemente. Estamos
no tempo de preparar as terras. O Antonio já está com as suas prontas. Vai
botar sementes no chão quando houver ameaça de chuva. A lavoura chega mais
depressa. Quem sabe se vosmincê não poderia ficar por aqui.
- Terei
que parar onde houver trabalho. A vida está difícil pra gente. A seca deixou a
gente no pó. Tenho que arranjar dinheiro para comer, casa para morar. Até que
as roças amadureçam. Não é fácil, com tanta gente que está correndo da seca.
-
Fica aqui, homem, arranja-se trabalho. Comida sempre se tem. A casa aperta-se um pouco e cabe todo mundo.
Depois se levanta outra aí perto. Depois da safra. Terra para plantar é só
escolher e não vai custar nada. É nossa mesmo.
-
Assim também é demais. Não vamos poder lhe pagar. Não quero ser tão pesado ao senhor.
-
Basta a companhia que vamos ter. Vivemos aqui quase sozinhos, separados do
resto mundo.
Chico
Basílio resolveu ficar. Começou ajudando nos trabalhos da casa e da roça. Dias
depois começou a preparar as terras para fazer suas plantações. O mato caia
como se Basílio fosse máquina. Em janeiro, ao poder do sol, roncou a trovada e
a chuva começou a cair molhando terra quente e fértil. E não faltou mais terra
molhada e as lavouras floraram e amadureceram. Basílio só conhecia tanta
fortuna nos anos de abundantes chuvas no sertão. Raros, muito raros.
O
dinheiro das terras de Basílio estava bem guardado no fundo da mala. Chagava a
hora de somá-lo com os rendimentos da lavoura e comprar um pedaço de terra na
beira do rio. O vizinho de mestre André havia se mudado para a cidade e,
segundo dizia, venderia sua pequena propriedade. A cidade não era longe e pouco
custava empurrar a canoa rio abaixo e chegar até lá. E assim, lá se foram os
dois.
Seu
Azarias, o dono da terra recebeu mestre André e foi logo perguntando o que
vinha.
-
Bem. Este aqui é Chico Basílio, dos confins do sertão. A seca correu com ele.
Há mais de um ano mora comigo. Pretende comprar uma terrinha para morar. O
senhor pretende vender a sua? Viemos saber.
-
Vendo-a na hora. Não estou mais interessado em viver noutro lugar. São mais de 120 tarefas, na beira do
rio, casa e curral, toda cercada. Boa mesmo para quem queira começar. Só que
não posso vender fiado. Dinheiro batido.
-
Depende do preço. Tenho uns cobres guardados e estou resolvido a morar perto do
mestre André, que foi quase um pai para gente. Damo-nos muito bem e quero mesmo
ajudá-lo naquilo que ele precisa. Não tenho outra forma de pagar o que fez pela
gente.
-
Pois bem. Não se assustem. Eu entrego terra agora mesmo por dois contos de
reis. Menos, nem um tostão. E é como disse. Terra pra lá, dinheiro pra cá. Não
me façam oferta.
-
É muito dinheiro, seu Azarias. O senhor não arrenda?
-
De forma nenhuma. Ficaria difícil de vender. Preciso do dinheiro para aumentar
minha bodega.
- Então, está fechado o negócio. Vamos
passar os papeis.
Oito dias depois Chico Basílio
estava morando em sua casa. Sobrara-lhe um pouco de dinheiro para começar a
trabalhar e comprar duas cabras de leite. Depois compraria uma vaca.
Em torno da casa e na beira do rio,
algumas mangueiras, coqueiros e goiabeiras. Já havia um começo. Fez ligeiro
concerto na casa e nas cercas. Roçou os matos e foi limpando tudo. Agora era
preparar-se para o período das chuvas. Dona Conceição com a ajuda do Chiquinho fez
canteiros de cebola e de coentro. Plantou “onze horas” e uns galhos de roseira
Mesquita. Aos poucos iria enfeitando a casa. Craveiros, bugaris e resedás. Arranjaria
muda na cidade.
Ao lado da casa duas grandes
mangueiras faziam sombra para as brincadeiras do Chiquinho. Brevemente estariam
florados e cheios de frutos. Eram também abrigos de pássaros que encantavam
Chiquinho.
Chico Basílio teve uma idéia,
plantar um pouco de milho e feijão de corda à margem do rio, em pleno verão.
Não custava aguar. Água tinha até demais.
Quem passava por ali comentava a
doidice de Seu Basílio. Dois meses depois já diziam que era um doido de juízo
mole.
Milho pendoando e feijão vageado.
Bem que todos poderiam fazer à mesma coisa. Mas quem havia de pensar que
lavoura crescia sem chuva. Alem das terras altas, mais de 10 tarefas de várzea para
plantio de arroz. O rio inundava. Mas às vezes faltava chuva na época mais
necessária e quando o rio já havia baixado. Perdia-se parte da produção. Mas
Basílio não desistia. Com uma vaca no curral e a despensa sempre provida e
algum dinheiro no baú, Basílio prosperava. - Se puder aguar o arroz ficariam
ricos, - comentava com a mulher.
- Mesmo assim Basílio, estamos indo
bem. A seca, aqui não persegue a gente. Já é uma felicidade. E água tem aí com
fartura, com chuva ou sem chuva. Mas, Basílio, donde vem tanta água. Já
pensastes nisso?
- Sei lá, mulher. Deve haver muitas
fontes despejando água, por aí afora. O bom é que ela passa por aqui sem parar.
Se a gente pudesse botar um cata-vento como aquele do coronel Vieira aí a gente
molhava um bocado de terra. Sai pouca água mais não para. Dia e noite, e noite
e dia, derramando água nas capineiras e no sítio de fruteiras. Em casa não
faltaria água. Acabaria com as latas de carregar água.
Dois anos se foram. E certo dia para
no porto de mestre André uma lancha a motor. Todo mundo foi ver quem era. Podia
ser o doutor da vacinação. Mas não era.
- Andamos visitando as margens do
Velho Chico. Procurando alguém que deseje fazer irrigação. Somos agrônomos do
governo. Os senhores sabem. Às vezes as chuvas não chegam na hora certa e as
lavouras se perdem. Durante o verão seca tudo, menos o rio. Então, nessas
oportunidades bota-se água, molha-se a terra e nada se perde.
- Mestre André apresentou Basílio.
Eu mesmo trabalho muito pouco. Vivo do rio. Da pescaria. E nesta idade já não
tenho força para outra coisa.
- Faz-se uma experiência. Coloca-se
uma moto-bomba, eleva-se a água e se mantem tudo verde.
Chegou à vez de Chico Basílio.
- Mas a gente não tem dinheiro para
comprar a tal da moto-bomba. E, assim, nada feito. Vontade eu tenho. Aguamos um
pouco de milho, feijão, melancia, todos os anos, carregando água do rio em
latas d’água. Posso mostrar. Um pouquinho de tudo. Não dá para aumentar. Se
desse, era bom demais.
- Ora a moto-bomba o governo
empresta. Instala e deixa funcionando. É pequena, mas demonstra bem. Vamos fazer
uma experiência. E lá se foram com a bicha de botar água.
- Olhem aí. Tenho essa lagoa de
arroz. Sempre perco uma parte por falta de água.
- Muito bem. Coloca-se aqui nessa
lavourinha, depois se passa para lá. É fácil aprender a mexer com ela.
Dentro de pouco tempo, a água
jorrava para dentro da lavoura de seu Basílio. À medida que a água espirrava,
iam guiando e evitando que se escorresse para fora. A terra toda molhada dava
nova vida a plantações. Todo mundo assistindo. Quem passava ia parando,
admirado da inovação.
- Agora vamos para a várzea de
arroz.
Á água jorrava com força.
- Está vendo. Desta forma não haverá
mais prejuízo. Quando necessário se faz umas divisões para guiar a água. Caso
queira plantar agora é só irrigar.
- Mas o rio vem e inunda. Mata o
arroz!
- O governo faz por conta própria
uma tapagem em uma parte da água no local
de entrada. A gente chama de comporta. A lagoa ficará protegida. E assim
plantará quando quiser.
Basílio seguia as recomendações e
começou a irrigar. Recebia visitas. Mostrava o que lhe tinham enviado e ajudado
a fazer. Já não temia mais os verões. Chovesse ou não, sua safra vinha
certinha. Até defensivos já usava. Adubos também.
Tornou-se o mestre da região.
Chiquinho ia à escola diariamente. A professora admirava-se de sua inteligência
e de sua boa memória. Menino da roça gostava da vida do campo e da escola. Já
lia e contava corretamente. Terminou o curso primário, sempre entre os melhores
alunos. Basílio não podia ainda mandá-lo para outra escola numa cidade mais
distante ou pagar um internato. O vigário da freguesia ofereceu o Seminário,
por intermédio das Vocações Sacerdotais. Mas o Chiquinho não aceitou. Não queria
ser padre, gostava era do campo. Não tinha temperamento para levar a vida
rezando e comendo. Não se esquecia dos agrônomos que ensinaram o pai. Aquilo
sim era profissão. Botar água na terra e fazer o milho crescer. Era essa a sua
vocação.
Dona conceição, religiosa desde
menina, falou com Chiquinho.
- Ser padre é muito bonito. Ganham
dinheiro fácil, presentes e vive folgado, sem fazer força; não como teu pai,
que vive arrebentado de tanto trabalho pesado.
- Não mãe, não quero ser um
religioso. Nem quero saber de pecado de seu ninguém. A senhora mandou que eu
fosse me confessar. Pois bem, mãe. O padre perguntou coisas que nem sabia. Umas
porcarias, mãe. Deus que me livre. E vou lá vestir saia, mãe. Andar de luto. Um
mau agouro. Fico aqui mesmo plantando as roças com papai. Prefiro morrer burro.
Ser padre, nunca. Comer, rezar e dormir. Vida para gente inteligente, mãe.
- Meu filho, quem te meteu na cabeça tanta
bobagem.
- Os meninos que falam. Contam tanta
história do vigário. Gordo como um balaio de papa. Não pega do pesado. Não, mãe, não, mãe! Quero estudo para a terra.
Chico Basílio não esquecia os
agrônomos que estiveram lá, ensinando a irrigar. E preocupava-se com o
Chiquinho. Mas certo dia lá chegou novamente os agrônomos do governo. Basílio
contou-lhes do desejo de Chiquinho.
- Ora Seu Basílio não é tão difícil
assim. Pelo menos poderá ir para uma escola média de agronomia. Ficará
internado lá e com as despesas pegas pelo governo. Sairá formado em técnicas
agrícolas. Iremos cuidar disso e voltaremos aqui no tempo apropriado. Prepare o
menino. O senhor irá também para ver como é e aprender o caminho.
- Minha mulher queria que ele fosse
para o seminário que é de graça, mas o menino meteu os pés na parede. Que Deus
o livrasse de vestir aquela saia preta. Queria estudo para trabalhar e não para
engordar e dormir...
- É sim senhor. Ele está certo aquilo
é uma classe de quem vive só pra estudar. Boa profissão para quem não quer
trabalhar no campo...
Tudo acertado. Chiquinho já estava
um garoto taludão e desembaraçado. Sabia que iria sentir falta da mãe e do pai,
mas aqueles agrônomos o haviam impressionados profundamente, sabiam fazer
coisas que ajudavam os agricultores, sem conversa fiada ensinaram a molhar as
terras sem chuva. O padre quando aparece é para levar dinheiro ou ameaçar as
pessoas com as penas do inferno e do purgatório.
Anos depois e Chiquinho já era um
técnico agrícola. Ofereceram-lhe emprego. Não aceitou. Teria que ir tomar conta
das terras do pai. Já sabia o que fazer. Não pensava em ser rico. Isso não. Sua
intenção era substituir o pai nos trabalhos da fazendola. Já fez o que era
possível. Quero que vá descansar um pouco. Com agricultura e gado, darei conta
da casa.
Recebido em casa com o seu
certificado e peru assado, Chiquinho esbanjava alegria. Iria fazer da
propriedade do pai, uma fazendinha modelo, irrigada e verdejante.
Na cidade só se falava no Chiquinho o ex-aluno
de Dona Isabel. Estava formado. Filho de pai pobre, mas compreensivo e
progressista.
Chiquinho plantou tudo. Arroz,
milho, feijão, hortaliças, frutas, pastagens, tudo irrigado.
Certo dia o padre apareceu lá.
Felicitou a família do Chiquinho e fez uma revelação.
- Olha Chiquinho. Em terra pequena e
fofoqueira, sabe-se de tudo. Contaram-me que você quis ser padre. Padre só
pensa em fazer caridade em nome de Jesus. Quero dizer Chiquinho, que você tem
razão. Lá não ensinamos nada sobre agricultura. Errei minha profissão. Mas
ninguém me advertiu. Já adquiri uma propriedade com o dinheiro que juntei
durante minha vida sacerdotal, mas de agora por diante, irei também plantar e
criar. Contribuir para o bem estar do povo pobre que vive da terra. Quero
compensar o tempo que só fazia rezar e pregar. E quero que você seja o meu
orientador agrícola. Dar-lhe-ei uma participação nos lucros. Não é emprego. É
uma sociedade.
Que Deus me perdoe, mas você tinha
toda razão. Obrigado pela lição que me deu. Na verdade meu rapaz, missa e
confissão não enchem barriga, nem botam ninguém no céu. Quando Deus fez este
mundo, a terra, os mares, os ventos, as estrelas e o céu profundo; fez o homem
e os pensamentos, esqueceu-se de proibir a vida folgada de quem vive sem
produzir.
- Está ai minha fazenda. Não me
deixe morrer sem tirar da mãe terra alguma coisa solida para encher a barriga
dos sertanejos. Vivo solteirão, com o papo cheio de rezas e o resto cheio de
nada.
Meses depois foram feitos dois casamentos...
Duas irmãs com os dois novos fazendeiros.
*O
capítulo faz parte do romance “Gracinha a Menina dos Olhos Verdes”.
Nota:
Meu pai, o autor dessas historiazinhas estudou no Seminário Maior de João
Pessoa/PB a pedido dos pais; desistiu e saiu tempo depois já tinha até raspado
a cabeça; depois seguiu a carreira de Engenheiro Agrônomo, formando-se na
cidade de Belo Horizonte nos idos de 1920.
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