LINA*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)
Lina nascera uma criatura sem encantos. E ai
estava o seu drama. Fugia de suas companheiras para evitar os contrastes.
Achava que haviam sido injustos e até cruéis com ela. Não teria custado nada
dotá-la de um pouco daquela beleza física que sobrava em muitas outras. Não se
conformava e sentia dentro de si numa revolta crescente. Para que aqueles
lábios finos e secos que ninguém haveria de querer beijá-los. E os olhos miúdos
e redondos como se fossem apenas uns pingos grandes de tinta esmaecida. E aquele
pescoço curto demais que não lhe davam fácil mobilidade. Somente duas coisas
lhe pareciam razoáveis. A cintura fina e umas pernas bem proporcionadas. O
conjunto não agradava. E se não agradava a ela muito menos aos outros. Quem
haveria de querer uma moça sem atrativos. Haveria, portanto, de encontrar um
derivativo, uma maneira de entretenimento que compensasse aquele monstruoso
erro da natureza. Com mais alguns retoques, algumas pinceladas, seria uma
mulher atraente. Não acreditava que na velha história de que o homem houvesse
sido feito á semelhança de Deus, a menos que Deus não fosse como ela pensava. E
quem lhe afeava mais eram aqueles lábios murchos e os olhos de cafife. Teria
mesmo que fazer alguma coisa especial que a fizesse esquecer o seu infortúnio.
Tentava uma coisa e outra até que notou pendores para a pintura, fixar na tela
motivos naturais, copiar a natureza, com as cores das manhãs e do entardecer.
Haveria de chamar a atenção para si, externando sua força interior. Se ao menos
fosse uma moça rica, com dinheiro sobrando, ainda poderia ter algumas oportunidades.
Mas o que possuía, dava-lhe apenas para levar uma vida normal. E com certo
conforto. Também não desejava casar-se pela atração dos bens que possuísse. Por
outro lado não pretendia incorporar-se a legião das onze mil virgens. Sentia
desejos como qualquer mulher normal e, por vezes, sentia ímpetos de entregar-se
livremente como uma fêmea qualquer dos campos ou das selvas. O fato de não se
casar ou de não encontrar a pessoa com quem sonhava, não a impediria de ser
mulher. Bastaria talvez, o diabo tentá-la um dia. Precisava, entretanto,
afugentar essas ideias, sobretudo por respeito á família e á sociedade. Eram talvez,
meras formalidades, simples convenções, mas era bom respeitá-las. Aliás, o que
lhe acontecesse seria exclusivamente por culpa de que lhe negaram os dotes de
beleza que todas as mulheres deveriam possuir. Se se perdesse seria por conta
disso, do descaso de não haverem aprimorado seu aspecto físico. E não perdoava
semelhante safadeza.
Lembrava-se que estava na história natural,
que deram colorido, perfume e beleza ás flores para facilitar-lhes à
fecundação. E foi ver no jardim as borboletas e abelhas de flor em flor
colhendo mel e polinizando flores. A ela haviam negado quase tudo, mas a
fizeram mulher com os mesmos desejos de todas as fêmeas. Mesmo as mais
selvagens. Chegava a acreditar que Deus, o seu Deus não havia sido o autor das
coisas da natureza. Possuía sexo mas não lhe deram atrativos. Puro desleixo.
Começou a copiar a natureza em tudo que ela apresentava de bela. E seu primeiro
quadro foi de algumas abelhas apanhando néctar nas flores do jardim e ajudando-as
na fecundação. E foi se aperfeiçoando em fixar em suas telas tudo que havia de
belo e amoroso na natureza. E isto lhe agradava cada vez mais. O instinto da
reprodução. Os casais de canários da terra que faziam seus ninhos nas estacas
ocas dos currais, atiravam no ar, numa alegria louca, em cenas de amor e
ternura,vão ao chão agarrados como dois sátiros. Depois da satisfação de seus
desejos pousavam tranqüilos nas cercas vizinhas. Os gatos faziam barulho no
telhado e não era outra coisa senão uma conquista amorosa.
Mas ela, ninguém a queria como se não tivesse
sexo e não tivesse também desejos. Iria deixar a pintura para não se martirizar
mais ainda. Todos tinham uma surpresa na vida e, ela, somente ela, só fazia
sonhar. Aquela boca com aqueles lábios finos e secos e aqueles olhos miúdos que
só serviam para chorar, infelicitava-na. E não queria usar certos artifícios, os
quais só serviriam para realçar ainda mais sua pobreza física! Já nem sabia
como não havia nascido com as pernas tortas e cabelos de fogo para completar
sua desgraça. Pela sua formação moral já estava escrito que não quebraria a
moral da família. Sua mãe e seu pai eram honestos e zelavam os preceitos da
sociedade. Desgosto não lhes daria. Tinha total certeza de que não havia
nascido feia por vontade deles. Era coisa que vinha de mais longe, um
determinismo qualquer ou mesmo descaso de ordem superior. Sim do próprio
criador, a quem não poderia perdoar.
Voltou à pintura e de qualquer forma era um
derivativo. E foi reunindo quadros, todos retratando motivos naturais. E porque
não passava a vender? Fazer uma exposição, chamar atenção para o seu trabalho artístico.
Preparou a sala da frente de sua casa e anunciou a amostragem. Foi um sucesso.
Como poderia ser. Saírem daqueles olhinhos miúdos tanto valor artístico. Como
poderia ver tanta beleza natural e saber combinar cores tão alegres.
Vendeu todos os quadros, menos o primeiro que
guardaria como uma lembrança de suas primeiras pinceladas.
Todos os quadros estavam com a indicação de
vendidos. Apenas o intitulado “Fecundação” estava em branco. Apareceu um
candidato que desde o inicio só pretendia aquele. Mas não era pra vender. E a insistência continuava.
- Não, não desejo desfazer-me deste. Ficará
como uma lembrança em minha casa. E por que tanto interesse de sua parte, meu
amigo?
- É, muito simples. Amo a natureza e este é o
que me dá o verdadeiro sentido de amor e de evolução. E até hoje tenho sido um
frustrado no amor. Como vê, sou um desprotegido da sorte. Apesar de ter uma
vida relativamente confortável e com bastante estabilidade, falta-me com
certeza qualquer coisa importante para uma aceitação. Armadilha do próprio
destino. Justamente sou uma pessoa bastante infeliz. Sei que existe o amor e em
vez disto o que sinto já é uma certa aversão pela humanidade que me tem negado
o que mais desejo, possuir o aconchego de um lar, com uma esposa e filhos. Por
isso tenho me dedicado a amar a natureza, conviver com ela dentro e fora da
solidão de minha casa de solteirão. Por isso desejava ter esse seu quadro na
parede de minha sala.
- Pelo que vejo, vosso destino é igual. Tenho
vivido somente de sonhos.
- E por que, então, não vamos sonhar juntos?
- Como se nunca ninguém me quis.
- Por isto mesmo. Dois enjeitados podem
conviver. E quem sabe se daí não nascerá o amor que sempre bateu as asas para
longe dos dois.
- Sim, mas olhe que talvez lhe seja melhor,
viver só com a sua arte. Tenho receio de transformar sua sensibilidade
artística. Para isto bastará uma desilusão. Poderá ter uma decepção, pois não
conhece o meu temperamento e nem os meus hábitos. De frustração em frustração,
tornei-me uma pessoa bem diferente da comum das outras. Um descrente uma
espécie de vencido e pessimista. E creio que não me suportaria.
- Pois é, até nisso nos parecemos, mas tenho
a esperança de que mudaremos com ou depois de nosso relacionamento. Não devo
ter segredos mais na vida. Sou uma convicta de que minha salvação será o amor,
um pouco de carinho e a satisfação de desejos que permaneceram sufocados dentro
de mim. A pintura foi uma forma de disfarce, um passatempo para fugir as minhas
angustias. A pintura não me realizou como mulher. Uma maneira de me esconder
para sofrer menos. Por que não fazemos uma experiência e já com o compromisso
de sermos, tolerantes e compreensivos. E se por ventura não der certo, apaga-se
o fogo e cada um tomará o seu destino. De minha parte, sei que isto não acontecerá,
mas quero deixá-lo em liberdade. Meu aspecto é, sem duvida, de uma mulher
desagradável, mas talvez apenas no aspecto. Sou assim como um fruto de casca
rugosa, mas de polpa macia e doce. Desculpe-me a pretensão.
- Não tenha medo de mim. O que me preocupa é
exatamente não corresponder a sua sensibilidade e desapontá-la.
- Bem, isto ai será por minha conta e risco.
Não tenho mais ilusões. Sei muito bem o que nos está faltando. Não é uma
questão puramente emocional e sim, apenas de doação. O amor é uma palavra. Na
verdade, considero esse tal de amor nada mais, nada menos do que o apetite que
se sente por uma pessoa. E tanto é assim que depois de se provarem, a coisa vai
se amortecendo, a sopa vai esfriando. É isto que percebo no cotidiano.
O que resta do casamento é a convivência e a
amizade das pessoas. É esta amizade que sustenta a maioria dos casamentos,
quanto a isto não tenho ilusões. As mulheres são sempre as vitimas do que possa
acontecer. A convivência com amizade é o que desejo e espero. O ardor dos primeiros
tempos é como fogo em palheiro. Fogo se apaga ou amortece. Mas o importante é
tocar fogo no palheiro e ver a chama incendiar. Mas a mim sempre faltou fósforo
para riscar e por isto o palheiro está intacto. Pois é, você nunca encontrou o
palheiro e eu nunca encontrei o fósforo. Juntos causaremos o incêndio e vamos
ver quem se queima primeiro...
- Bem, se é o seu pensamento e sua vontade,
vamos cuidar dos documentos. Padre e juiz. Dão-se logo os dois nós. Nó górdio
que ninguém desata....
Ao amanhecer do dia seguinte ao casamento,
Lina fechando os seus olhos miudinhos, deu-se a falar consigo mesma: - Como
vejo agora o mundo diferente, uma manhã mais alegre o coração aliviado e o meu
grande sonho realizado. Até parece que não sou a Lina de todos esses anos
passados, aquela Lina angustiada e desesperançada. Sinto o corpo mais leve e
tenho vontade de abraçar-me com a natureza, sorver todo o oxigênio do mundo.
Minha alma libertou-se de um pesadelo que me tirava o gosto de viver. E no entanto, por uma coisa tão natural e tão simples. Olhou-se no espelho da penteadeira e
notou que os seus olhos já não eram
tão miudinhos como antes e nem guardavam as sombras dos desenganos. Deveria ser
aquilo que se chamava de felicidade. E como era bom sentir–se aliviada de corpo
e alma. Era como se houvesse tomado um banho por dentro e por fora. Não tinha duvida de que o marido a adorava e
que com ela havia saído da solidão.
Deixara de ser um tímido. E um complexado a
respeito de mulheres. A idéia de que ninguém o queria e que o dominava
desaparecera depois que caíra nos braços de Lina foi como se tivesse acordado
depois de um longo sono mental. O quadro “Fecundação” pendurado no gabinete,
fazia com que já mais se esquecesse daquela primeira noite maravilhosa. A
abelha e a flor simbolizavam sua união com a Lina. E pediu-lhe que pintasse um
outro quadro que daria o nome de “Frutificação”, representando os frutos do
amor. E Lina pintou dois cajueiros com os galhos entrelaçados com frutos
vermelhos e frutos amarelos, a planta de sua adoração. E só não pode dar-lhe o
perfume da floração, aquele cheiro suave igual ao cheiro do amor em tempo de
noivado.
Em, 02/10/1986
*O conto pertence ao livro “Vidas
Nordestinas”, no prelo.
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