quinta-feira, 14 de março de 2013


LINA*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)


Lina nascera uma criatura sem encantos. E ai estava o seu drama. Fugia de suas companheiras para evitar os contrastes. Achava que haviam sido injustos e até cruéis com ela. Não teria custado nada dotá-la de um pouco daquela beleza física que sobrava em muitas outras. Não se conformava e sentia dentro de si numa revolta crescente. Para que aqueles lábios finos e secos que ninguém haveria de querer beijá-los. E os olhos miúdos e redondos como se fossem apenas uns pingos grandes de tinta esmaecida. E aquele pescoço curto demais que não lhe davam fácil mobilidade. Somente duas coisas lhe pareciam razoáveis. A cintura fina e umas pernas bem proporcionadas. O conjunto não agradava. E se não agradava a ela muito menos aos outros. Quem haveria de querer uma moça sem atrativos. Haveria, portanto, de encontrar um derivativo, uma maneira de entretenimento que compensasse aquele monstruoso erro da natureza. Com mais alguns retoques, algumas pinceladas, seria uma mulher atraente. Não acreditava que na velha história de que o homem houvesse sido feito á semelhança de Deus, a menos que Deus não fosse como ela pensava. E quem lhe afeava mais eram aqueles lábios murchos e os olhos de cafife. Teria mesmo que fazer alguma coisa especial que a fizesse esquecer o seu infortúnio. Tentava uma coisa e outra até que notou pendores para a pintura, fixar na tela motivos naturais, copiar a natureza, com as cores das manhãs e do entardecer. Haveria de chamar a atenção para si, externando sua força interior. Se ao menos fosse uma moça rica, com dinheiro sobrando, ainda poderia ter algumas oportunidades. Mas o que possuía, dava-lhe apenas para levar uma vida normal. E com certo conforto. Também não desejava casar-se pela atração dos bens que possuísse. Por outro lado não pretendia incorporar-se a legião das onze mil virgens. Sentia desejos como qualquer mulher normal e, por vezes, sentia ímpetos de entregar-se livremente como uma fêmea qualquer dos campos ou das selvas. O fato de não se casar ou de não encontrar a pessoa com quem sonhava, não a impediria de ser mulher. Bastaria talvez, o diabo tentá-la um dia. Precisava, entretanto, afugentar essas ideias, sobretudo por respeito á família e á sociedade. Eram talvez, meras formalidades, simples convenções, mas era bom respeitá-las. Aliás, o que lhe acontecesse seria exclusivamente por culpa de que lhe negaram os dotes de beleza que todas as mulheres deveriam possuir. Se se perdesse seria por conta disso, do descaso de não haverem aprimorado seu aspecto físico. E não perdoava semelhante safadeza.
Lembrava-se que estava na história natural, que deram colorido, perfume e beleza ás flores para facilitar-lhes à fecundação. E foi ver no jardim as borboletas e abelhas de flor em flor colhendo mel e polinizando flores. A ela haviam negado quase tudo, mas a fizeram mulher com os mesmos desejos de todas as fêmeas. Mesmo as mais selvagens. Chegava a acreditar que Deus, o seu Deus não havia sido o autor das coisas da natureza. Possuía sexo mas não lhe deram atrativos. Puro desleixo. Começou a copiar a natureza em tudo que ela apresentava de bela. E seu primeiro quadro foi de algumas abelhas apanhando néctar nas flores do jardim e ajudando-as na fecundação. E foi se aperfeiçoando em fixar em suas telas tudo que havia de belo e amoroso na natureza. E isto lhe agradava cada vez mais. O instinto da reprodução. Os casais de canários da terra que faziam seus ninhos nas estacas ocas dos currais, atiravam no ar, numa alegria louca, em cenas de amor e ternura,vão ao chão agarrados como dois sátiros. Depois da satisfação de seus desejos pousavam tranqüilos nas cercas vizinhas. Os gatos faziam barulho no telhado e não era outra coisa senão uma conquista amorosa.
Mas ela, ninguém a queria como se não tivesse sexo e não tivesse também desejos. Iria deixar a pintura para não se martirizar mais ainda. Todos tinham uma surpresa na vida e, ela, somente ela, só fazia sonhar. Aquela boca com aqueles lábios finos e secos e aqueles olhos miúdos que só serviam para chorar, infelicitava-na. E não queria usar certos artifícios, os quais só serviriam para realçar ainda mais sua pobreza física! Já nem sabia como não havia nascido com as pernas tortas e cabelos de fogo para completar sua desgraça. Pela sua formação moral já estava escrito que não quebraria a moral da família. Sua mãe e seu pai eram honestos e zelavam os preceitos da sociedade. Desgosto não lhes daria. Tinha total certeza de que não havia nascido feia por vontade deles. Era coisa que vinha de mais longe, um determinismo qualquer ou mesmo descaso de ordem superior. Sim do próprio criador, a quem não poderia perdoar.
Voltou à pintura e de qualquer forma era um derivativo. E foi reunindo quadros, todos retratando motivos naturais. E porque não passava a vender? Fazer uma exposição, chamar atenção para o seu trabalho artístico. Preparou a sala da frente de sua casa e anunciou a amostragem. Foi um sucesso. Como poderia ser. Saírem daqueles olhinhos miúdos tanto valor artístico. Como poderia ver tanta beleza natural e saber combinar cores tão alegres.
Vendeu todos os quadros, menos o primeiro que guardaria como uma lembrança de suas primeiras pinceladas.
Todos os quadros estavam com a indicação de vendidos. Apenas o intitulado “Fecundação” estava em branco. Apareceu um candidato que desde o inicio só pretendia aquele. Mas não era pra vender.  E a insistência continuava.
- Não, não desejo desfazer-me deste. Ficará como uma lembrança em minha casa. E por que tanto interesse de sua parte, meu amigo?
- É, muito simples. Amo a natureza e este é o que me dá o verdadeiro sentido de amor e de evolução. E até hoje tenho sido um frustrado no amor. Como vê, sou um desprotegido da sorte. Apesar de ter uma vida relativamente confortável e com bastante estabilidade, falta-me com certeza qualquer coisa importante para uma aceitação. Armadilha do próprio destino. Justamente sou uma pessoa bastante infeliz. Sei que existe o amor e em vez disto o que sinto já é uma certa aversão pela humanidade que me tem negado o que mais desejo, possuir o aconchego de um lar, com uma esposa e filhos. Por isso tenho me dedicado a amar a natureza, conviver com ela dentro e fora da solidão de minha casa de solteirão. Por isso desejava ter esse seu quadro na parede de minha sala.
- Pelo que vejo, vosso destino é igual. Tenho vivido somente de sonhos.
- E por que, então, não vamos sonhar juntos?
- Como se nunca ninguém me quis.
- Por isto mesmo. Dois enjeitados podem conviver. E quem sabe se daí não nascerá o amor que sempre bateu as asas para longe dos dois.
- Sim, mas olhe que talvez lhe seja melhor, viver só com a sua arte. Tenho receio de transformar sua sensibilidade artística. Para isto bastará uma desilusão. Poderá ter uma decepção, pois não conhece o meu temperamento e nem os meus hábitos. De frustração em frustração, tornei-me uma pessoa bem diferente da comum das outras. Um descrente uma espécie de vencido e pessimista. E creio que não me suportaria.
- Pois é, até nisso nos parecemos, mas tenho a esperança de que mudaremos com ou depois de nosso relacionamento. Não devo ter segredos mais na vida. Sou uma convicta de que minha salvação será o amor, um pouco de carinho e a satisfação de desejos que permaneceram sufocados dentro de mim. A pintura foi uma forma de disfarce, um passatempo para fugir as minhas angustias. A pintura não me realizou como mulher. Uma maneira de me esconder para sofrer menos. Por que não fazemos uma experiência e já com o compromisso de sermos, tolerantes e compreensivos. E se por ventura não der certo, apaga-se o fogo e cada um tomará o seu destino. De minha parte, sei que isto não acontecerá, mas quero deixá-lo em liberdade. Meu aspecto é, sem duvida, de uma mulher desagradável, mas talvez apenas no aspecto. Sou assim como um fruto de casca rugosa, mas de polpa macia e doce. Desculpe-me a pretensão.
- Não tenha medo de mim. O que me preocupa é exatamente não corresponder a sua sensibilidade e desapontá-la.
- Bem, isto ai será por minha conta e risco. Não tenho mais ilusões. Sei muito bem o que nos está faltando. Não é uma questão puramente emocional e sim, apenas de doação. O amor é uma palavra. Na verdade, considero esse tal de amor nada mais, nada menos do que o apetite que se sente por uma pessoa. E tanto é assim que depois de se provarem, a coisa vai se amortecendo, a sopa vai esfriando. É isto que percebo no cotidiano.
O que resta do casamento é a convivência e a amizade das pessoas. É esta amizade que sustenta a maioria dos casamentos, quanto a isto não tenho ilusões. As mulheres são sempre as vitimas do que possa acontecer. A convivência com amizade é o que desejo e espero. O ardor dos primeiros tempos é como fogo em palheiro. Fogo se apaga ou amortece. Mas o importante é tocar fogo no palheiro e ver a chama incendiar. Mas a mim sempre faltou fósforo para riscar e por isto o palheiro está intacto. Pois é, você nunca encontrou o palheiro e eu nunca encontrei o fósforo. Juntos causaremos o incêndio e vamos ver quem se queima primeiro...
- Bem, se é o seu pensamento e sua vontade, vamos cuidar dos documentos. Padre e juiz. Dão-se logo os dois nós. Nó górdio que ninguém desata....
Ao amanhecer do dia seguinte ao casamento, Lina fechando os seus olhos miudinhos, deu-se a falar consigo mesma: - Como vejo agora o mundo diferente, uma manhã mais alegre o coração aliviado e o meu grande sonho realizado. Até parece que não sou a Lina de todos esses anos passados, aquela Lina angustiada e desesperançada. Sinto o corpo mais leve e tenho vontade de abraçar-me com a natureza, sorver todo o oxigênio do mundo. Minha alma libertou-se de um pesadelo que me tirava o gosto de viver. E no entanto, por uma coisa tão natural e tão simples. Olhou-se no espelho da penteadeira e notou que os seus olhos já não eram tão miudinhos como antes e nem guardavam as sombras dos desenganos. Deveria ser aquilo que se chamava de felicidade. E como era bom sentir–se aliviada de corpo e alma. Era como se houvesse tomado um banho por dentro e por fora.  Não tinha duvida de que o marido a adorava e que com ela havia saído da solidão.
 Deixara de ser um tímido. E um complexado a respeito de mulheres. A idéia de que ninguém o queria e que o dominava desaparecera depois que caíra nos braços de Lina foi como se tivesse acordado depois de um longo sono mental. O quadro “Fecundação” pendurado no gabinete, fazia com que já mais se esquecesse daquela primeira noite maravilhosa. A abelha e a flor simbolizavam sua união com a Lina. E pediu-lhe que pintasse um outro quadro que daria o nome de “Frutificação”, representando os frutos do amor. E Lina pintou dois cajueiros com os galhos entrelaçados com frutos vermelhos e frutos amarelos, a planta de sua adoração. E só não pode dar-lhe o perfume da floração, aquele cheiro suave igual ao cheiro do amor em tempo de noivado.


Em, 02/10/1986
*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.

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