ENTERRADO
VIVO*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901- 16/04/2003)
Corinto
tinha um medo danado de morrer e não queria que se falasse em morte perto dele.
Não é que a vida lhe fosse fácil e tivesse apego às poucas coisas que possuía. Não,
não era isto. Era medo de fechar os olhos e não mais acordar, ficar esticado em
cima de uma cama sem pensar mais em nada e em seguida levarem-no para o
cemitério para deixá-lo lá sozinho dentro de um buraco e coberto de terra. Tinha
a impressão de que poderia despertar e morrer verdadeiramente sem ter a quem
pedir socorro.
Já ouvira falar mais de uma vez de defuntos
que foram encontrados noutra posição dentro do caixão. Seria horrível,
tenebroso que isto viesse a lhe acontecer. Poderia ter um ataque qualquer, uma
tal de catalepsia, por exemplo e o considerarem liquidado. E o mais grave é se
estivesse ouvindo dizer, que coisa, o Corinto morrer assim à toa, tão forte ainda.
Que hora vai sair o enterro?
- “Às quatro da tarde, para o
cemitério do Bom Conselho”.
Não era para se brincar com uma coisa dessa
natureza. Mas, o fato é que já havia acontecido e ele poderia ser o próximo
cara. Tinha quase certeza. Prevenia a família e aos amigos mais dedicados, para
não fazerem isso com ele. Não o enterrassem no mesmo dia. Esperassem que
começasse a feder. Seria um sacrifício porque defunto é a pior carniça do
mundo, mas fizessem isto com ele. Seria uma só vez. Todos prometiam, mas
Corinto bem sabia como era. Ninguém queria ficar com defunto dentro de casa.
Choravam, gritavam, esperneavam, havia chiliques, mas o enterro havia de sair à
hora marcada.
A primeira coisa que faziam era
correr a casa mortuária, comprar um caixão preto, ir ao cemitério falar como
coveiro para meter a enxada e a pá no chão, abrir um buracão de sete palmos.
Procurar o padre para encomendar o corpo. A verdade é que ninguém ficava com
defunto em casa.
O finado Romão foi encontrado
emborcado na cova e com os olhos esbugalhados. Santo Deus! Bem que isto poderia
acontecer-lhe. Sabia lá...
Certo dia Corinto chegou em casa com
febre e dor de cabeça. Foi direto para a cama e como era solteirão, chamou a
empregada e mandou-a as pressas chamar o farmacêutico prático a única pessoa do
povoado que entendia de doença. O homenzinho chegou, colocou-lhe o termômetro
debaixo do sovaco, demorou um pouco e o retirou. Olhou o tubinho de vidro e
ficou meio paralisado. Era um febrão dos diabos. Quase quarenta graus.
- Alguma coisa séria?
- Mais ou menos. Mas não se assuste
não. Vou aplicar-lhe uma medicação heróica. Passa logo. Em todo caso
acautele-se. Fique na cama quietinho.
- Dá pra morrer seu Abreu?
- Só se houver alguma complicação.
- Não diga! Tenho medo de morrer e
me enterrarem vivo. Sim vivo, vivo, como fizeram com o Romão.
- Vai morrer não. Tenha fé, homem. A
fé ajuda a curar.
- Mas se eu tiver a má sorte de morrer,
só deixe me enterrar depois de três dias, quando já estiver exalando aquele
cheiro enjoado de defunto comprovado. Mas dê um jeito. Nada de morte. Tenho
ainda muita coisa para fazer e não tolero essa idéia de morte, coisa estúpida e
sem graça. Pelo menos não se deveria morrer com menos de uns quatro ou cinco
mil anos de vida, sem ter doença nem achaque nenhum. Mas não, adoece e morre em
qualquer idade como morrem as moscas e as lesmas. E ainda se diz que foi a Vontade
Divina.
Dois dias depois, Corinto estava em
pé, sem febre e sem dor. Escapou do susto de ser enterrado vivo. O diabo
daquela febre súbita quase o endoidecia. Não era coisa que se fizesse com um
cristão batizado e crismado. E perguntava a si mesmo porque as coisas eram
assim. Uma vez que o homem fora feito à semelhança de Deus (presunção humana),
não deveria haver sofrimento, nem fraquezas, nem medo.
Mas aí estava ele, fisicamente
perfeito, sem nenhuma deformação e, no entanto, assombrado com a morte, isto é,
com medo de ser enterrado vivo e não ter por quem chamar debaixo de sete palmos
de barro e mais aquele abaulado que faziam por cima da cova.
Por um milagre havia escapado
daquela febre súbita de forno de padaria. Quase queimando em vida e morrendo de
medo. Poderiam muito bem, por um engano qualquer, o terem levado para o
cemitério e ele ouvindo o ruído ou o som dos passos da cambada que o ia
conduzindo ainda vivo. Já pensaram em tamanha desgraça! Enterrar o sujeito vivo
só por descuido ou burrice do médico. Haviam feito isto tranqüilamente com o
mestre Romão. Não podia, portanto haver confiança. A vantagem do médico é se vê
livre dos doentes lisos. E mestre Romão, só possuía mesmo um caquinho de vida.
Por isto foi logo despachado. – “Está morto, morto, podem providenciar o
enterro”. Já disse e repito. Só me enterrem quando já estiver fedendo. Comigo
não, Marocas!... E comentava com Deus e o diabo, o descuido de quem fez o
mundo, uma verdadeira droga.
- Vê bem Corinto. Estás
completamente enganado e pior de tudo obsedado por essas idéias fúnebres e
funestas. Tanto faz morrer em cima de uma cama, como debaixo do chão. A morte é
uma só. Não se morre afogado, sem respirar. Depende da sorte de cada um. Morrer
de tiro, faca, porrete, febre maligna ou o que seja; a morte há de vir. Ninguém
escapa.
- Tudo, menos a morte. Ninguém morre
por gosto e os que ficam, ficam chorando, desde que não seja inimigo.
- Já te falei. Muda teus
pensamentos. Cuida em viver sem medo, seu idiota. Quem tem idéia fixa como tu,
é doido. Procura uma moça ou uma mulher agradável e te casa. A tua solidão é a
causa desse teu medo com uma coisa inevitável e comum a todos.
- Sei disso, mas o meu medo é de ser
enterrado vivo.
- Mas já não tens a receita para
evitar: ser enterrado fedendo...
- É. Já entendi que tens razão, vou
me casar, ter filhos e esquecer essas idéias malucas.
- Não te esqueças de que nenhuma
mulher irá te querer enquanto não desfizer essas tuas manias. Terás de ser um
homem alegre, decidido, corajoso. Mulher tem ódio a covardes. Repara que as
mulheres adoram os militares e só e só porque tem a convicção de que todo
soldado é valente e uma ótima proteção.
- É muito fácil dizer, casas e terás
tranqüilidade. E porventura mulher anda por aí boiando para qualquer um. E a
despesa que dão, ela e os filhos. Meu papa vento! Falas em casar como se fosse
dobrar a esquina, pegar uma moça levar para casa e ser sustentado pela mesma.
Vai te confessar, com essas tuas facilidades!
- Desse jeito, meu velho, já estas
enterrado vivo. Ou te casas para ter alguém de tua absoluta confiança e que te
ofereça carinhos ou então vai, te dar o azar de quando morrer, ser enterrado
vivo. E é muito bem feito. Irão te encontrar depois, emborcado no caixão.
Corinto arregalou os olhos e
empalideceu.
- Vai-te pra lá com teus azares.
- Tudo pode acontecer, sobre tudo
quando se fica agarrado a uma idéia funesta como esta tua. Desgraça atrai
desgraça. Só se vive bem com pensamentos positivos. Caso continues assim,
findarás doido varrido. E parece-me que é o que queres.
- Casar! Gastar as minhas economias
forçadas, com mais uma boca para comer, um corpo para vestir e um rosto para
pintar.
- Uma mulher bonita vale tudo isto e
muito mais, seu cauíra. Pois olha, tudo quanto tenho ou consigo é para enfeitar
e dar conforto à minha mulher. E se mais tivesse, mais daria.
- Perdulário!
- E de que te servirá essas
economias embisacadas. Coisa mesmo para quem quer se enterrar vivo contando o
dinheiro avarentamento escondido e inútil. Já me vou. Fica-te com tuas idéias
esquisitas. Até logo.
Corinto ficou suando frio. Quem
poderia dizer que não iria mesmo ser enterrado vivo com dinheiro guardado para
os malandros rasgarem na farra. É possível que Asdrúbal esteja com a razão. O
diabo é quem duvida. Morrer-se de uma hora para outra ou se faz que morre e nos
enfiarem vivo numa cova de sete palmos, já fervilhando de vermes, famintos à
espera de defuntos novos.
- É, vou mudar de vida e aguardar os
resultados práticos.
Procurou uma moça e casou-se. Logo
nos primeiros dias sentiu-se renovado, com outras idéias. Deveria ter se
casado, muito antes. Esqueceu-se até de que algum dia poderia morrer. E se
morresse a mulher teria o cuidado de verificar a possibilidade de estar ainda
vivo. De qualquer forma iria ainda recomendar-lhe. Só o enterrasse quando estivesse
ficando azulado. Seguro morreu de velho e desconfiado está vivo. Mas, com o
tempo Corinto esqueceu tudo. Para ele só existiam a mulher e o filho que estava
para nascer. Foi, então, agradecer-lhe as advertências e reafirmar-lho que era realmente um enterrado vivo. E
olha, não sei como se pode ser tão burro quanto fui. Imagina levar todo esse
tempo a pensar em coisas tétricas, assombrado, quando podia ter vivido num mar
de rosas, com a mulherzinha que tenho. De agora em diante, podem me enterrar
vivo ou como entenderem. E nem quero recordar do medo que tinha de adoecer,
pois me via debaixo do chão no escuro e sem ar para respirar e nem forças para
romper a camada de sete palmos de terra que os miseráveis haviam paliado por
cima de mim. Mas, em todo caso, façam como pedi... Que o diabo anda solto por
aí. Para pregar uma das suas, não muda a cueca... Faz a gente se esquecer e
depois pega de surpresa.
- Nada disso, Corinto. É a nossa
própria imaginação que cria essas coisas. Tudo quanto pensamos, quanto vemos é
criação puramente nossa. Por exemplo, não existe assombração e nem nunca
existiu. Tudo nasce de nosso poder pessoal de sentir e ver as coisas. Somos
capazes de com a imaginação, materializar uma pessoa que já morreu e vê-la
distintamente.
Mas fomos nós que a geramos e não
ela que haja nos aparecido. Diabo nunca existiu, mas, muita gente diz que já
viu. É, é a mesma coisa que alma. Não existe, mas falam que aparecem. A imagem
de uma pessoa poderá estar tão gravada dentro de nós, que a projetamos no espaço
e a vemos. Só isto.
- Mas uma vez tens razão. Sou eu
mesmo que ando criando essas coisas. Nada como ter uma pessoa como és para
orientar os medrosos. Só os fracos vêem assombração e ficam imaginando
desgraças. Andei perdido muito tempo, desprezando todas as coisas boas da vida.
Mas agora se acabou o medo. Podem me enterrar vivo ou como quiserem. Caso
aconteça, direi uns palavrões com que me enterrou, dou uma banana pro mundo,
tapo as narinas para não aspirar e acabo de morrer. Uma coisa tão simples. E até
tem uma vantagem, a alma não pode sair de debaixo dos sete palmos de terra e
fica me fazendo companhia. Ou então que se vire...
- A alma, Corinto, é a própria vida.
Acabou-se a vida, acabou-se tudo. Esta história de alma é conversa fiada!...
Corinto voltou a casa, beijou a
mulher, olhou para o menino que ia nascer, cruzou os braços e, enquanto o
passado ia desfilando pela sua mente, tomava uma resolução. Combater o medo das
pessoas. E aos amigos, dali por diante, às pessoas que conhecia, perguntava logo
se tinha algum problema. E dizia: olha, meu amigo, problema é medo de enfrentar
as coisas da vida e com medo não se resolve nada. Agrava-se a situação. Parece
que se está diante do impossível, do inelutável. Enfrenta tudo com decisão.
Manda, pois, o medo para a casa do diabo. Perdi meia vida por medo, impressões
absurdas. Imagina que vivia apavorado com medo de se enterrado vivo.
- E quem não tem! Estás esquecendo
do seu Romão que foi encontrado emborcado na cova. E contam-se muitos casos
dessa natureza. Nem quero andar relembrando essas coisas terríveis. Com coragem
ou sem ela, isto pode acontecer comigo, contigo, com qualquer cristão. E olha,
já pedi a minha família que só me enterrem rasinho, quase na flor da terra.
Nada daquele buracão de sete palmos e mais o abaulamento da cova. Assim, se me
acontecer, ou a ti, que Deus nos livre é meter o ombro e sair. Mas o difícil
sabes o que é? É cumprirem nossa recomendação. Quando o “bicho” morrer, tem-se
é pressa em retirar de casa antes que comece a feder. E não há mesmo quem
agüente catinga de defunto. Olha, no momento e na pressa de enterrar, ninguém
vai se lembrar de nada. O coveiro abre o buracão e nos metem lá dentro. Quanto
mais seguro melhor. Morto ou ainda vivo, ninguém escapará. E não é que tenha
medo não, mas tudo pode acontecer.
Corinto arregalou os olhos,
assustado. O amigo tinha toda razão. Não deveria era ter andado conversando
história. Quando pensava que havia se libertado daquela idéia funesta, achou de
atiçar a conversa e agora estava certo, certíssimo de que a coisa poderia mesmo
acontecer.
- Mas sabes de uma coisa, Corinto, a
gente pode se livrar disso.
- Como, companheiro?
- É muito simples. Praticando o
suicídio, num local onde ninguém possa nos encontrar. Eu mesmo estou disposto a
fazer isto. Sempre ando me lembrando do seu Romão. E o diabo é que desgraça atrai
desgraça. Quanto mais se tem medo de uma coisa, mais depressa ela chega.
Corinto saiu para casa arrependido
de suas pregações idiotas. E lá vem a coincidência. O coveiro encontrou um
defunto, isto é, a caveira de um defunto com as mãos na cabeça, dedos crispados
como se estivesse arrancando os cabelos.
Corinto encolheu-se todo: “Mais
essa”!... Só havia mesmo um meio, era o suicídio, bem planejado. Um tirão bem
em cima do bico do peito esquerdo ou uma dosagem pesada de formicida
“Tatuzinho”. Aliás, as duas coisas simultaneamente, era mais seguro. Seria
fulminante. Mas, logo esfriou com a idéia. Cadê coragem. Nem uma gota. E era só
mesmo o que faltava deixar os beijos doces da mulher e o filho que estava
prestes a nascer. O certo mesmo era arriscar-se a ser enterrado vivo, mas
continuar vivendo sua vidinha nos braços de Dinorá. Pois não era. Já não havia
se convencido de que um beijo compensava qualquer outra diabrura do destino. Quem
havia inventado o beijo numa boca de mulher bonita, tinha mesmo bom gosto.
Poderia até ter sido um cabra safado, mas fora genial. Vem cá, mulher, me dá um
beijo daqueles de tremer o corpo... E assanhar o bico dos peitos... O mais que
vá tudo para a casa do diabo.
E você que nunca beijou ninguém,
meta uma bala nas virilhas e vá direto para o inferno.
7.9.1986.
*O conto
pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.
Obs. Por
favor comentem estas histórias.
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