O
SONHO*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 –16 04/2003)
Crivaldo era um sonhador. Via sempre
as coisas por um prisma diferente dos outros. Aquilo que as pessoas faziam
estava sempre muito distante de tudo que pretendia.
Grandes planos, realizações fora do
normal, isto sim, seriam atividades dignas de um homem de inteligência e
operosidade como ele. Não iria perder tempo com insignificâncias, fazendo o que
outros faziam. Quando aparecesse seria para estarrecer. Daria um exemplo àquela
gente rotineira, sem idéias, sem imaginação. Enquanto sonhava ia levando a
vida, gastando o pouco que possuía. Os juros já eram insuficientes e o capital
baixava de nível. Mas Crivaldo sabia muito bem que isso é passageiro.
Havia de realizar-se antes de entrar
em liquidação. A coisa, porém, seria dar início a uma indústria qualquer e ir
subindo, subindo até atingir o máximo de seu ideal. E começou ocultamente a
fabricar cachimbos de barro. Dispunha de matéria prima em abundancia. Construiu
no fundo do quintal um fornozinho para cozimento dos produtos industriais.
Fabricou a primeira partida. Teria, então que viajar para vendê-los lá fora sem
que alguém viesse, a saber. Apurou o primeiro dinheiro. O lucro foi mínimo, mas
como ele próprio dizia, a alma do negócio era o segredo e o início. Com pouco
tempo o mercado estava quase saturado. Foi indo mais longe, sempre mais longe.
Teria que diversificar a produção e depois de muito pensar entrou no fabrico de
berimbaus. A meninada gostou. Aprimorou o artesanato. Berimbau mais afinado.
Boa saída e melhores lucros. Mas acontecia que o uso do berimbau enjoava logo.
Antes, porém, que isso acontecesse e estivesse havendo grande procura, aumentou
o fabrico para vender em grosso. Lotou as casas comerciais. Quando a garotada
se enjoasse, já teria feito bons negócios. E não demorou. Berimbau caiu em
desuso completo.
E agora, Crivaldo, que irás fazer.
Lembrou-se de fabricar chamas de nambus, juritis e outros bichos. Era
interessante saber imitar pássaros. Ótima aceitação. E era mesmo divertido.
Passou para os apitos e terminou esgotando a sua criatividade, no ramo de
barro. A esta altura já toda a cidadezinha sabia que Crivaldo era o industrial
dos artefatos de barro. Como era um idealista e um sujeito correto, não se
divertiam excessivamente com os seus projetos. Algumas alusões e brincadeiras
sem conseqüências. As indústrias reunidas de Crivaldo já contavam com operários
treinados e a fabricação dependia da procura. Mantinha pequenos estoques para
que não houvesse desatendimento. A freguesia gostava da presteza nos
atendimentos. A pontualidade dava força ao negócio.
Depois de sérios estudos, Crivaldo abriu nova linha de
fabricação, tamancos de vários formatos. Contratou um marceneiro. Arrumou uma
oficina. Indústria de quintal. Os primeiros tamancos fabricados sob medidas
foram distribuídos com os operários, e mestre marceneiro, ele próprio era um
meio de propaganda. Coisa barata, leve e mais que isso, uma novidade. Boa
saída. Só se ouvia o estalo dos tamancos pelas calçadas. A meninada adorava.
Não davam muita importância as “indústrias reunidas” de Crivaldo. Consideravam
um entretimento e uma mania de ser industrial.
A verdade é que Crivaldo juntava dinheiro. Pagava a
todos por produção, mas exigia qualidade. Sempre havia procura de um ou outro
produto. Abriu uma lojinha ao lado. Quando menos esperava, o uso do berimbau
reapareceu. E como era fácil comprar, vendia satisfatoriamente qualquer artigo.
Chegavam maiores encomendas e mais freqüentes. Por mais que fabricasse e
vendesse, quem diabo ira dar valor àquelas bugigangas. Só mesmo quem não tinha
outra coisa para fazer. Cachimbos de barro, berimbaus, apitos, chamariz para
pássaros e por fim, tamancos e vassouras de folhas de carnaúba. E mais tarde
iria mais adiante com o seu parque industrial. Fabricava abanos e espanadores.
A lojinha
repleta de produtos industrializados chamava atenção. O movimento de vendas
crescia e Crivaldo se enriquecia. Construiu galpões, adquiriu máquinas,
aumentou o número de operários. Já se comentava, então, a prosperidade de
Crivaldo, o sonhador.
- O homem está indo longe. Não tarda ampliar mais ainda
suas indústrias. Quando se pensava que era um bobo, um visionário, aí está à
frente da maioria.
E não tardou.
Crivaldo movimentava-se em silêncio, como sempre fazia.
Instalou uma fabrica de redes. Disparou, sem, todavia,
abandonar qualquer de suas especialidades iniciais. Era conservador e não iria
desprezar os seus pontos de partida. Tudo lhe dava dinheiro. As redes de
tapuarana tornaram-se famosas. Redes para gente importante, com largas varandas
e redinhas para crianças, de tecido fofo e macio. Não se falava mais noutra
coisa. Crivaldo não dava demonstração do seu desenvolvimento. Conservava o seu
otimismo, sem fazer alarde. A tendência era crescer. Solteirão e até então
somente trabalhador feito um bicho, achava que estava na hora de começar a
viver como os outros. Já tinha base sólida para isso, inclusive ótimos
auxiliares que manejavam peça por peça de suas indústrias. Sentia-se
despreocupado e estava na hora de usufruir os resultados dos seus sonhos
realizados.
Construiu uma boa casa e preparou-a confortavelmente,
sem luxo, está visto. Luxo era, ao seu entender, esbanjamento e vaidade. Passou
à sua nova residência e começou novamente a sonhar, mas desta feita com uma
companheira. Tivera uma vida de lutas e sacrifícios. Agora era viver no
aconchego de um lar, ao lado de uma mulher e de alguns filhos.
O fato de ter casa nova despertou atenção de todos. As
fofoqueiras abriram logo o jogo – “O Crivaldo está se preparando para casar. Na
certa. Um bom partido, aliás...”.
- Bom não, ótimo. Trabalhador, dedicado, sério,
honesto. Excelente pessoa. Vai pegar uma moça rica, já deve ter muita gente de
bico aberto.
Os comentários galopavam, embora Crivaldo não tivesse ninguém
na mira.
- É Fulana, é Cicrana, é Beltrana. A coisa lá fora se
acelerava. E estava todo mundo enganado. Crivaldo sabia muito bem o tipo de
moça que ele queria. Quando era um sonhador, apenas sem eira sem beira, só se
lembravam dele para motejar.
- “Aquilo é um doido. Um preguiçoso. Só vive a sonhar
com coisas impossíveis. É uma forma de despistar a falta de coragem para o
trabalho”.
Poderiam até correr atrás dele, acender velas a Santo
Antonio. Sabia onde encontrar a pessoa que lhe agradava. Estava entre as
famílias pobres que lutavam como ele para sobreviver. E quando menos se
esperava, Crivaldo estava noivo.
- “Noivo de quem. Quem é a felizarda”.
Era realmente uma felizarda. Filha de um sapateiro,
que lutava noites e dias para sustentar honestamente a família. Cinco filhos
que os ajudavam no ofício, exceto os dois menores, pirralhos ainda. Maria Rosa,
a mais velha, sua noiva, não tinha pecado, além da pobreza. Arrumadinha de
corpo, como se tivesse sido encomendada a algum santeiro. Uma nossa senhora da
perfeição. Rosto de santa, cor de uma rosa ao desabrochar, fala musicada e
cabelos castanhos, do jeitinho que Crivaldo gostava. Dos olhos nem era bom
falar. Concentravam a luz das estrelas e às vezes possuíam a melancolia de uma
noite de luar.
Crivaldo não queria mais. O resto ele possuía. Riacho
Seco tomou um choque. Crivaldo havia ficado mais doido ainda. Depois de tantas
lutas casar-se com filha de sapateiro, quando tantas moças ricas o esperavam.
Cada uma trazia traçado o seu destino.
Casou-se no civil e no religioso. Estava seguro pelos
dois todos. Podiam falar, criticar, como entendessem. O sogro recebeu a
orientação de fechar a sapataria. Tomaria conta de uma parte de seus negócios.
Maria Rosa, simples como era, tornou-se a santa da devoção de Crivaldo, o casal
mais certo e mais querido de Riacho Seco.
30.1.1984
*O
conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.
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