terça-feira, 26 de fevereiro de 2013




O SONHO*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 –16 04/2003)

            Crivaldo era um sonhador. Via sempre as coisas por um prisma diferente dos outros. Aquilo que as pessoas faziam estava sempre muito distante de tudo que pretendia.
            Grandes planos, realizações fora do normal, isto sim, seriam atividades dignas de um homem de inteligência e operosidade como ele. Não iria perder tempo com insignificâncias, fazendo o que outros faziam. Quando aparecesse seria para estarrecer. Daria um exemplo àquela gente rotineira, sem idéias, sem imaginação. Enquanto sonhava ia levando a vida, gastando o pouco que possuía. Os juros já eram insuficientes e o capital baixava de nível. Mas Crivaldo sabia muito bem que isso é passageiro.
            Havia de realizar-se antes de entrar em liquidação. A coisa, porém, seria dar início a uma indústria qualquer e ir subindo, subindo até atingir o máximo de seu ideal. E começou ocultamente a fabricar cachimbos de barro. Dispunha de matéria prima em abundancia. Construiu no fundo do quintal um fornozinho para cozimento dos produtos industriais. Fabricou a primeira partida. Teria, então que viajar para vendê-los lá fora sem que alguém viesse, a saber. Apurou o primeiro dinheiro. O lucro foi mínimo, mas como ele próprio dizia, a alma do negócio era o segredo e o início. Com pouco tempo o mercado estava quase saturado. Foi indo mais longe, sempre mais longe. Teria que diversificar a produção e depois de muito pensar entrou no fabrico de berimbaus. A meninada gostou. Aprimorou o artesanato. Berimbau mais afinado. Boa saída e melhores lucros. Mas acontecia que o uso do berimbau enjoava logo. Antes, porém, que isso acontecesse e estivesse havendo grande procura, aumentou o fabrico para vender em grosso. Lotou as casas comerciais. Quando a garotada se enjoasse, já teria feito bons negócios. E não demorou. Berimbau caiu em desuso completo.
            E agora, Crivaldo, que irás fazer. Lembrou-se de fabricar chamas de nambus, juritis e outros bichos. Era interessante saber imitar pássaros. Ótima aceitação. E era mesmo divertido. Passou para os apitos e terminou esgotando a sua criatividade, no ramo de barro. A esta altura já toda a cidadezinha sabia que Crivaldo era o industrial dos artefatos de barro. Como era um idealista e um sujeito correto, não se divertiam excessivamente com os seus projetos. Algumas alusões e brincadeiras sem conseqüências. As indústrias reunidas de Crivaldo já contavam com operários treinados e a fabricação dependia da procura. Mantinha pequenos estoques para que não houvesse desatendimento. A freguesia gostava da presteza nos atendimentos. A pontualidade dava força ao negócio.
Depois de sérios estudos, Crivaldo abriu nova linha de fabricação, tamancos de vários formatos. Contratou um marceneiro. Arrumou uma oficina. Indústria de quintal. Os primeiros tamancos fabricados sob medidas foram distribuídos com os operários, e mestre marceneiro, ele próprio era um meio de propaganda. Coisa barata, leve e mais que isso, uma novidade. Boa saída. Só se ouvia o estalo dos tamancos pelas calçadas. A meninada adorava. Não davam muita importância as “indústrias reunidas” de Crivaldo. Consideravam um entretimento e uma mania de ser industrial.
A verdade é que Crivaldo juntava dinheiro. Pagava a todos por produção, mas exigia qualidade. Sempre havia procura de um ou outro produto. Abriu uma lojinha ao lado. Quando menos esperava, o uso do berimbau reapareceu. E como era fácil comprar, vendia satisfatoriamente qualquer artigo. Chegavam maiores encomendas e mais freqüentes. Por mais que fabricasse e vendesse, quem diabo ira dar valor àquelas bugigangas. Só mesmo quem não tinha outra coisa para fazer. Cachimbos de barro, berimbaus, apitos, chamariz para pássaros e por fim, tamancos e vassouras de folhas de carnaúba. E mais tarde iria mais adiante com o seu parque industrial. Fabricava abanos e espanadores.
 A lojinha repleta de produtos industrializados chamava atenção. O movimento de vendas crescia e Crivaldo se enriquecia. Construiu galpões, adquiriu máquinas, aumentou o número de operários. Já se comentava, então, a prosperidade de Crivaldo, o sonhador.
- O homem está indo longe. Não tarda ampliar mais ainda suas indústrias. Quando se pensava que era um bobo, um visionário, aí está à frente da maioria.
 E não tardou. Crivaldo movimentava-se em silêncio, como sempre fazia.
Instalou uma fabrica de redes. Disparou, sem, todavia, abandonar qualquer de suas especialidades iniciais. Era conservador e não iria desprezar os seus pontos de partida. Tudo lhe dava dinheiro. As redes de tapuarana tornaram-se famosas. Redes para gente importante, com largas varandas e redinhas para crianças, de tecido fofo e macio. Não se falava mais noutra coisa. Crivaldo não dava demonstração do seu desenvolvimento. Conservava o seu otimismo, sem fazer alarde. A tendência era crescer. Solteirão e até então somente trabalhador feito um bicho, achava que estava na hora de começar a viver como os outros. Já tinha base sólida para isso, inclusive ótimos auxiliares que manejavam peça por peça de suas indústrias. Sentia-se despreocupado e estava na hora de usufruir os resultados dos seus sonhos realizados.
Construiu uma boa casa e preparou-a confortavelmente, sem luxo, está visto. Luxo era, ao seu entender, esbanjamento e vaidade. Passou à sua nova residência e começou novamente a sonhar, mas desta feita com uma companheira. Tivera uma vida de lutas e sacrifícios. Agora era viver no aconchego de um lar, ao lado de uma mulher e de alguns filhos.
O fato de ter casa nova despertou atenção de todos. As fofoqueiras abriram logo o jogo – “O Crivaldo está se preparando para casar. Na certa. Um bom partido, aliás...”.
- Bom não, ótimo. Trabalhador, dedicado, sério, honesto. Excelente pessoa. Vai pegar uma moça rica, já deve ter muita gente de bico aberto.
Os comentários galopavam, embora Crivaldo não tivesse ninguém na mira.
- É Fulana, é Cicrana, é Beltrana. A coisa lá fora se acelerava. E estava todo mundo enganado. Crivaldo sabia muito bem o tipo de moça que ele queria. Quando era um sonhador, apenas sem eira sem beira, só se lembravam dele para motejar.
- “Aquilo é um doido. Um preguiçoso. Só vive a sonhar com coisas impossíveis. É uma forma de despistar a falta de coragem para o trabalho”.
Poderiam até correr atrás dele, acender velas a Santo Antonio. Sabia onde encontrar a pessoa que lhe agradava. Estava entre as famílias pobres que lutavam como ele para sobreviver. E quando menos se esperava, Crivaldo estava noivo.
- “Noivo de quem. Quem é a felizarda”.
Era realmente uma felizarda. Filha de um sapateiro, que lutava noites e dias para sustentar honestamente a família. Cinco filhos que os ajudavam no ofício, exceto os dois menores, pirralhos ainda. Maria Rosa, a mais velha, sua noiva, não tinha pecado, além da pobreza. Arrumadinha de corpo, como se tivesse sido encomendada a algum santeiro. Uma nossa senhora da perfeição. Rosto de santa, cor de uma rosa ao desabrochar, fala musicada e cabelos castanhos, do jeitinho que Crivaldo gostava. Dos olhos nem era bom falar. Concentravam a luz das estrelas e às vezes possuíam a melancolia de uma noite de luar.
Crivaldo não queria mais. O resto ele possuía. Riacho Seco tomou um choque. Crivaldo havia ficado mais doido ainda. Depois de tantas lutas casar-se com filha de sapateiro, quando tantas moças ricas o esperavam. Cada uma trazia traçado o seu destino.
Casou-se no civil e no religioso. Estava seguro pelos dois todos. Podiam falar, criticar, como entendessem. O sogro recebeu a orientação de fechar a sapataria. Tomaria conta de uma parte de seus negócios. Maria Rosa, simples como era, tornou-se a santa da devoção de Crivaldo, o casal mais certo e mais querido de Riacho Seco.
30.1.1984
*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.

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