A NEGRA SEBASTIANA*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 –
16/04/2003)
A negra Sebastiana aparecera no
povoado como um furacão. E por isto puseram-lhe o apelido de Pé de Vento. Não
respeitava macho e muito menos as mulheres casadas. Negra vadia gabava-se de
ser a mulher melhor das redondezas e ninguém que andasse com ela deixaria mais de
frequentá-la. Negra bonita era ali. Perfeita dos pés á cabeça, andava tremendo
as carnes e os olhos faiscavam como olhos dessas pessoas ambiciosas que querem
tudo para si. E tinha uma especialidade que era prender o sujeito e tomar-lhe o
dinheiro sob ameaça de escândalo.
Caia-lhe
nas malhas, estava perdido, a menos que fosse uma pessoa descompromissada, que
não tivesse de prestar contas a ninguém. E tinha o campo livre, pois as vitimas
não diziam a ninguém que estavam sendo exploradas. Mas tudo tem seu dia e a
negra Sebastiana apaixonou-se pelo padre da freguesia e de tal ordem que foi
largando os outros. No entanto, o Vigário era honesto, ainda um novato de ministério
e não dava atenção a Sebastiana. Notava que ela o perseguia, cortava caminho,
rezava para esconjurá-la, trancava-se em casa o quanto podia, mas a negra
Sebastiana não lhe dava tréguas. Coitado. Não tinha culpa de nada, achava que
era um pecado mortal irreparável, mas a negra não lhe dava tréguas, e sempre
procura estar onde Padre Sebastião estivesse. Na igreja, situava-se em posições
que ficasse bem a vista de sua paixão e só faltava mesmo engoli-lo com os olhos
de caninana faminta. Chegara a ponto de quase desiludir-se, mas a negra
Sebastiana não era negra para fugir, nem deixar de mão suas vitimas. E jurara
consigo mesma desacuar o novato e chamá-lo nos peitos. Ele iria ver quem era a
negra Sebastiana. O negócio era apanhá-lo a primeira vez. E não desejava
explora-lo. Queria, ambicionava, endoidecia era pelo homem que estava
embisacado naquela saia preta que só servia para atrapalhar sua vida e a dele
próprio.
Estudava
planos, cercava o reverendo por todos os lados, mas o bicho resistia a todas as
artimanhas. Já quase desenganada, foi retomando a sua antiga freguesia,
tomando-lhes dinheiro, exigindo presentes sob pena de escândalo para os seus
encontros; arranjava sempre um lugar discreto. Qualquer moita servia, contanto
que ninguém adivinhasse.
Dormia
pensando em Sebastião e quando mantinha seus contatos era como se quem
estivesse ali fosse Sebastião em carne e osso. Era ele que estava em sua
imaginação de mulher diabólica. Padre Sebastião, tinha, aliás, ojeriza a negro.
Se ao menos fosse uma mulher branca como ele, mas logo um mutum daquele. E de
qualquer forma havia feito voto de castidade e acabou-se. Novato ainda na
batina, era desses que ainda acreditava nas penas do purgatório e do inferno.
Não iria perder sua alma por uma coisa proibida rigorosamente pela Santa Igreja
Católica Apostólica Romana. Não era nem doido. Fora ao seminário, meninote
ainda sem qualquer experiência no gênero. Além disso, um pecado não poderia ter
gosto de nada. Mal sabia que a negra Sebastiana continuava de olho nele.
Não
tinha nada a ver com os seus juramentos e muito menos com castidade religiosa.
E pouco também se lhe dava que o Padre Sebastião fosse ou não para o inferno ou
as penas do purgatório. Isto não lhe dizia respeito. Em primeiro lugar estavam
os seus desejos. E que culpa tinha ela de haver se metido no seminário. Nenhuma,
nenhuma. O que lhe interessava era aquilo que seu corpo pedia. Ora essa. E
Padre Sebastião iria ver quem era a negra Sebastiana. E apostava com sigo mesma,
que tiraria o cabaço do reverendo.
Era
só mesmo o que lhe faltava. Ele que se atasse lá com sua igreja e as palhaçadas
dos patrões. E dizia de si para si, - “prepara-te Padre Sebastião que a negra
Sebastiana não brinca em serviço”. E foi aí que lhe veio à ideia mãe.
Confessar-se
e dar a primeira cantada, direta. Esperou o sábado dia de confessionário.
Entrou
na fila e foi se chegando diabolicamente. Queria mesmo ser a última para dispor
de tempo e não ser reparada. Ajoelho-se com jeito de beata
-
Reze, reze irmã, o credo.
E
Sebastiana rezou piedosamente.
-
Agora confesse seus pecados com toda fé em Cristo, nosso Salvador.
E
Sebastiana foi contando à toa o que pouco interessava. Afinal fez uma parada e
o Padre perguntou-lhe se não havia mais nada.
-
Sim, tenho, mas não é propriamente um pecado. É apenas um desejo. Mas é tão
grande que tenho vergonha de confessá-lo.
-
Ora, filha, não há nada que não se possa perdoar em nome de Deus, nosso
Salvador. Então fala filha.
-
É que tenho uma paixão doida pelo Padre Sebastião e não sei o que fazer para
conquistá-lo.
-
Com Padre não se brinca, minha filha. Padre faz juramento de celibato, quer
dizer, renuncia as mulheres. Deve olhar para elas, apenas como uma ovelha do
rebanho santo.
-
Mas Padre, o senhor não sai do meu juízo. Ando pertinho de endoidar. Ou o
senhor me aceita e me ama ou perderei o juízo.
-
Não insista neste pecado monstruoso. E exijo que me respeites. Quase não posso
te perdoar. Ou te arrependes dessa tua loucura, dessa tua perversão, ou sou
obrigado a te esconjurar. Vai, reza o credo, três vezes.
Rezou.
-
Tem jeito não, o senhor não sai de dentro de mim.
-
Eu te excomungo.
-
Não adianta. E vou lhe dizer a verdade. Não vim aqui senão para confessar-lhe
minha grande paixão. E vou lhe dizer. Ou me aceita ou irei fazer um escândalo.
Direi a todo mundo que no confessionário, faltou-me com o devido respeito e a
igreja. Decida-se qual será o melhor caminho, isto é, se ter prazer com a negra
Sebastiana, a insaciável ou perder esse prazer e ser tido como um padre
irreverente e mulherengo. Eu não tenho o que perder na vida e também não quero
perdê-lo.
-
Prefiro o escândalo e sei que não será capaz de tal infâmia. Ademais ninguém
vai deixar de acreditar no Padre para levar em conta as calunias de uma negra
perdida de tua qualidade.
-
Ah! Seu Padre, o senhor não sabe até onde nos leva uma paixão desenfreada,
apaixonei-me pelo senhor e não vou desistir. Tenha santa paciência. Toda vez
que lhe vejo ou apenas me lembro do senhor, meu corpo se agita, se dana como se
quisesse explodir. Será que não quer me salvar. Não é nada demais dormir
comigo. E, aliás, porque não me dá um emprego de arrumadeira. Ninguém iria
desconfiar. E veja bem, se me recusar, vão saber que saio de sua casa todas as
noites e vão saber que estou saindo às ocultas da santa casa do Padre.
-
Pois fique sabendo que nem quero vê-la mais e muito menos arranjar-lhe emprego
em minha casa. E se insistir vou mandar pô-la da cidade para fora debaixo de
vara e lhe darei a excomunhão.
-
E o escândalo. Está pensando que deixarei de fazer o que disse. E quanto à
excomunhão pode dar, pois a negra Sebastiana não acredita nestas bobagens. E
agora, para terminar, não tenha duvida de quem anda com a negra Sebastiana não
a deixará mais. Sei dar voltas no corpo e endoidar qualquer um. Por que não
deixa essa pieguice religiosa. Se tiver de ir para o céu, irá, pois provar o
que é bom até ajuda. Já pensou, um homem tão forte, tão sadio e bonitão como é.
Ter de levar a vida toda pensando nas mulheres e recusar uma, do meu tipo, se é
só por falta de coragem para enfrentá-la. Onde foi que o senhor leu que padre
andar com mulher é pecado. Onde? E depois ninguém irá saber seu tolo.
Coloque-me como sua arrumadeira e deixe o resto por minha conta. Dormir
sozinho, viver na solidão, quando pode ter nos braços e na cama, uma negra
infernal como sou. Uma negra apaixonada é a melhor coisa que Deus inventou.
Pensa que Português gosta de negra só pela cor? Está muito enganado. Gosta
porque negra vale por cem outras mulheres. Não tem experiência, mas lhe
ensinarei tudo. Sei que já está ai sonhando comigo. E olhe se não gostar da
brincadeira, vou embora no mesmo instante; vai, me leva, para tua casa. Agora,
tem uma coisa, se gostar da folia, não abusará da negra Sebastiana, está feito?
-
Olha endemoniada. Não fiques me tentando mais. Já te disse que sou um padre e
nada disso me tenta e nem faz quebrar o meu juramento. Some-te, pois, de minha
vista. Só te perdôo porque sei que tudo isto é fraqueza da carne. Tem muito
homem por aí sem proibição.
A
negra Sebastiana resolveu, então, mudar de tática. Começou a chorar.
-
Deixa disto minha filha, vai-te com Cristo. Ele te amparará nesses teus maus
pensamentos.
-
Não estou chorando por isto não, seu padre. Choro porque tenho passado fome e
ninguém me ajuda. Preciso é ter comida e onde dormir. Usei daqueles artifícios,
erradamente, pensando que seria o meio mais fácil de conseguir trabalho. Só
assim, juro que poderei deixar a vida miserável que tenho tido. O senhor avalia
o nojo e a vergonha que tenho de ter sempre que vender-me para obter o pão de
cada dia. Não tenho outra coisa senão o
corpo para vender e a troco de migalhas. Sou a criatura mais infeliz deste
mundo. E ninguém ajuda me salvar. O senhor não imagina o que é ser mulher de
todo mundo, sem amor, sem prazer. Tenho que aceitar qualquer sujo e indecente
que aparece. E uns nem me dão um níquel e ainda me ameaçam se insistir. E mais
ainda. Ninguém dar valor a negro. E por isto só me procuram quando não tem uma
branca disponível. Se o senhor me der emprego, todo mundo irá dizer que o Santo
Vigário regenerou a negra Sebastiana, fez uma obra de caridade. Irei às missas
e todos os atos religiosos. “Passarei a ser gente” e não mais “a quenga” Negra
Sebastiana. E aumentou o choro.
-
Podem pensar coisas, Negra Sebastiana. Bem sabes como o povo é maldoso.
-
Ora, o Senhor é um padre irrepreensível, puro quase um Santo. Ninguém não
atreverá a abrir o bico. E se abrir, será que vai dar ouvido a fofocas de
desocupados. Basta que o senhor saiba que vai para o céu e que tem sua
consciência tranquila Pelo o amor de Deus, tire-me do lodo, da miséria em que
estou. Não ira querer que eu continuasse uma negra perdida, cada vez mais
chegando perto do inferno.
E benzeu-se.
-
Bem negra Sebastiana, vou enfrentar as más línguas. Vou te dar o emprego, mas
vê lá, todo respeito será pouco, estás me ouvindo. E fique sabendo que a carne
não me tenta e nem tentará. Não quebrarei meu juramento aos pés do altar.
-
Quer dizer que o senhor vai mesmo salvar a negra Sebastiana. Louvado seja. E
quando poderei me apresentar.
-
Hoje mesmo, se quiser. Mas não digas nada a ninguém.
-
Ora, ninguém mais me verá, isto é, verá, mas não conseguirá nada de mim. Só
isto já será uma prova de que me regenerei. Afinal o que pretendia já consegui.
Não ser mais dessa canalha que me procura. A negra Sebastiana passa a ter dono
e a chegar perto do céu que ardentemente deseja. O inferno que tinha dentro de
mim, irá se consumir. Quem espera sempre alcança. Em mim, agora, sim quem manda
é o senhor. Que alivio já estou sentindo. Agora poderei dizer a esses patifes
todos, que me respeitem, senão vou contar ao padre.
-
Mas olha todo respeito é pouco. Vou te dar dinheiro para comprares roupas novas
e adequadas. Nada dessas roupas que usavas nas tuas loucuras. Só assim iras te
desencarnando da vida passada. Posso confiar em ti?
-
Juro, juro, juro. Ninguém lhe será mais fiel e obediente. Se quiser posso até
lavar-lhe os pés e tirar-lhe a batina.
-
O que???!!!
-
É só uma maneira de falar. Querendo dizer tudo, tudinho.
E
logo à noitinha Sebastiana entrou pela porta da cozinha do Padre. Sebastiana
precisava começar reconhecendo o seu lugar de empregada de casa paroquial.
Logo no dia seguinte, ninguém acreditava que
Sebastiana estivesse em casa do Padre. Uma negra pervertida daquela, ter o
topete de enganar o vigário a ponto de convencê-lo a dar-lhe emprego, era mesmo
um devaneio. O Padre Sebastião não passava mesmo de um inocente. Coitado dele.
Não tinha nem noção de quem era a negra Sebastiana. Iria terminar pervertendo
um padre tão virtuoso. E não houve quem o advertisse. É conveniente ir alguém á
sua casa, dizer quem é a negra Sebastiana. Será uma falta de atenção para com o
pároco, um santo vigário da igreja.
-
É melhor deixar como está. Ela não irá dizer quem é e talvez seja melhor não
despertar a atenção do Padre. Só o fato de ela sair de circulação, já é um
milagre. Só assim a cidade vai ficar em paz. A preta resolveu regenerar-se e
porque então ir perturbar sua nova vocação. Se o vigário sonhar, irá botá-la
fora e o diabo se solta novamente.
-
É mesmo. Deixa como está.
O
primeiro dia foi de total reserva. A negra Sebastiana, toda recolhida e
cerimoniosa, cuidava apenas de seus afazeres, como se nem a presença de sua
grande paixão. Apenas estudava-lhe as habilidades e a melhor forma de ataque. O
padre olhava para ela de soslaio, observando-a também. Na verdade não tinha
receio de tentação, pois sua formação moral era inabalável. Havia seguido a
carreira eclesiástica, certo de que renunciaria as mulheres. E ninguém o iria
modificá-lo. Sebastiana, no entanto, cada vez se incendiava mais, ficando ali
sozinha com a sua paixão devoradora. Mas havia de ser sutil. Nada de
agressividade, para não espanta-lo. Passou, então a procurar cativa-lo,
oferecendo isso, oferecendo aquilo, num gesto de agrado e respeito. Em seguida
passou a servi-lo do lado dele, recendendo ligeiramente a um perfume discreto.
Casualmente tocava no seu braço, ora na mão. E notava que o reverendo mordia os
lábios e ficava um tanto nervoso. Mas não dizia nada, o que era um bom sinal de
começo feliz. E foi avançando lentamente, sem demonstrar interesse direto. Isto
ficaria por conta do tempo e do padre. E foi evoluindo até chegar ao ponto de
entrar em seu quarto de dormir para saber se desejava alguma coisa. De começo
era sempre nada. Sebastiana passou sua mão umedecida de perfume que usava, na
fronha do travesseiro e ficou na expectativa. Se reclamasse ou não ela saberia
tirar suas conclusões. E como não reclamou nada, a coisa ia mudando ás mil
maravilhas. E Sebastiana foi aos poucos perfumando todas as coisas de uso do
padre Sebastião. Se não reclamava é porque estava gostando. Passou a usar
roupas mais soltas e mais livres e atraentes. Não fez qualquer observação.
Aumentou o decote e pedaços dos seios negros e rígidos ficavam um tanto á
mostra. Achou que estava no ponto, inclusive por notá-lo olhando discretamente.
Ia dar o bote. Não se enganava com os momentos psicológicos. Ao ir se deitar, Sebastiana
ficou em trajes sumários. Padre Sebastião chamou-a para uma recomendação. Iria
viajar muito cedo e queria o café mais cedo. Sebastiana com os peitos de fora,
as pernas, e o umbigo também, apresentou-se.
-
O que é isto menina!!!
-
Ora, não estamos os dois sozinhos.
-
Mas assim também é demais. Não sabes que o diabo atenta.
-
E daí...
-
Tenho que te dizer uma coisa, mas é segredo. Vai lá para o meu quarto...
E
Sebastiana foi vitoriosa. Tirou o resto da roupa e esperou deitadinha na cama
do reverendo.
-
Assim também, não sinhá doidinha.
E
às oito horas do dia seguinte ainda dormiam, Padre Sebastião esqueceu o café e
a viagem.
-
Olha aí o que fizestes, perdi a viagem e já é tarde demais para celebrar a
missa...
-
Amanhã, também não iras viajar. Vai adiando. Aqui viajar-se melhor.
-
Me enganastes, não foi?...
-
Eu! Eu não. Mas deu certo. É difícil alguém ficar perto da negra Sebastiana, sem
desejá-la. Foi só isto.
-
E para que tirastes à roupa toda, exibindo o corpo e as coisas proibidas pela
igreja.
-
Proibidas coisa nenhuma. Já contou os tempos que perdeu com suas besteiras de
proibição...
-
Negra do diabo, vamos os dois pro inferno.
-
Mas enquanto isto fiquemos no céu...
*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”,
no prelo.
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