quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

JARDELINA




 JARDELINA*

João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)


Jardelina Funcionaria Pública Estadual, um bom emprego, aliás, trazia consigo um firme propósito. Só se casaria com um doutor ou um Oficial do Exército. Moça de corpo bem arrumado, carinha bonita, sempre vestida como mandava o figurino, julgava uma tarefa fácil.
Apareciam candidatos, alguns apaixonados, mas recusava. Não possuíam anel, nem galões já estava fora de cogitações.
Jardelina, no entanto, esquecia-se de uma coisa. Do tempo que o relógio marcava. E lá se iam às horas, os dias, os meses e os anos, despercebidamente. Era uma questão de capricho. Quando via um sujeito de anel no dedo ou um militar, perdia até o jeito de andar. Endoidava. Atirava-se para cima. Como quem via um oásis no meio do grande deserto. Perdia a noção de tudo o mais e tinha a convicção de que havia chegado a sua vez. Às vezes não se informava se a vitima era casado ou não. E decepcionava-se quando vinha, a saber. Só faltava mesmo morrer de desgosto. Não admitia conselhos. Naqueles tempos, gente formada não andava batendo os chifres como hoje. Quando aparecia um médico ou um advogado era uma novidade. Geralmente em missão do Governo. O interior era a terra dos coronéis. E Jardelina era protegida de um deles, diretora de uma escola. Só andava toda empoada e como diziam os fofoqueiros toda emperiquitada.
O tempo que não perdoa ninguém ia sorrateiramente construindo sua morada nos alicerces de Jardelina. E ela nem via.
Todos os meses mais umas pedrinhas e boa argamassa. E o tempo morava e crescia sem pagar aluguel. Um inquilino ordinário, desses que não conserva a casa onde moram. Jardelina pintava a casa por fora para manter a aparência, mas lá por dentro o piso, o forro, as paredes iam se arruinando. E o doutor não aparecia. A teia de aranha ia tomando conta, as torneiras começavam a pingar e o cupim ia avariando as peças principais.
Certa feita, uma amiga indiscreta, dessas que gosta de sinceridade e não escondem nada lhe deu um aviso estarrecedor. Fazia tempo que não a via e disse-lhe espantada:
 - Que é isso Jardelina. Como estais diferente, ficando velha. Nossa mãe!
Jardelina deu uma risadinha amarela e procurou justificar-se.
 - Trabalho, minha nega. O ensino, muitos alunos, muitas cabecinhas diferentes...
- Já te casastes ou andas noiva? Paixão também faz dessas coisas.
- Nem uma coisa nem outra. Continuo a espera de meu escolhido.
- E a quem tu preferes. Não será que estais sendo muito exigente? Às vezes é isso. Deixam-se bons partidos sonhando com um ideal que não existe. E fica-se frustrada.
- Não. Apenas uma pessoa formada ou um oficial de nossa gloriosa Forças Armadas. Sabes como é. Tenho meu diploma de professora e pretendo juntar o útil ao agradável. Infelizmente não tenho tido boa sorte.  
- Pois, olha, Jardelina, te cuida. A gente envelhece sem pressentir. Cria rugas, se martiriza, vive cheia de ansiedades e quando vem abrir os olhos, ninguém nos quer mais. Os homens também escolhem e são mais exigentes, ás vezes do que nós. Sempre fostes uma moça bonita, atraente, e está deixando o tempo marcar o teu rosto, enrijecer o teu corpo e assim vai lhe destruindo. Procure a pessoa que te agrade e esquece essa história de diploma. Por traz de um titulo acadêmico pode estar uma lixeira. Não se casa com o diploma. Vive-se dele e, para alguns, tem sido um atrapalho. Há muito doutor burro e safado, Jardelina.
 Bem, desculpe as minhas observações e até a próxima vez, quando já quero te encontrar casada. Se exagerei perdoa-me.
Jardelina apalpou-se, passou as mãos pelo rosto, correu ao espelho e foi aí que se observou diferente e assustada. Abriu a gaveta, tomou o álbum de recordações e começou a compara-se. Sim, não era mais á mesma Jardelina. Feições mais duras, sem aquela suavidade de antes. Foi ao banheiro examinou-se toda, antes e depois do banho. Realmente já não era a mesma. E como diabo lhe acontecera aquilo sem que ela notasse.
Por que a amiga não apareceu antes pra adverti-la. Na verdade estava perdendo a exuberância. Aliás, já havia perdido muita coisa. Saiu para escola, desconfiada de si mesma. Todos deveriam estar vendo o desmoronamento físico. Ela, somente ela, andava cega. E agora! Havia recusado bons candidatos, até menosprezando-os. Gente sem diploma. Tinha que sair à campo, frequentar festas, tornar-se mais comunicativa e se necessário, esquecer as rezas na igreja para explorar o ambiente. Não tinha mais tempo a perder. O tempo não perdia um segundo. Teve vontade de rasgar o seu diploma de professora. Um atrapalho. Não atinava como lhe haviam entrado aquelas idéias idiotas de ter que se casar com um sujeito diplomado. Talvez por que não tinha diplomados na família. Somente seu tio possuía uma patente de tenente da Guarda Nacional. Custara-lhe dinheiro e mal sabia assinar o nome. Jardelina sentia-se recantada. Ninguém lhe dava atenção amorosa. A coisa andava preta.
Inesperadamente o Governo nomeou um novo delegado de policia para Cacimbas. Um tenente. A noticia andou rápida. Jardelina tomou um susto, era uma tentação. Mas lembrou-se das observações da amiga e do tempo perdido. Fez o pelo sinal para que Deus a livrasse até de vê-lo.
E sem esperar, lá, ia passando o delegado. Numa farda nova, parecendo um príncipe fardado de policial. Teve ímpetos de correu ao seu encontro e felicita-lo pelo novo cargo. Mas logo depois viu uma moça morena com um garotinho. Era a mulher de seu delega. Esfriou.
Enviuvou o promotor, sujeito ainda fornido. Jardelina ficou na expectativa. Quem sabe se não pretenderia se casar novamente. Aconteceu que o homenzinho pediu transferência e sumiu. A idéia de morrer donzela apavorava-a. Estava assistindo missa, quando notou que o Alírio, funcionário da edilidade estava de olhos nela. Não teve dúvida. Mandou-lhe umas olhadelas e um sorriso. Agora havia de dar certo. E deu, dois meses depois estava dormindo na mesma cama. Mesmo assim, quando se relacionavam, Jardelina imaginava que quem estava com ela não era o Alírio, mas sim, um advogado, um médico ou um oficial da briosa. Desmaiava em cima de um diploma ou de uns galões. Coitado do Alírio terminou tendo um filho que ela mesma não sabia de quem, era pelo menos na intenção. Doutor ou militar, isso não tinha importância, pois quem ia criar era mesmo o Alírio. Quando o garoto chamava Alírio de papai, Jardelina tinha vontade de apertar-lhe a garganta e gritar-lhe bem no ouvido: Alírio não, sem boboca, teu pai é um doutor ou um oficial das Forças Armadas. Quando foste gerado, estava me comunicando com gente formada. Valia a intenção. Certo dia, nas horas da agonia, Alírio ouviu muito bem quando Jardelina dizia! Ai meu doutorzinho de Nossa Senhora, meu oficial das Forças Armadas. E Alírio envaideceu-se por haver sido promovido. E pensou:
- Essas professoras têm cada uma... 

*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.

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