BOA
SORTE*
João
Henriques da Silva
(In
Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)
Ter boa sorte é um privilegio e não
adianta correr atrás dela, mesmo porque não se sabe onde está, ou se vai ou se
vem. É um bichinho invisível e muitas vezes traiçoeiro e enganoso. Esconde-se
para muita gente e nem dá a graça de botar a cara de fora. Algumas vezes
aparece, dá um empurrão no sujeito para frente, mas acontece que no melhor
embalo da rede, a corda se quebra e a queda parte a espinha. E daí para frente
não há mais remédio, nem garrafada de esperança que sirva. Nem por isto deixa
de haver algum felizardo.
E um deles era o Birindiba.
Imagine-se nasceu num dia santo dia da ressurreição, a mãe amamentou-o quase um
ano inteiro sobrando leite, nunca adoeceu, não teve sarampo nem doenças de
olhos, dor de barriga nem se fala, e durante a dentição não sofreu a menor
alteração. Quando completou os sete anos de vida feliz, foi para a escola e
sentia prazer nisso. Era capaz de chorar quando a professora faltava. Terminou
o curso primário e achou que já era suficiente, e os pais concordaram com ele.
Não pretendia ser doutor de coisa nenhuma e o que sabia dava demais para
conduzir-se bem. No entanto, gostava de ler jornais, revistas e bons livros.
Maneiroso, fazia montes de bons amigos e as meninas o adoravam, não porque
fosse uma imagem, mais pela sua graça e maneira de dizer as coisas. Olhava tudo
com simpatia e nunca notava ou criticava defeitos alheios. O seu segredo era
este: Ora, não era nem pretendia ser palmatória do mundo. Dava conselhos só,
para o bem e desviava os companheiros do mau caminho.
- Ermírio, porque estas atirando
pedras no cachorrinho de seu Tristão. Que mal que ele te fez?
- Pode me morder. Sei lá.
- Não, faze o contrário, chama-o e dá-lhe
carinhos. Ficará teu amigo e mais tarde poderá até te defender. Cachorro tem
bom faro e vê ou percebe as coisas, primeiro do que a gente. Assim, se tem uma
cobra na tocaia ele chama a atenção. Qualquer bicho mau que aparece, ele
afugenta. Quando se ouve o latido de um cão, já se sabe que há qualquer coisa a
chamar atenção. Não se maltratam os animais. Aqueles passarinhos que crias em
gaiolas são contra as leis da natureza. Foram criados com asas para voar e é
tão bonito ver os bichinhos alegres, voando e cantando. São os donos do espaço
e destroem os insetos maus que estragam as lavouras. É bem certo que não
gostarias de ficar engaiolado nem preso dentro de casa. Gostas de andar e correr
pelos campos como eles também; gosta de voar, de fazer seus ninhos nas frondes
das árvores para criar seus filhotes. Repara que o canto deles, soltos no campo
é muito mais alegre, mais solto, mais mavioso. Na gaiola o canto é só tristeza
e saudade. É possível que nunca hajas notado.
- Ora, mas tem comida sem precisar procurar.
- O que? Alpiste e água. Comer o que
lhe dão. Quantos dias suportarias somente arroz. Ficarias zangado até com tua
mãezinha, não é mesmo. Eu sou uma pessoa feliz, pois não faço mal nem contrario
ninguém.
Birindiba dizia essas coisas com
docilidade, sem parecer uma recriminação. Não queira impor nada a ninguém e
assim não sofria angustias e nem se tornava antipático.
Birindiba foi crescendo e já era um
rapaz feito, trabalhando na mercearia do pai. E era ali a maior atração. Não
por ganância ou ambição, mas apenas pela maneira natural de ser feliz e querer
desejar felicidade aos outros.
O pai já lhe parecia cansado e a mãe
saturada do cotidiano, aquele dia a dia a fazer as mesmas coisas, como um
mecanismo de repetição.
O pai teria que ficar somente na
supervisão dos negócios. O restante seria com ele. Não iria fazer mais nada por
obrigação.
E com a mãe, deu-lhe uma boa
empregada. E que fosse descansar. Já haviam lutado demais. Aquele começo de
velhice havia de ser respeitado. Os filhos vinham ao mundo para substituir-los
na velhice, para poupá-los. E quando isto não acontecia obviamente os filhos
não reconhecia o valor de quem os criou. E acrescentava: - Mais tarde pagará na mesma moeda. Os filhos
lhe farão o mesmo. Era questão somente de esperar.
Tudo quanto João Birindiba fazia era com
satisfação, como se nada lhe fosse pesado ou difícil e sim um alegre
entretimento. Era de sua própria índole. Nunca se via Birindiba sem um sorriso
a soltar-se como uma grande flor que desabrocha. Jamais amanhecera com a boca
amargando e nem com enfado. Se por acaso sentia qualquer achaque, guardava só
para ele. Não havia porque angustiar alguém.
Birindiba estava à frente dos
negócios do pai e em casa, havia quem a dirigisse, para descanso de dona Flor.
Os rendimentos do comércio iam sobrando e se acumulando. E para que maior
tranqüilidade de espírito. Trabalhar; trabalhava com afinco e honestidade, sem
explorar ninguém. Não ia além dos vinte por cento de praxe.
Era necessário, para uma completa
felicidade, fazer o bem estar dos ouros. Se os animais domésticos ou silvestres
amam-se e se protegem, por que então os homens não fazem o mesmo e mais
refinadamente.
Birindiba preocupava-se com o amor
universal e em sua forma de ser feliz. Esquecia-se de complementar o seu
próprio, com o amor de uma mulher.
E, no entanto, já era tempo de
cuidar de si próprio. Mas sem experiência, receava cometer o maior erro de sua
vida. Errar na escolha e interromper sua felicidade. Poderia casar-se com
alguém que não o compreendesse, uma moça exigente, e egoísta. Rica ou pobre,
ninguém estava lá dentro dela para adivinhar seus pensamentos e seus
propósitos. O certo era esperar que alguma desse sinal de amizade para uma
aproximação reveladora. Lembrou-se, então, de uma sua companheira de escola,
menina dócil e que estudava para aprender e não pela vaidade de ser a melhor da
classe. Freqüentava a sociedade desprendidamente, sem afetação e com uma
humildade encantadora.
Já era professora e querida de seus
alunos. Nenhum deixava de querer-lhe bem e, respeita-la apesar de sua modéstia.
Tornava-se fácil, portanto, avaliar o temperamento de Maria Lia, através dos
alunos.
Parecia-lhe lógico que se a meninada
a adorava não haveria dúvida que era dócil e compreensiva. Seria terrível
tornar alguém infeliz. Se Maria Lia não era nenhum padrão de beleza, também
ninguém transpirava maior simpatia. Resolveu, então, fazer uma visita à escola,
levando confeitos para distribuir com a meninada. Queria ver Maria Lia de
perto, sentir-lhe o perfume suave que toda mulher exala quando gosta de alguém.
Cheiro de amor. E foi um momento de encantamento. Um reencontro com os tempos
de escola. Dias depois a conversa amiudou.
- Poderia saber por que tem vindo
visitar minha escola, Birindiba?
- A escola, não. Venho vê-la e posso
fazer-lhe uma pergunta?
- Pode, sim.
- E se nos casássemos...
- Aí não sei. Não parece que como
estamos somos felizes?
- É. Até hoje me considero uma
pessoa feliz. Mas não seria melhor somarmos nossa felicidade. Sei que se este
meu sonho falhar, começarei a sentir-me infeliz.
- E será que o tornarei mais feliz
do que é?
- Não tenho dúvida. Somos amigos
desde a infância. E amizade de infância é como uma pedra preciosa. Nunca perde
o brilho.
Casaram-se. E verificaram que a
felicidade anterior era apenas uma rima do espírito. Agora era um poema em
sextilha, rimado pelos dois no balanço da rede.
Em 29-9-1986.
*O
conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.
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