terça-feira, 15 de janeiro de 2013





BOA SORTE*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)


Ter boa sorte é um privilegio e não adianta correr atrás dela, mesmo porque não se sabe onde está, ou se vai ou se vem. É um bichinho invisível e muitas vezes traiçoeiro e enganoso. Esconde-se para muita gente e nem dá a graça de botar a cara de fora. Algumas vezes aparece, dá um empurrão no sujeito para frente, mas acontece que no melhor embalo da rede, a corda se quebra e a queda parte a espinha. E daí para frente não há mais remédio, nem garrafada de esperança que sirva. Nem por isto deixa de haver algum felizardo.
            E um deles era o Birindiba. Imagine-se nasceu num dia santo dia da ressurreição, a mãe amamentou-o quase um ano inteiro sobrando leite, nunca adoeceu, não teve sarampo nem doenças de olhos, dor de barriga nem se fala, e durante a dentição não sofreu a menor alteração. Quando completou os sete anos de vida feliz, foi para a escola e sentia prazer nisso. Era capaz de chorar quando a professora faltava. Terminou o curso primário e achou que já era suficiente, e os pais concordaram com ele. Não pretendia ser doutor de coisa nenhuma e o que sabia dava demais para conduzir-se bem. No entanto, gostava de ler jornais, revistas e bons livros. Maneiroso, fazia montes de bons amigos e as meninas o adoravam, não porque fosse uma imagem, mais pela sua graça e maneira de dizer as coisas. Olhava tudo com simpatia e nunca notava ou criticava defeitos alheios. O seu segredo era este: Ora, não era nem pretendia ser palmatória do mundo. Dava conselhos só, para o bem e desviava os companheiros do mau caminho.
- Ermírio, porque estas atirando pedras no cachorrinho de seu Tristão. Que mal que ele te fez?
- Pode me morder. Sei lá.
- Não, faze o contrário, chama-o e dá-lhe carinhos. Ficará teu amigo e mais tarde poderá até te defender. Cachorro tem bom faro e vê ou percebe as coisas, primeiro do que a gente. Assim, se tem uma cobra na tocaia ele chama a atenção. Qualquer bicho mau que aparece, ele afugenta. Quando se ouve o latido de um cão, já se sabe que há qualquer coisa a chamar atenção. Não se maltratam os animais. Aqueles passarinhos que crias em gaiolas são contra as leis da natureza. Foram criados com asas para voar e é tão bonito ver os bichinhos alegres, voando e cantando. São os donos do espaço e destroem os insetos maus que estragam as lavouras. É bem certo que não gostarias de ficar engaiolado nem preso dentro de casa. Gostas de andar e correr pelos campos como eles também; gosta de voar, de fazer seus ninhos nas frondes das árvores para criar seus filhotes. Repara que o canto deles, soltos no campo é muito mais alegre, mais solto, mais mavioso. Na gaiola o canto é só tristeza e saudade. É possível que nunca hajas notado.
- Ora, mas tem comida sem precisar procurar.
- O que? Alpiste e água. Comer o que lhe dão. Quantos dias suportarias somente arroz. Ficarias zangado até com tua mãezinha, não é mesmo. Eu sou uma pessoa feliz, pois não faço mal nem contrario ninguém.
Birindiba dizia essas coisas com docilidade, sem parecer uma recriminação. Não queira impor nada a ninguém e assim não sofria angustias e nem se tornava antipático.
Birindiba foi crescendo e já era um rapaz feito, trabalhando na mercearia do pai. E era ali a maior atração. Não por ganância ou ambição, mas apenas pela maneira natural de ser feliz e querer desejar felicidade aos outros.
O pai já lhe parecia cansado e a mãe saturada do cotidiano, aquele dia a dia a fazer as mesmas coisas, como um mecanismo de repetição.
O pai teria que ficar somente na supervisão dos negócios. O restante seria com ele. Não iria fazer mais nada por obrigação.
E com a mãe, deu-lhe uma boa empregada. E que fosse descansar. Já haviam lutado demais. Aquele começo de velhice havia de ser respeitado. Os filhos vinham ao mundo para substituir-los na velhice, para poupá-los. E quando isto não acontecia obviamente os filhos não reconhecia o valor de quem os criou. E acrescentava:  - Mais tarde pagará na mesma moeda. Os filhos lhe farão o mesmo. Era questão somente de esperar.
 Tudo quanto João Birindiba fazia era com satisfação, como se nada lhe fosse pesado ou difícil e sim um alegre entretimento. Era de sua própria índole. Nunca se via Birindiba sem um sorriso a soltar-se como uma grande flor que desabrocha. Jamais amanhecera com a boca amargando e nem com enfado. Se por acaso sentia qualquer achaque, guardava só para ele. Não havia porque angustiar alguém.
Birindiba estava à frente dos negócios do pai e em casa, havia quem a dirigisse, para descanso de dona Flor. Os rendimentos do comércio iam sobrando e se acumulando. E para que maior tranqüilidade de espírito. Trabalhar; trabalhava com afinco e honestidade, sem explorar ninguém. Não ia além dos vinte por cento de praxe.
Era necessário, para uma completa felicidade, fazer o bem estar dos ouros. Se os animais domésticos ou silvestres amam-se e se protegem, por que então os homens não fazem o mesmo e mais refinadamente.
Birindiba preocupava-se com o amor universal e em sua forma de ser feliz. Esquecia-se de complementar o seu próprio, com o amor de uma mulher.
E, no entanto, já era tempo de cuidar de si próprio. Mas sem experiência, receava cometer o maior erro de sua vida. Errar na escolha e interromper sua felicidade. Poderia casar-se com alguém que não o compreendesse, uma moça exigente, e egoísta. Rica ou pobre, ninguém estava lá dentro dela para adivinhar seus pensamentos e seus propósitos. O certo era esperar que alguma desse sinal de amizade para uma aproximação reveladora. Lembrou-se, então, de uma sua companheira de escola, menina dócil e que estudava para aprender e não pela vaidade de ser a melhor da classe. Freqüentava a sociedade desprendidamente, sem afetação e com uma humildade encantadora.
Já era professora e querida de seus alunos. Nenhum deixava de querer-lhe bem e, respeita-la apesar de sua modéstia. Tornava-se fácil, portanto, avaliar o temperamento de Maria Lia, através dos alunos.
Parecia-lhe lógico que se a meninada a adorava não haveria dúvida que era dócil e compreensiva. Seria terrível tornar alguém infeliz. Se Maria Lia não era nenhum padrão de beleza, também ninguém transpirava maior simpatia. Resolveu, então, fazer uma visita à escola, levando confeitos para distribuir com a meninada. Queria ver Maria Lia de perto, sentir-lhe o perfume suave que toda mulher exala quando gosta de alguém. Cheiro de amor. E foi um momento de encantamento. Um reencontro com os tempos de escola. Dias depois a conversa amiudou.
- Poderia saber por que tem vindo visitar minha escola, Birindiba?
- A escola, não. Venho vê-la e posso fazer-lhe uma pergunta?
- Pode, sim.
- E se nos casássemos...
- Aí não sei. Não parece que como estamos somos felizes?
- É. Até hoje me considero uma pessoa feliz. Mas não seria melhor somarmos nossa felicidade. Sei que se este meu sonho falhar, começarei a sentir-me infeliz.
- E será que o tornarei mais feliz do que é?
- Não tenho dúvida. Somos amigos desde a infância. E amizade de infância é como uma pedra preciosa. Nunca perde o brilho.
Casaram-se. E verificaram que a felicidade anterior era apenas uma rima do espírito. Agora era um poema em sextilha, rimado pelos dois no balanço da rede.

                                              Em 29-9-1986.

*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.

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