quarta-feira, 18 de abril de 2012

O VENDEDOR DE BORÓ




O VENDEDOR DE BORÓ*
João Henriques da Silva
 (In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

Chamava-se Joélio. Exatamente Joélio. Isso mesmo. Gente de boa família, alvo, alto, franzino, cabelos bem estirados e pretos. Tenho a impressão que usava um bigodinho e custava a fazer a barba. Morava na roça. Não se dava com trabalho de campo e preferia comerciar com qualquer bugiganga, usando de suas artimanhas. Era mais uma forma de passar o tempo e aparentar que não vivia da vagabundagem. Por mais que a família insistisse para mudar de profissão e viver melhor fazia ouvidos de mercador.
- Estou muito bem, assim. Essa história de ir para o pesado, não é comigo. Cada um nasceu com uma inclinação diferente. Gosto de andar, ir às feiras comerciar ambulante. E não me venham com esse negócio de ficar rico. Rico não tem sossego e tem que trabalhar como jegue. É negócio pra doido ou gente besta. Deixem-me como estou. Cada um tem a sua maneira de ser feliz.
Joélio especializou-se em vender boró, fumo em corda da pior qualidade. Mas vendia como mercadoria de primeira classe. Aí é onde estava sua habilidade comercial. Quem já o conhecia, só comprava uma vez. E se reclamava, tinha sempre uma explicação:
– Fui também enganado, meu velho. Comprei em confiança. Creio que não soube fumar ou fazer o cigarro. Vou fazer um cigarro para experimentar novamente.
E Joélio à medida que ia conversando, preparava novo cigarro, sem que o freguês percebesse sua manobra. Joélio já trazia no bolso do paletó, fumo da melhor qualidade, bem picadinho e junto, os papeis de cigarro. Cortava do Boró, esfarelava na mão, e mostrava., Imperceptivelmente, ao tirar o papel, apanhava o fumo especial e deixava o outro no bolso. O sujeito acendia e confirmava:
 – “o fumo é feio, mas é pegador de fogo e gostoso. Dei-me mais dois mil reis.” E Joélio metia o dinheiro no bolso e dava o fora. Ia procurar outra vítima. Aliás, o seu interesse maior não era tanto ganhar dinheiro e sim comercializar, enrolar a freguesia, mostrar a sua esperteza.
O boró ele não comprava. Saia pelos sítios da região, recolhendo o fumo boró que estava sendo jogado fora. Levava para casa, fazia uma garapa de açúcar bruto e dava um banho bem esfregado. O boró melhorava de aspecto, embora piorasse de qualidade. O que lhe interessava era a aparência. Fumo para as provas levava do melhor. Feiras ruins, feiras melhores e assim ir exercitando a sua vocação.
Certa feita teve um dia azarento. Já à tardinha e não havia vendido quase nada. Ia voltar com a mercadoria que carregava no ombro. Com a tristeza de um negociante frustrado, ia se indo. Mas acontece que já na saída, passou pelo local onde vendiam carneiro e bode. A carne estava pendurada em varais. Teve uma lembrança. Trocar o resto da corda de boró por um quarto de bode. E, depois da prova habitual, fechou negócio.
- Está bem. O fumo é feio, mas engana quem o vê. É danadinho de bom.
Na semana seguinte os negócios pioraram. Joélio resolveu-se a fazer nova troca. Ao menos levaria um quarto de bode para casa.
- Vou pegar aquele besta de novo.
E foi indo, fazendo seus cálculos. Quando já estava perto e antegozando a enrolada, avistou a corda de boró, inteirinha, pendurada ao lado da carne de bode. Deu uma recuada, antes que fosse visto e pisou para longe – “É o diabo quem vai lá.” O cabra descobriu a tramóia. Vai com certeza desmanchar a corda de fumo boró em minha cara. Preciso tomar mais cuidado. Aquele cabra não presta e faz conta de bobagem. Não passa mesmo de um borozeiro e anda com luxo.
Em todo caso Joélio não pendeu mais para o lado da feira de bode. Valia a pena se precaver. Olhando de longe viu durante três feiras seguidas, a corda de boró pendurada no varal, esperando por ele.
- É o diabo... Quem vai lá...
Joélio, solteirão, resolveu casar. O difícil era arranjar a noiva e manter a casa com um negócio tão escasso. Rodou, rodou e por fim descobriu uma viúva sem filhos e dona de uma pequena propriedade que dava bom rendimento. Feia e desengonçada de tal forma que o marido havia morrido de desgosto e tristeza. Mas o Joélio apesar da boa aparência, não se preocupava com a imagem da noiva. O que o enfeitiçava eram os bens da viúva que os administrava com aprumo. Poderia até largar o comércio de sua paixão. Aliás, era o seu propósito. Já estava cansado de tapear a sua variada freguesia. Casou. Era duro olhar para a cara da mulher ao amanhecer, ao anoitecer ou qualquer outra hora do dia. Tentava resistir e acomodar-se a feiúra incomodativa da mulher, mas era honestamente impossível. E, francamente, Joélio havia cometido maior erro de sua vida. Não havia patrimônio que compensasse a obrigação de olhar aquele espantalho diariamente. Joélio passava o maior tempo possível andando pelo sítio ou fora de casa, fugindo a tamanha desgraça. Mas a dona Marocas passou a exigir a presença do seu maridinho querido ao seu lado.
- Não me casei para viver só. Você terá que passar a maior parte do tempo pertinho de mim. Faço questão disso, meu Joeliozinho.
- Mas...
- Mas, coisa nenhuma. Não pense que vai me escapar. Deixa o sítio pra lá. O mato crescer, os passarinhos comerem as frutas, caírem às cercas, morrer o último cabrito. Quero você perto de mim, encostadinho.
Joélio arrependeu-se do dia que havia nascido. Começou a emagrecer, a ficar lesado, mas um belo dia calçou as esporas.
- Maroca, ou Maroca! Presta a atenção. De agora por diante não vou ficar amarado aos teus pés. Já estou empanzinado dessa vida de palerma. Teu lugar é em casa e o meu cuidando do sítio e das coisas lá fora.
Não me venhas mais com essa história de meu Joeliozinho. Do contrário, deixo-te aí sozinha. Caio fora de uma vez. Vê bem o que preferes. Tenho te aturado até hoje, mas aqui quem manda sou eu. Eu! Ouvistes!
- Sabes de uma coisa custa e certa. Um homem como és tu, não faz falta a mulher nenhuma.
- Pois sim... Vou te mostra. Vais ver quando estiveres novamente só.
- E a tua companhia de que me tem servido. O que eu quero mesmo tu não me dás. Sempre alegas que estás cansado, com sono, com mal estar. Só safadeza. Casei-me pra ter um homem...
Joélio olhou para a cara da Maroca, e sentiu um frio correr-lhe pela espinha.
De qualquer forma tinha que dar-lhe uma prova de que era homem. E fez de conta que Maroca era novinha, e bonita. Pensou nela só como mulher. – quem sabe, por trás de um muro velho pode haver um canteiro de rosas. E nesse dia tomou conta de Maroca.
Era feia, mas era boa...

*Este conto, faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.

maracajag@hotmail.com




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