TIARA*
João
Henriques da Silva
(In Memoriam
20/09/1901 – 16/04/2003)
Cidade pequena do interior onde todo
mundo se conhece. Poucas ruas, umas retas outras tortas, e de poucas diversões.
Mas
havia uma coisa que ninguém perdoava: a desonestidade familiar. Hábito do velho
sertão, cheio de moral e preconceitos.
Marido
havia de andar na linha e das mulheres nem se falava. A fidelidade conjugal era
questão de vida ou de morte. Marido ou mulher de quem se suspeitasse qualquer
desviozinho, ficava logo isolado e inteiramente sem ambiente. Tinha era que se
mudar.
Para
os solteiros, havia uma pensãozinha de mulheres lá numa ponta de rua onde gente
de família não passava para ser vista. Pureza total, na cidade.
Casou
acabou-se. Tinha que se trancar em casa. Havia uma rigorosa solidariedade
entres as mulheres. Até mesmo os solteiros quando se apegavam a um namoro
sério, eram também fiscalizados. Era um regime de convento. Quando algum marido
viajava, na volta passava por um interrogatório, a roupa era cheirada e as
lavadeiras tinham recomendação de verificar qualquer coisa estranha.
Tudo
ia nesse pé quando chegou para Nossa Senhora da Pureza, uma cabrocha que não
tinha defeito em cima dela. Bonita dos pés à cabeça, cheia de requebros
diabólicos e capaz de devorar qualquer um só pela maneira de olhar.
No
começo ficou internada lá na pensão das mulheres, estudando o ambiente.
Observou que lá não aparecia um homem casado, justamente os que soltavam as notas
com maior liberalidade. Ouviu as companheiras. Era norma da cidade e ai daquela
que procurasse transgredi-la. As casadas cairiam em cima e seria um Deus nos
acuda. Mas Tiara – nome de guerra – andava pelo mundo para ganhar dinheiro, fazer
economia e depois mudar de vida. E tinha presa nisso. A mercadoria era de
primeiríssima qualidade e quem a visse saltava em cima.
Começou
a sair, a pretexto de fazer pequenas comparas. Ia de loja em loja, passeava
pelas ruas principais volteando o corpo, mas, decentemente vestida. O mulherio
assanhou-se. Queria saber logo quem era. Talvez filha de alguma família
desconhecida, chegada recentemente. Viam-na passar diariamente, sozinha,
perfumada, conversando aqui, parando acolá, mas de preferência com os casados.
A turma estava assanhada. Os comentários saiam de instante a instante. E logo
descobriu quem era Tiara.
Não
tinha jeito, havia de ser quebrado o controle. Uns simulavam viagens rápidas,
planejadas ou improvisadas e metiam-se na pensão onde Tiara e os esperava. A danada
da Tiara, não mudava o seu ritmo de caçar maridos.
As
casadas já sabiam quem era ela e as suspeitas aumentavam. Mandaram recados. Que
desaparecesse o mais cedo possível.
Com
isso Tiara tornava mais frequente os seus passeios. Nem dava bolas. Novos recados
com maiores ameaças. Era a mesma coisa que mandar-lhe um presente. E o dinheiro
entrando grosso. Resolveram apelar para ao vigário. Fizesse um sermão lascado
sobre a moral em Nossa Senhora da Pureza.
O
padre falou, mas um tanto por longe. O mulherio não gostou. Voltou ao padre
Abelardo. Novo pedido, quase uma exigência. Padre Abelardo foi claro. Não
poderia impedir que alguém viesse morar na cidade. E depois, não lhe constava
que a moça estivesse se comportando indecentemente. Já tivera, aliás, a curiosidade
de vê-la. Bem trajada, sem sombra de escândalo. Fazia suas comprinhas, voltava
à sua pensão, sem ofender a moral de seu ninguém.
-
Mas, seu vigário, essa dona anda procurando os nossos maridos. De loja em loja,
com cara de inocente e vai terminar desvirtuando os nossos maridos. Aqui nunca
houve disso.
-
Está certo, está certo. Vou observá-la melhor e se tiver oportunidade darei uns
conselhos. Mais do que isso, só o DR. Juiz ou Delegado de Polícia.
Saíram
da casa do padre Abelardo, revoltadas. Pelo que se via o bicho também já andava
interessado. - “Vou observá-la melhor” Ouviram? Está tudo perdido. Mas vamos às
autoridades.
Foram
ao delegado.
-
Qual foi o crime que a Tiara cometeu? Mandarei chamá-la imediatamente e
conforme a gravidade lhe darei uma cadeia e a expulsarei da cidade.
-
Muito bem seu delegado. É assim que se defende a moral pública.
-
Vamos aos fatos. O que afinal aconteceu?
-
Essa tal de Tiara é uma mulher da vida, seu delegado. Anda de casa em casa
comercial arrastando nossos maridos para a perdição. Um absurdo em Nossa
Senhora da Pureza.
- Ah!
É a Tiara. Já a conheço. Uma menina muito bem comportada. De todas elas, a que
melhor se apresenta. Vestida como uma senhora. Sem ostentação, nem leviandades.
-
Mas ela é uma tentação. Com mais algum tempo será dona exclusiva dos nossos
maridos. Não pode. Aqui nunca se viu disso. Falta de respeito. Todo mundo sabe
que é uma mulher à toa.
-
Nada posso fazer. A lei não me faculta essas proibições. É uma moça direita.
Vive pra lá a sua vida e, aliás, com decência. Não tenho culpa por ser bonita,
elegante, e, muito menos dos seus maridos andarem à sua procura. Isto é normal
em toda parte. Ela, coitadinha, não tem outra profissão e vale-se do que tem.
Era só o que tinha a dizer. Deixem a amenina em paz.
Saíram
atropeladas. – “Não temos autoridade”. O padre Abelardo saiu-se com aquela. Já
se vê não é boa bisca também. O delegado pior ainda. Um safadório.
Mas
vamos à frente. O Juiz. Aquele sim. É um homem de bem. Vamos mostrar a esse padreca
e a esse delega, que aqui em Nossa Senhora da Pureza, ainda tem homem. Aquela
bichota não vai ficar aqui. Crueira safada. Em vez de ir trabalhar, honestamente,
anda explorando os bestas com aquele corpinho cheio de volteados. Vai ver com
quantos paus se faz uma jangada. Dentro de dois ou três dias a cidade ficará
livre dela.
-
Estais muito confiada. O juiz é um sujeito ainda moço e quem sabe se já não
está nos pés da Tiara. Aliás, a Tiara é uma menina completa. Não lhe falta nada. Cuida-se muito bem, só
anda perfumada e atraente. E quem, afinal, não vai atrás de um chuchuzinho
daquele. Só a cor, o rosto, aquelas pernas bem feitas, o jeitinho de andar,
aqueles seiosinhos pequenos, tudo isto, minha comadre, é atrativo. A culpa é
nossa em grande parte.
-
Não quero saber disso. Homem, casou. Tem que ficar em casa e contentar-se com o
que escolheu. Errou, errou, a culpa é deles.
-
Deles, não. Quando o teu se casou contigo, andavas que parecia uma princesinha.
Depois te abandonastes. Peitaria caída, mal penteada, cheirando a suor, andando
desengonçada. Tu e eu, esta é que é a verdade! Que interesse pode ter alguém
por nós? Nenhum. Nenhum mesmo. Na verdade nós estamos uns bagulhos diante da
Tiara...
-
Também não é tanto assim. E seja ou não seja, são nossos maridos e que se
torrem. Andar atrás de outras só porque andam perequetés, isto não. Vamos,
vamos, anda à casa do Sr. Juiz. Aquela cara de fuinha é que não vai ficar aqui.
Marido meu ela não prova e nem come o seu dinheiro, que é isto o que ela quer.
-
Senhor doutor Juiz. Estamos com um problema gravíssimo. A cidade está em perigo. Ameaçada em suas tradições de moral.
- O
que há de tão sério. Contem logo, pois precisamos protegê-la. Não podemos
admitir que Nossa Senhora da Pureza modificasse os seus hábitos de moralidade.
-
Estais vendo aí o que te dizia comadreca! Autoridade é autoridade. Fomos logo
bater em portas de umburana.
O
Dr. Juiz ficou logo esclarecido de tudo e com as cores mais dramáticas.
-
Quem é, afinal de contas essa doida, vamos. Pelo que percebo é a tal da Tiara,
chegada aqui há uns dois meses.
-
Isto mesmo. Ela mesma. É um desassossego entra as famílias. Não temos mais tranquilidade.
A mulherzinha anda cidade acima, cidade abaixo feita um vampiro. Nossos lares
estão gravemente ameaçados. Queremos que o senhor a mande embora de uma vez por
todas.
-
Esta é primeira queixa que me chega. E pelo que tenho observado a Tiara tem
dito um ótimo comportamento. Vem à rua, faz suas compras, distrai-se um pouco e
retorna à sua casa.
-
Mas doutor, e os nossos maridos que ela está desviando?
-
Desviando pra onde, criaturas de Deus. Vai procurá-la quem quer. É uma moça
livre, cuja profissão, infelizmente, é alegrar os tristes. Qualquer dia destes
irei lá para fiscalizar essa tal de Pensão. Caso haja excessos, tomarei as
medidas que a lei estabelece. Mandá-la ir embora isso não tenho como fazê-lo.
Se a moça é bonita, atrativa e sabe fazer o seu negócio, isto não é nada
irregular e nem poderei proibir. Ajeitem os seus maridos, deem-lhes o conforto
que eles merecem. Por que vou prejudicar uma pobre moça sem outra profissão.
Ela é dona de si e cada um que se cuide. Já a vi algumas vezes e achei-a uma
moça decente e de respeito com a sociedade. Se é bonita, foi um dom que Deus
lhe deu. Nada de preocupações. É uma criatura inofensiva. Deixem a menina
viver. Por que não a chamam e dão-lhe um emprego. Deixaria de ser o que é e de
viver como vive. Será um ato de caridade. Cada uma que se livre de tanta
infelicidade.
Saíram
pisando alto. Remoendo o descaramento do Sr. Juiz.
-
Pior do que os outros. Arranjar um emprego, botar uma pestinha daquela dentro
de casa. Aquilo já está também amarrado na Tiara.
-
Sabes, o melhor é deixar a Tiara pra lá e os maridos também. Ninguém vai dar
jeito neles. Mulher bonita e nova é um castigo. Não há quem possa com elas,
especialmente quando possui material de luxo pra oferecer.
-
Vou mandar dar-lhe uma surra. Riscar-lhe a cara. É isto que ela merece.
-
Estás louva! Nunca mais terias tranquilidade e ficarias na cadeia. Cuida-te e
cuida do teu marido. Ele também não é nenhum santo, para ver uma coisa daquela
e não reinar.
-
Já vi que estou só. Vou pedir a Honorato pra gente se mudar daqui.
-
Ora se Tiara gostar do teu marido, isto é, se estiver chupando bem o dinheiro dele,
irá atrás. Essa gente não tem amor a ninguém. Quer é dinheiro. E já estás quase
aposentada... Honorato vai lá e volta. Caso comeces a apertar, poderá ir de uma
vez. E então, nem o mel nem a cabaça.
Nesse
momento Tiara passava pelo grupo das casadas. Ouviu algumas indiretas pesadas:
– “Rameira,
quenga, bicha, ordinária, perua, galinha pedrês e mais outras coisas de
desabafo”.
Tiara
parou e voltou. De bem perto, falou tranquila e de olho bem na cara delas:
- Respeitem-me sinhas corujas. Sou
uma mulher decente. Cuido de minha vida sem incomodar ninguém. Podem ir
novamente ao padre, ao delegado e ao doutor juiz. Já me contaram tudo. Daqui
não saio daqui ninguém me tira. E agora demorarei mais. Enquanto tiver quem me
queira, não arredarei pé. Vão cuidar dos seus filhos. Os maridos podem deixar.
Eu tomarei conta deles. Não se preocupem. Darei a eles todo o meu carinho, o
carinho que eles necessitam e que vocês não têm. Ouviram bem! Olhem para mim e
se olhem no espelho. Verão a diferença. Mas não se assustem. Não quero fica com
nenhum deles. Apenas quero que voltem para suas casas com a satisfação de terem
ficado um instantezinho com Tiara. Eles conhecem a diferença. Não tenham
receio. Sou uma mulher limpa, sadia e atraente. Antes de saírem de minha casa,
tomam seu banho. Não quero dar a vocês o prazer de sentirem o cheiro bom de
Tiara. Quando chegam lá, só os recebo depois de um banho para tirar o bodum.
Comigo é assim. Exijo muito asseio. Sou uma mulher te trato. Podem mandá-los
pra lá sem qualquer receio. Lá não escapa ninguém. O regime é o mesmo. Pode ser
padre, delegado ou juiz. Banho antes e banho depois. Também não suporto cheiro
de bebidas ordinárias. Recomendem que levem mais dinheiro e mais cedo poderei
ir embora. Mereço mais do que me pagam. É pena que vocês não possam me
experimentar. Sairiam encanadas. Agora mais um pedido: mandem-me alguns
perfumezinhos bons para atender melhor minha grande clientela. Todos gostam de
uma mulher perfumada discretamente. E eu tenho arte para isso. Vocês conhecem
as preferências de sues maridos.
- Mas é mesmo uma descarada!
- Pelo contrário. Tenho uma boa cara.
Até logo e lembre-se de Tiara. Ela não incomoda ninguém e trata bem as visitas.
Gosto muito desta cidade. Talvez até resolva não sair mais daqui. Ajudem-me e
terão uma boa colaboradora. Dou aquilo que os maridos de vocês não têm em casa.
Até outro encontro.
E lá se foi, tranquilamente.
- É uma cínica!
Muita gente assistiu de longe o
encontro do grupo de casadas com a Tiara.
- Que tal a Tiara. Pelo que se viu,
gostaram da menina. Mas todos estão censurando. Mulheres casadas, da melhor
sociedade de Nossa Senhora da Pureza, conversando longamente com uma
transviada. Que falta de decência. Acabou-se a dignidade da cidade. Os maridos
estão todos revoltados. Que não se repita outra falta de compostura dessa
ordem.
Vocês, francamente, ou não tem juízo,
ou estão perdendo o decoro. Não admito que se repita outro encontro. O que não
vão dizer:
- A mulher de fulano, conversando
abertamente com uma quenga, em pleno dia e em plena cidade, aos olhos de todo
mundo.
Não, isto não ficará assim. Nós, os
maridos iremos reagir. Falta de compostura. Fazer relacionamento com uma mulher
perdida. Incrível. Nós, os maridos não iremos perdoa-las, estejam certos disso.
Não nos faltava mais nada!
As mulheres reuniram-se. O caso
estava sério. Não deviam ter se metido com a Tiara. Está em que deu. Imiscuí-se
com uma catraia e os maridos danados da vida.
Tomaram uma decisão unânime. Pedir
desculpas aos respectivos maridos. O feitiço havia virado por cima do
feiticeiro. E foi o que fizerem com lágrimas nos olhos de tanto arrependimento.
- Desta feita estão perdoadas, mas
não desrespeitem mais a dignidade moral de Nossa Senhora da Pureza.
Em cidade pequena tudo se sabe. E Tiara
ficou sabendo por alto, da confusão.
- Muito bem, vocês reclamaram das
mulheres por que falaram comigo. É engraçado. Vocês as deixam em casa e vem
para mim e ainda me pagam por isso. Certamente me consideram melhor do que
elas. Pois é. E tem o desplante de censurá-las porque falaram comigo. Vou, por
isso passar a cobrar mais caro ou talvez vá embora daqui. Trataram mal a elas e
a mim. Não gosto dessas injustiças.
- Ir embora, nunca. O que te falta
aqui. É melhor aumentar o preço das visitas.
Era isto que Tiara queria. Foi
somando, somando e um belo dia não amanheceu em Nossa Senhora da Pureza. Fez um
benefício. Inflacionou a zona. As outras meninas ganharam com a história. Passaram
a arrecadar mais. E não faltou freguesia. Os bichos estavam viciados e a cidade
deixou de ser Pureza.
10-1-1984
*O conto faz parte do livro “Vidas
Nordestinas”, no prelo.