sexta-feira, 15 de março de 2013



Raulino de Medeiros Maracajá
(15/09/1879 – 21/11/1961)
                                                                                                In Memoriam

COMO SE JEJUAVA ANTIGAMENTE NA SEMANA SANTA*

Nos dias consagrados aos jejuns: Quarta, Quinta, Sexta e Sábado, sendo estes de grande significação, não se tomava banho, não se tomava café e nem se dormia depois das refeições, pois ficava sem efeito.
Não se andava à cavalo nas Quintas e Sextas da Paixão e se houvesse uma necessidade extrema, andava-se sem esporas para não ferir o animal.
Não se tomava bebidas alcoólicas e nem se alimentava de qualquer doce na Sexta da Paixão.
Hoje no tempo moderno tudo é diferente.
Não se respeita mais a Semana Santa, alguns, que jejuam, só na Sexta são para eles um grande sacrifício, que estão fazendo. Bebe-se, e se faz tudo de indignidade.
 Estamos certos nos novos tempos? Ou éramos errados antigamente?
Deus será o nosso Juiz!

Pensamento:
De direito, só duas mulheres, tem direito na vida de um homem: a mãe e a mãe dos seus filhos. O que sai fora deste amor casto e puro, é um desvio perigoso e pecaminoso.

RMaracajá
15/3/1958

*O texto se encontra no “Diário” pertencente a minha mãe: Nícia Maracajá Henriques, filha do autor.

quinta-feira, 14 de março de 2013


LINA*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)


Lina nascera uma criatura sem encantos. E ai estava o seu drama. Fugia de suas companheiras para evitar os contrastes. Achava que haviam sido injustos e até cruéis com ela. Não teria custado nada dotá-la de um pouco daquela beleza física que sobrava em muitas outras. Não se conformava e sentia dentro de si numa revolta crescente. Para que aqueles lábios finos e secos que ninguém haveria de querer beijá-los. E os olhos miúdos e redondos como se fossem apenas uns pingos grandes de tinta esmaecida. E aquele pescoço curto demais que não lhe davam fácil mobilidade. Somente duas coisas lhe pareciam razoáveis. A cintura fina e umas pernas bem proporcionadas. O conjunto não agradava. E se não agradava a ela muito menos aos outros. Quem haveria de querer uma moça sem atrativos. Haveria, portanto, de encontrar um derivativo, uma maneira de entretenimento que compensasse aquele monstruoso erro da natureza. Com mais alguns retoques, algumas pinceladas, seria uma mulher atraente. Não acreditava que na velha história de que o homem houvesse sido feito á semelhança de Deus, a menos que Deus não fosse como ela pensava. E quem lhe afeava mais eram aqueles lábios murchos e os olhos de cafife. Teria mesmo que fazer alguma coisa especial que a fizesse esquecer o seu infortúnio. Tentava uma coisa e outra até que notou pendores para a pintura, fixar na tela motivos naturais, copiar a natureza, com as cores das manhãs e do entardecer. Haveria de chamar a atenção para si, externando sua força interior. Se ao menos fosse uma moça rica, com dinheiro sobrando, ainda poderia ter algumas oportunidades. Mas o que possuía, dava-lhe apenas para levar uma vida normal. E com certo conforto. Também não desejava casar-se pela atração dos bens que possuísse. Por outro lado não pretendia incorporar-se a legião das onze mil virgens. Sentia desejos como qualquer mulher normal e, por vezes, sentia ímpetos de entregar-se livremente como uma fêmea qualquer dos campos ou das selvas. O fato de não se casar ou de não encontrar a pessoa com quem sonhava, não a impediria de ser mulher. Bastaria talvez, o diabo tentá-la um dia. Precisava, entretanto, afugentar essas ideias, sobretudo por respeito á família e á sociedade. Eram talvez, meras formalidades, simples convenções, mas era bom respeitá-las. Aliás, o que lhe acontecesse seria exclusivamente por culpa de que lhe negaram os dotes de beleza que todas as mulheres deveriam possuir. Se se perdesse seria por conta disso, do descaso de não haverem aprimorado seu aspecto físico. E não perdoava semelhante safadeza.
Lembrava-se que estava na história natural, que deram colorido, perfume e beleza ás flores para facilitar-lhes à fecundação. E foi ver no jardim as borboletas e abelhas de flor em flor colhendo mel e polinizando flores. A ela haviam negado quase tudo, mas a fizeram mulher com os mesmos desejos de todas as fêmeas. Mesmo as mais selvagens. Chegava a acreditar que Deus, o seu Deus não havia sido o autor das coisas da natureza. Possuía sexo mas não lhe deram atrativos. Puro desleixo. Começou a copiar a natureza em tudo que ela apresentava de bela. E seu primeiro quadro foi de algumas abelhas apanhando néctar nas flores do jardim e ajudando-as na fecundação. E foi se aperfeiçoando em fixar em suas telas tudo que havia de belo e amoroso na natureza. E isto lhe agradava cada vez mais. O instinto da reprodução. Os casais de canários da terra que faziam seus ninhos nas estacas ocas dos currais, atiravam no ar, numa alegria louca, em cenas de amor e ternura,vão ao chão agarrados como dois sátiros. Depois da satisfação de seus desejos pousavam tranqüilos nas cercas vizinhas. Os gatos faziam barulho no telhado e não era outra coisa senão uma conquista amorosa.
Mas ela, ninguém a queria como se não tivesse sexo e não tivesse também desejos. Iria deixar a pintura para não se martirizar mais ainda. Todos tinham uma surpresa na vida e, ela, somente ela, só fazia sonhar. Aquela boca com aqueles lábios finos e secos e aqueles olhos miúdos que só serviam para chorar, infelicitava-na. E não queria usar certos artifícios, os quais só serviriam para realçar ainda mais sua pobreza física! Já nem sabia como não havia nascido com as pernas tortas e cabelos de fogo para completar sua desgraça. Pela sua formação moral já estava escrito que não quebraria a moral da família. Sua mãe e seu pai eram honestos e zelavam os preceitos da sociedade. Desgosto não lhes daria. Tinha total certeza de que não havia nascido feia por vontade deles. Era coisa que vinha de mais longe, um determinismo qualquer ou mesmo descaso de ordem superior. Sim do próprio criador, a quem não poderia perdoar.
Voltou à pintura e de qualquer forma era um derivativo. E foi reunindo quadros, todos retratando motivos naturais. E porque não passava a vender? Fazer uma exposição, chamar atenção para o seu trabalho artístico. Preparou a sala da frente de sua casa e anunciou a amostragem. Foi um sucesso. Como poderia ser. Saírem daqueles olhinhos miúdos tanto valor artístico. Como poderia ver tanta beleza natural e saber combinar cores tão alegres.
Vendeu todos os quadros, menos o primeiro que guardaria como uma lembrança de suas primeiras pinceladas.
Todos os quadros estavam com a indicação de vendidos. Apenas o intitulado “Fecundação” estava em branco. Apareceu um candidato que desde o inicio só pretendia aquele. Mas não era pra vender.  E a insistência continuava.
- Não, não desejo desfazer-me deste. Ficará como uma lembrança em minha casa. E por que tanto interesse de sua parte, meu amigo?
- É, muito simples. Amo a natureza e este é o que me dá o verdadeiro sentido de amor e de evolução. E até hoje tenho sido um frustrado no amor. Como vê, sou um desprotegido da sorte. Apesar de ter uma vida relativamente confortável e com bastante estabilidade, falta-me com certeza qualquer coisa importante para uma aceitação. Armadilha do próprio destino. Justamente sou uma pessoa bastante infeliz. Sei que existe o amor e em vez disto o que sinto já é uma certa aversão pela humanidade que me tem negado o que mais desejo, possuir o aconchego de um lar, com uma esposa e filhos. Por isso tenho me dedicado a amar a natureza, conviver com ela dentro e fora da solidão de minha casa de solteirão. Por isso desejava ter esse seu quadro na parede de minha sala.
- Pelo que vejo, vosso destino é igual. Tenho vivido somente de sonhos.
- E por que, então, não vamos sonhar juntos?
- Como se nunca ninguém me quis.
- Por isto mesmo. Dois enjeitados podem conviver. E quem sabe se daí não nascerá o amor que sempre bateu as asas para longe dos dois.
- Sim, mas olhe que talvez lhe seja melhor, viver só com a sua arte. Tenho receio de transformar sua sensibilidade artística. Para isto bastará uma desilusão. Poderá ter uma decepção, pois não conhece o meu temperamento e nem os meus hábitos. De frustração em frustração, tornei-me uma pessoa bem diferente da comum das outras. Um descrente uma espécie de vencido e pessimista. E creio que não me suportaria.
- Pois é, até nisso nos parecemos, mas tenho a esperança de que mudaremos com ou depois de nosso relacionamento. Não devo ter segredos mais na vida. Sou uma convicta de que minha salvação será o amor, um pouco de carinho e a satisfação de desejos que permaneceram sufocados dentro de mim. A pintura foi uma forma de disfarce, um passatempo para fugir as minhas angustias. A pintura não me realizou como mulher. Uma maneira de me esconder para sofrer menos. Por que não fazemos uma experiência e já com o compromisso de sermos, tolerantes e compreensivos. E se por ventura não der certo, apaga-se o fogo e cada um tomará o seu destino. De minha parte, sei que isto não acontecerá, mas quero deixá-lo em liberdade. Meu aspecto é, sem duvida, de uma mulher desagradável, mas talvez apenas no aspecto. Sou assim como um fruto de casca rugosa, mas de polpa macia e doce. Desculpe-me a pretensão.
- Não tenha medo de mim. O que me preocupa é exatamente não corresponder a sua sensibilidade e desapontá-la.
- Bem, isto ai será por minha conta e risco. Não tenho mais ilusões. Sei muito bem o que nos está faltando. Não é uma questão puramente emocional e sim, apenas de doação. O amor é uma palavra. Na verdade, considero esse tal de amor nada mais, nada menos do que o apetite que se sente por uma pessoa. E tanto é assim que depois de se provarem, a coisa vai se amortecendo, a sopa vai esfriando. É isto que percebo no cotidiano.
O que resta do casamento é a convivência e a amizade das pessoas. É esta amizade que sustenta a maioria dos casamentos, quanto a isto não tenho ilusões. As mulheres são sempre as vitimas do que possa acontecer. A convivência com amizade é o que desejo e espero. O ardor dos primeiros tempos é como fogo em palheiro. Fogo se apaga ou amortece. Mas o importante é tocar fogo no palheiro e ver a chama incendiar. Mas a mim sempre faltou fósforo para riscar e por isto o palheiro está intacto. Pois é, você nunca encontrou o palheiro e eu nunca encontrei o fósforo. Juntos causaremos o incêndio e vamos ver quem se queima primeiro...
- Bem, se é o seu pensamento e sua vontade, vamos cuidar dos documentos. Padre e juiz. Dão-se logo os dois nós. Nó górdio que ninguém desata....
Ao amanhecer do dia seguinte ao casamento, Lina fechando os seus olhos miudinhos, deu-se a falar consigo mesma: - Como vejo agora o mundo diferente, uma manhã mais alegre o coração aliviado e o meu grande sonho realizado. Até parece que não sou a Lina de todos esses anos passados, aquela Lina angustiada e desesperançada. Sinto o corpo mais leve e tenho vontade de abraçar-me com a natureza, sorver todo o oxigênio do mundo. Minha alma libertou-se de um pesadelo que me tirava o gosto de viver. E no entanto, por uma coisa tão natural e tão simples. Olhou-se no espelho da penteadeira e notou que os seus olhos já não eram tão miudinhos como antes e nem guardavam as sombras dos desenganos. Deveria ser aquilo que se chamava de felicidade. E como era bom sentir–se aliviada de corpo e alma. Era como se houvesse tomado um banho por dentro e por fora.  Não tinha duvida de que o marido a adorava e que com ela havia saído da solidão.
 Deixara de ser um tímido. E um complexado a respeito de mulheres. A idéia de que ninguém o queria e que o dominava desaparecera depois que caíra nos braços de Lina foi como se tivesse acordado depois de um longo sono mental. O quadro “Fecundação” pendurado no gabinete, fazia com que já mais se esquecesse daquela primeira noite maravilhosa. A abelha e a flor simbolizavam sua união com a Lina. E pediu-lhe que pintasse um outro quadro que daria o nome de “Frutificação”, representando os frutos do amor. E Lina pintou dois cajueiros com os galhos entrelaçados com frutos vermelhos e frutos amarelos, a planta de sua adoração. E só não pode dar-lhe o perfume da floração, aquele cheiro suave igual ao cheiro do amor em tempo de noivado.


Em, 02/10/1986
*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.

sexta-feira, 8 de março de 2013



ENTERRADO VIVO*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901- 16/04/2003)


            Corinto tinha um medo danado de morrer e não queria que se falasse em morte perto dele. Não é que a vida lhe fosse fácil e tivesse apego às poucas coisas que possuía. Não, não era isto. Era medo de fechar os olhos e não mais acordar, ficar esticado em cima de uma cama sem pensar mais em nada e em seguida levarem-no para o cemitério para deixá-lo lá sozinho dentro de um buraco e coberto de terra. Tinha a impressão de que poderia despertar e morrer verdadeiramente sem ter a quem pedir socorro.
             Já ouvira falar mais de uma vez de defuntos que foram encontrados noutra posição dentro do caixão. Seria horrível, tenebroso que isto viesse a lhe acontecer. Poderia ter um ataque qualquer, uma tal de catalepsia, por exemplo e o considerarem liquidado. E o mais grave é se estivesse ouvindo dizer, que coisa, o Corinto morrer assim à toa, tão forte ainda. Que hora vai sair o enterro?
            - “Às quatro da tarde, para o cemitério do Bom Conselho”.
             Não era para se brincar com uma coisa dessa natureza. Mas, o fato é que já havia acontecido e ele poderia ser o próximo cara. Tinha quase certeza. Prevenia a família e aos amigos mais dedicados, para não fazerem isso com ele. Não o enterrassem no mesmo dia. Esperassem que começasse a feder. Seria um sacrifício porque defunto é a pior carniça do mundo, mas fizessem isto com ele. Seria uma só vez. Todos prometiam, mas Corinto bem sabia como era. Ninguém queria ficar com defunto dentro de casa. Choravam, gritavam, esperneavam, havia chiliques, mas o enterro havia de sair à hora marcada.
            A primeira coisa que faziam era correr a casa mortuária, comprar um caixão preto, ir ao cemitério falar como coveiro para meter a enxada e a pá no chão, abrir um buracão de sete palmos. Procurar o padre para encomendar o corpo. A verdade é que ninguém ficava com defunto em casa.
            O finado Romão foi encontrado emborcado na cova e com os olhos esbugalhados. Santo Deus! Bem que isto poderia acontecer-lhe. Sabia lá...
            Certo dia Corinto chegou em casa com febre e dor de cabeça. Foi direto para a cama e como era solteirão, chamou a empregada e mandou-a as pressas chamar o farmacêutico prático a única pessoa do povoado que entendia de doença. O homenzinho chegou, colocou-lhe o termômetro debaixo do sovaco, demorou um pouco e o retirou. Olhou o tubinho de vidro e ficou meio paralisado. Era um febrão dos diabos. Quase quarenta graus.
            - Alguma coisa séria?
            - Mais ou menos. Mas não se assuste não. Vou aplicar-lhe uma medicação heróica. Passa logo. Em todo caso acautele-se. Fique na cama quietinho.
            - Dá pra morrer seu Abreu?
            - Só se houver alguma complicação.
            - Não diga! Tenho medo de morrer e me enterrarem vivo. Sim vivo, vivo, como fizeram com o Romão.
            - Vai morrer não. Tenha fé, homem. A fé ajuda a curar.
            - Mas se eu tiver a má sorte de morrer, só deixe me enterrar depois de três dias, quando já estiver exalando aquele cheiro enjoado de defunto comprovado. Mas dê um jeito. Nada de morte. Tenho ainda muita coisa para fazer e não tolero essa idéia de morte, coisa estúpida e sem graça. Pelo menos não se deveria morrer com menos de uns quatro ou cinco mil anos de vida, sem ter doença nem achaque nenhum. Mas não, adoece e morre em qualquer idade como morrem as moscas e as lesmas. E ainda se diz que foi a Vontade Divina.
            Dois dias depois, Corinto estava em pé, sem febre e sem dor. Escapou do susto de ser enterrado vivo. O diabo daquela febre súbita quase o endoidecia. Não era coisa que se fizesse com um cristão batizado e crismado. E perguntava a si mesmo porque as coisas eram assim. Uma vez que o homem fora feito à semelhança de Deus (presunção humana), não deveria haver sofrimento, nem fraquezas, nem medo.
            Mas aí estava ele, fisicamente perfeito, sem nenhuma deformação e, no entanto, assombrado com a morte, isto é, com medo de ser enterrado vivo e não ter por quem chamar debaixo de sete palmos de barro e mais aquele abaulado que faziam por cima da cova.
            Por um milagre havia escapado daquela febre súbita de forno de padaria. Quase queimando em vida e morrendo de medo. Poderiam muito bem, por um engano qualquer, o terem levado para o cemitério e ele ouvindo o ruído ou o som dos passos da cambada que o ia conduzindo ainda vivo. Já pensaram em tamanha desgraça! Enterrar o sujeito vivo só por descuido ou burrice do médico. Haviam feito isto tranqüilamente com o mestre Romão. Não podia, portanto haver confiança. A vantagem do médico é se vê livre dos doentes lisos. E mestre Romão, só possuía mesmo um caquinho de vida. Por isto foi logo despachado. – “Está morto, morto, podem providenciar o enterro”. Já disse e repito. Só me enterrem quando já estiver fedendo. Comigo não, Marocas!... E comentava com Deus e o diabo, o descuido de quem fez o mundo, uma verdadeira droga.
            - Vê bem Corinto. Estás completamente enganado e pior de tudo obsedado por essas idéias fúnebres e funestas. Tanto faz morrer em cima de uma cama, como debaixo do chão. A morte é uma só. Não se morre afogado, sem respirar. Depende da sorte de cada um. Morrer de tiro, faca, porrete, febre maligna ou o que seja; a morte há de vir. Ninguém escapa.
            - Tudo, menos a morte. Ninguém morre por gosto e os que ficam, ficam chorando, desde que não seja inimigo.
            - Já te falei. Muda teus pensamentos. Cuida em viver sem medo, seu idiota. Quem tem idéia fixa como tu, é doido. Procura uma moça ou uma mulher agradável e te casa. A tua solidão é a causa desse teu medo com uma coisa inevitável e comum a todos.
            - Sei disso, mas o meu medo é de ser enterrado vivo.       
            - Mas já não tens a receita para evitar: ser enterrado fedendo...
            - É. Já entendi que tens razão, vou me casar, ter filhos e esquecer essas idéias malucas.
            - Não te esqueças de que nenhuma mulher irá te querer enquanto não desfizer essas tuas manias. Terás de ser um homem alegre, decidido, corajoso. Mulher tem ódio a covardes. Repara que as mulheres adoram os militares e só e só porque tem a convicção de que todo soldado é valente e uma ótima proteção.
            - É muito fácil dizer, casas e terás tranqüilidade. E porventura mulher anda por aí boiando para qualquer um. E a despesa que dão, ela e os filhos. Meu papa vento! Falas em casar como se fosse dobrar a esquina, pegar uma moça levar para casa e ser sustentado pela mesma. Vai te confessar, com essas tuas facilidades!
            - Desse jeito, meu velho, já estas enterrado vivo. Ou te casas para ter alguém de tua absoluta confiança e que te ofereça carinhos ou então vai, te dar o azar de quando morrer, ser enterrado vivo. E é muito bem feito. Irão te encontrar depois, emborcado no caixão.
            Corinto arregalou os olhos e empalideceu.
            - Vai-te pra lá com teus azares.
            - Tudo pode acontecer, sobre tudo quando se fica agarrado a uma idéia funesta como esta tua. Desgraça atrai desgraça. Só se vive bem com pensamentos positivos. Caso continues assim, findarás doido varrido. E parece-me que é o que queres.
            - Casar! Gastar as minhas economias forçadas, com mais uma boca para comer, um corpo para vestir e um rosto para pintar.
            - Uma mulher bonita vale tudo isto e muito mais, seu cauíra. Pois olha, tudo quanto tenho ou consigo é para enfeitar e dar conforto à minha mulher. E se mais tivesse, mais daria.
            - Perdulário!
            - E de que te servirá essas economias embisacadas. Coisa mesmo para quem quer se enterrar vivo contando o dinheiro avarentamento escondido e inútil. Já me vou. Fica-te com tuas idéias esquisitas. Até logo.
            Corinto ficou suando frio. Quem poderia dizer que não iria mesmo ser enterrado vivo com dinheiro guardado para os malandros rasgarem na farra. É possível que Asdrúbal esteja com a razão. O diabo é quem duvida. Morrer-se de uma hora para outra ou se faz que morre e nos enfiarem vivo numa cova de sete palmos, já fervilhando de vermes, famintos à espera de defuntos novos.
            - É, vou mudar de vida e aguardar os resultados práticos.
            Procurou uma moça e casou-se. Logo nos primeiros dias sentiu-se renovado, com outras idéias. Deveria ter se casado, muito antes. Esqueceu-se até de que algum dia poderia morrer. E se morresse a mulher teria o cuidado de verificar a possibilidade de estar ainda vivo. De qualquer forma iria ainda recomendar-lhe. Só o enterrasse quando estivesse ficando azulado. Seguro morreu de velho e desconfiado está vivo. Mas, com o tempo Corinto esqueceu tudo. Para ele só existiam a mulher e o filho que estava para nascer. Foi, então, agradecer-lhe as advertências e reafirmar-lho que era realmente um enterrado vivo. E olha, não sei como se pode ser tão burro quanto fui. Imagina levar todo esse tempo a pensar em coisas tétricas, assombrado, quando podia ter vivido num mar de rosas, com a mulherzinha que tenho. De agora em diante, podem me enterrar vivo ou como entenderem. E nem quero recordar do medo que tinha de adoecer, pois me via debaixo do chão no escuro e sem ar para respirar e nem forças para romper a camada de sete palmos de terra que os miseráveis haviam paliado por cima de mim. Mas, em todo caso, façam como pedi... Que o diabo anda solto por aí. Para pregar uma das suas, não muda a cueca... Faz a gente se esquecer e depois pega de surpresa.
            - Nada disso, Corinto. É a nossa própria imaginação que cria essas coisas. Tudo quanto pensamos, quanto vemos é criação puramente nossa. Por exemplo, não existe assombração e nem nunca existiu. Tudo nasce de nosso poder pessoal de sentir e ver as coisas. Somos capazes de com a imaginação, materializar uma pessoa que já morreu e vê-la distintamente.
            Mas fomos nós que a geramos e não ela que haja nos aparecido. Diabo nunca existiu, mas, muita gente diz que já viu. É, é a mesma coisa que alma. Não existe, mas falam que aparecem. A imagem de uma pessoa poderá estar tão gravada dentro de nós, que a projetamos no espaço e a vemos. Só isto.
            - Mas uma vez tens razão. Sou eu mesmo que ando criando essas coisas. Nada como ter uma pessoa como és para orientar os medrosos. Só os fracos vêem assombração e ficam imaginando desgraças. Andei perdido muito tempo, desprezando todas as coisas boas da vida. Mas agora se acabou o medo. Podem me enterrar vivo ou como quiserem. Caso aconteça, direi uns palavrões com que me enterrou, dou uma banana pro mundo, tapo as narinas para não aspirar e acabo de morrer. Uma coisa tão simples. E até tem uma vantagem, a alma não pode sair de debaixo dos sete palmos de terra e fica me fazendo companhia. Ou então que se vire...
            - A alma, Corinto, é a própria vida. Acabou-se a vida, acabou-se tudo. Esta história de alma é conversa fiada!...
            Corinto voltou a casa, beijou a mulher, olhou para o menino que ia nascer, cruzou os braços e, enquanto o passado ia desfilando pela sua mente, tomava uma resolução. Combater o medo das pessoas. E aos amigos, dali por diante, às pessoas que conhecia, perguntava logo se tinha algum problema. E dizia: olha, meu amigo, problema é medo de enfrentar as coisas da vida e com medo não se resolve nada. Agrava-se a situação. Parece que se está diante do impossível, do inelutável. Enfrenta tudo com decisão. Manda, pois, o medo para a casa do diabo. Perdi meia vida por medo, impressões absurdas. Imagina que vivia apavorado com medo de se enterrado vivo.
            - E quem não tem! Estás esquecendo do seu Romão que foi encontrado emborcado na cova. E contam-se muitos casos dessa natureza. Nem quero andar relembrando essas coisas terríveis. Com coragem ou sem ela, isto pode acontecer comigo, contigo, com qualquer cristão. E olha, já pedi a minha família que só me enterrem rasinho, quase na flor da terra. Nada daquele buracão de sete palmos e mais o abaulamento da cova. Assim, se me acontecer, ou a ti, que Deus nos livre é meter o ombro e sair. Mas o difícil sabes o que é? É cumprirem nossa recomendação. Quando o “bicho” morrer, tem-se é pressa em retirar de casa antes que comece a feder. E não há mesmo quem agüente catinga de defunto. Olha, no momento e na pressa de enterrar, ninguém vai se lembrar de nada. O coveiro abre o buracão e nos metem lá dentro. Quanto mais seguro melhor. Morto ou ainda vivo, ninguém escapará. E não é que tenha medo não, mas tudo pode acontecer.
            Corinto arregalou os olhos, assustado. O amigo tinha toda razão. Não deveria era ter andado conversando história. Quando pensava que havia se libertado daquela idéia funesta, achou de atiçar a conversa e agora estava certo, certíssimo de que a coisa poderia mesmo acontecer.
            - Mas sabes de uma coisa, Corinto, a gente pode se livrar disso.
            - Como, companheiro?
            - É muito simples. Praticando o suicídio, num local onde ninguém possa nos encontrar. Eu mesmo estou disposto a fazer isto. Sempre ando me lembrando do seu Romão. E o diabo é que desgraça atrai desgraça. Quanto mais se tem medo de uma coisa, mais depressa ela chega.
            Corinto saiu para casa arrependido de suas pregações idiotas. E lá vem a coincidência. O coveiro encontrou um defunto, isto é, a caveira de um defunto com as mãos na cabeça, dedos crispados como se estivesse arrancando os cabelos.
            Corinto encolheu-se todo: “Mais essa”!... Só havia mesmo um meio, era o suicídio, bem planejado. Um tirão bem em cima do bico do peito esquerdo ou uma dosagem pesada de formicida “Tatuzinho”. Aliás, as duas coisas simultaneamente, era mais seguro. Seria fulminante. Mas, logo esfriou com a idéia. Cadê coragem. Nem uma gota. E era só mesmo o que faltava deixar os beijos doces da mulher e o filho que estava prestes a nascer. O certo mesmo era arriscar-se a ser enterrado vivo, mas continuar vivendo sua vidinha nos braços de Dinorá. Pois não era. Já não havia se convencido de que um beijo compensava qualquer outra diabrura do destino. Quem havia inventado o beijo numa boca de mulher bonita, tinha mesmo bom gosto. Poderia até ter sido um cabra safado, mas fora genial. Vem cá, mulher, me dá um beijo daqueles de tremer o corpo... E assanhar o bico dos peitos... O mais que vá tudo para a casa do diabo.
            E você que nunca beijou ninguém, meta uma bala nas virilhas e vá direto para o inferno.
7.9.1986.

*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.

Obs. Por favor comentem estas histórias.

sexta-feira, 1 de março de 2013



TIARA*

João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

            Cidade pequena do interior onde todo mundo se conhece. Poucas ruas, umas retas outras tortas, e de poucas diversões.
Mas havia uma coisa que ninguém perdoava: a desonestidade familiar. Hábito do velho sertão, cheio de moral e preconceitos.
Marido havia de andar na linha e das mulheres nem se falava. A fidelidade conjugal era questão de vida ou de morte. Marido ou mulher de quem se suspeitasse qualquer desviozinho, ficava logo isolado e inteiramente sem ambiente. Tinha era que se mudar.
Para os solteiros, havia uma pensãozinha de mulheres lá numa ponta de rua onde gente de família não passava para ser vista. Pureza total, na cidade.
Casou acabou-se. Tinha que se trancar em casa. Havia uma rigorosa solidariedade entres as mulheres. Até mesmo os solteiros quando se apegavam a um namoro sério, eram também fiscalizados. Era um regime de convento. Quando algum marido viajava, na volta passava por um interrogatório, a roupa era cheirada e as lavadeiras tinham recomendação de verificar qualquer coisa estranha.
Tudo ia nesse pé quando chegou para Nossa Senhora da Pureza, uma cabrocha que não tinha defeito em cima dela. Bonita dos pés à cabeça, cheia de requebros diabólicos e capaz de devorar qualquer um só pela maneira de olhar.
No começo ficou internada lá na pensão das mulheres, estudando o ambiente. Observou que lá não aparecia um homem casado, justamente os que soltavam as notas com maior liberalidade. Ouviu as companheiras. Era norma da cidade e ai daquela que procurasse transgredi-la. As casadas cairiam em cima e seria um Deus nos acuda. Mas Tiara – nome de guerra – andava pelo mundo para ganhar dinheiro, fazer economia e depois mudar de vida. E tinha presa nisso. A mercadoria era de primeiríssima qualidade e quem a visse saltava em cima.
Começou a sair, a pretexto de fazer pequenas comparas. Ia de loja em loja, passeava pelas ruas principais volteando o corpo, mas, decentemente vestida. O mulherio assanhou-se. Queria saber logo quem era. Talvez filha de alguma família desconhecida, chegada recentemente. Viam-na passar diariamente, sozinha, perfumada, conversando aqui, parando acolá, mas de preferência com os casados. A turma estava assanhada. Os comentários saiam de instante a instante. E logo descobriu quem era Tiara.
Não tinha jeito, havia de ser quebrado o controle. Uns simulavam viagens rápidas, planejadas ou improvisadas e metiam-se na pensão onde Tiara e os esperava. A danada da Tiara, não mudava o seu ritmo de caçar maridos.
As casadas já sabiam quem era ela e as suspeitas aumentavam. Mandaram recados. Que desaparecesse o mais cedo possível.
Com isso Tiara tornava mais frequente os seus passeios. Nem dava bolas. Novos recados com maiores ameaças. Era a mesma coisa que mandar-lhe um presente. E o dinheiro entrando grosso. Resolveram apelar para ao vigário. Fizesse um sermão lascado sobre a moral em Nossa Senhora da Pureza.
O padre falou, mas um tanto por longe. O mulherio não gostou. Voltou ao padre Abelardo. Novo pedido, quase uma exigência. Padre Abelardo foi claro. Não poderia impedir que alguém viesse morar na cidade. E depois, não lhe constava que a moça estivesse se comportando indecentemente. Já tivera, aliás, a curiosidade de vê-la. Bem trajada, sem sombra de escândalo. Fazia suas comprinhas, voltava à sua pensão, sem ofender a moral de seu ninguém.
- Mas, seu vigário, essa dona anda procurando os nossos maridos. De loja em loja, com cara de inocente e vai terminar desvirtuando os nossos maridos. Aqui nunca houve disso.
- Está certo, está certo. Vou observá-la melhor e se tiver oportunidade darei uns conselhos. Mais do que isso, só o DR. Juiz ou Delegado de Polícia.
Saíram da casa do padre Abelardo, revoltadas. Pelo que se via o bicho também já andava interessado. - “Vou observá-la melhor” Ouviram? Está tudo perdido. Mas vamos às autoridades.
Foram ao delegado.
- Qual foi o crime que a Tiara cometeu? Mandarei chamá-la imediatamente e conforme a gravidade lhe darei uma cadeia e a expulsarei da cidade.
- Muito bem seu delegado. É assim que se defende a moral pública.
- Vamos aos fatos. O que afinal aconteceu?
- Essa tal de Tiara é uma mulher da vida, seu delegado. Anda de casa em casa comercial arrastando nossos maridos para a perdição. Um absurdo em Nossa Senhora da Pureza.
- Ah! É a Tiara. Já a conheço. Uma menina muito bem comportada. De todas elas, a que melhor se apresenta. Vestida como uma senhora. Sem ostentação, nem leviandades.
- Mas ela é uma tentação. Com mais algum tempo será dona exclusiva dos nossos maridos. Não pode. Aqui nunca se viu disso. Falta de respeito. Todo mundo sabe que é uma mulher à toa.
- Nada posso fazer. A lei não me faculta essas proibições. É uma moça direita. Vive pra lá a sua vida e, aliás, com decência. Não tenho culpa por ser bonita, elegante, e, muito menos dos seus maridos andarem à sua procura. Isto é normal em toda parte. Ela, coitadinha, não tem outra profissão e vale-se do que tem. Era só o que tinha a dizer. Deixem a amenina em paz.
Saíram atropeladas. – “Não temos autoridade”. O padre Abelardo saiu-se com aquela. Já se vê não é boa bisca também. O delegado pior ainda. Um safadório.
Mas vamos à frente. O Juiz. Aquele sim. É um homem de bem. Vamos mostrar a esse padreca e a esse delega, que aqui em Nossa Senhora da Pureza, ainda tem homem. Aquela bichota não vai ficar aqui. Crueira safada. Em vez de ir trabalhar, honestamente, anda explorando os bestas com aquele corpinho cheio de volteados. Vai ver com quantos paus se faz uma jangada. Dentro de dois ou três dias a cidade ficará livre dela.
- Estais muito confiada. O juiz é um sujeito ainda moço e quem sabe se já não está nos pés da Tiara. Aliás, a Tiara é uma menina completa.  Não lhe falta nada. Cuida-se muito bem, só anda perfumada e atraente. E quem, afinal, não vai atrás de um chuchuzinho daquele. Só a cor, o rosto, aquelas pernas bem feitas, o jeitinho de andar, aqueles seiosinhos pequenos, tudo isto, minha comadre, é atrativo. A culpa é nossa em grande parte.
- Não quero saber disso. Homem, casou. Tem que ficar em casa e contentar-se com o que escolheu. Errou, errou, a culpa é deles.
- Deles, não. Quando o teu se casou contigo, andavas que parecia uma princesinha. Depois te abandonastes. Peitaria caída, mal penteada, cheirando a suor, andando desengonçada. Tu e eu, esta é que é a verdade! Que interesse pode ter alguém por nós? Nenhum. Nenhum mesmo. Na verdade nós estamos uns bagulhos diante da Tiara...
- Também não é tanto assim. E seja ou não seja, são nossos maridos e que se torrem. Andar atrás de outras só porque andam perequetés, isto não. Vamos, vamos, anda à casa do Sr. Juiz. Aquela cara de fuinha é que não vai ficar aqui. Marido meu ela não prova e nem come o seu dinheiro, que é isto o que ela quer.
- Senhor doutor Juiz. Estamos com um problema gravíssimo.  A cidade está em perigo.   Ameaçada em suas tradições de moral.
- O que há de tão sério. Contem logo, pois precisamos protegê-la. Não podemos admitir que Nossa Senhora da Pureza modificasse os seus hábitos de moralidade.
- Estais vendo aí o que te dizia comadreca! Autoridade é autoridade. Fomos logo bater em portas de umburana.
O Dr. Juiz ficou logo esclarecido de tudo e com as cores mais dramáticas.
- Quem é, afinal de contas essa doida, vamos. Pelo que percebo é a tal da Tiara, chegada aqui há uns dois meses.
- Isto mesmo. Ela mesma. É um desassossego entra as famílias. Não temos mais tranquilidade. A mulherzinha anda cidade acima, cidade abaixo feita um vampiro. Nossos lares estão gravemente ameaçados. Queremos que o senhor a mande embora de uma vez por todas.
- Esta é primeira queixa que me chega. E pelo que tenho observado a Tiara tem dito um ótimo comportamento. Vem à rua, faz suas compras, distrai-se um pouco e retorna à sua casa.
- Mas doutor, e os nossos maridos que ela está desviando?
- Desviando pra onde, criaturas de Deus. Vai procurá-la quem quer. É uma moça livre, cuja profissão, infelizmente, é alegrar os tristes. Qualquer dia destes irei lá para fiscalizar essa tal de Pensão. Caso haja excessos, tomarei as medidas que a lei estabelece. Mandá-la ir embora isso não tenho como fazê-lo. Se a moça é bonita, atrativa e sabe fazer o seu negócio, isto não é nada irregular e nem poderei proibir. Ajeitem os seus maridos, deem-lhes o conforto que eles merecem. Por que vou prejudicar uma pobre moça sem outra profissão. Ela é dona de si e cada um que se cuide. Já a vi algumas vezes e achei-a uma moça decente e de respeito com a sociedade. Se é bonita, foi um dom que Deus lhe deu. Nada de preocupações. É uma criatura inofensiva. Deixem a menina viver. Por que não a chamam e dão-lhe um emprego. Deixaria de ser o que é e de viver como vive. Será um ato de caridade. Cada uma que se livre de tanta infelicidade.
Saíram pisando alto. Remoendo o descaramento do Sr. Juiz.
- Pior do que os outros. Arranjar um emprego, botar uma pestinha daquela dentro de casa. Aquilo já está também amarrado na Tiara.
- Sabes, o melhor é deixar a Tiara pra lá e os maridos também. Ninguém vai dar jeito neles. Mulher bonita e nova é um castigo. Não há quem possa com elas, especialmente quando possui material de luxo pra oferecer.
- Vou mandar dar-lhe uma surra. Riscar-lhe a cara. É isto que ela merece.
- Estás louva! Nunca mais terias tranquilidade e ficarias na cadeia. Cuida-te e cuida do teu marido. Ele também não é nenhum santo, para ver uma coisa daquela e não reinar.
- Já vi que estou só. Vou pedir a Honorato pra gente se mudar daqui.
- Ora se Tiara gostar do teu marido, isto é, se estiver chupando bem o dinheiro dele, irá atrás. Essa gente não tem amor a ninguém. Quer é dinheiro. E já estás quase aposentada... Honorato vai lá e volta. Caso comeces a apertar, poderá ir de uma vez. E então, nem o mel nem a cabaça.
Nesse momento Tiara passava pelo grupo das casadas. Ouviu algumas indiretas pesadas:
– “Rameira, quenga, bicha, ordinária, perua, galinha pedrês e mais outras coisas de desabafo”.
Tiara parou e voltou. De bem perto, falou tranquila e de olho bem na cara delas:
- Respeitem-me sinhas corujas. Sou uma mulher decente. Cuido de minha vida sem incomodar ninguém. Podem ir novamente ao padre, ao delegado e ao doutor juiz. Já me contaram tudo. Daqui não saio daqui ninguém me tira. E agora demorarei mais. Enquanto tiver quem me queira, não arredarei pé. Vão cuidar dos seus filhos. Os maridos podem deixar. Eu tomarei conta deles. Não se preocupem. Darei a eles todo o meu carinho, o carinho que eles necessitam e que vocês não têm. Ouviram bem! Olhem para mim e se olhem no espelho. Verão a diferença. Mas não se assustem. Não quero fica com nenhum deles. Apenas quero que voltem para suas casas com a satisfação de terem ficado um instantezinho com Tiara. Eles conhecem a diferença. Não tenham receio. Sou uma mulher limpa, sadia e atraente. Antes de saírem de minha casa, tomam seu banho. Não quero dar a vocês o prazer de sentirem o cheiro bom de Tiara. Quando chegam lá, só os recebo depois de um banho para tirar o bodum. Comigo é assim. Exijo muito asseio. Sou uma mulher te trato. Podem mandá-los pra lá sem qualquer receio. Lá não escapa ninguém. O regime é o mesmo. Pode ser padre, delegado ou juiz. Banho antes e banho depois. Também não suporto cheiro de bebidas ordinárias. Recomendem que levem mais dinheiro e mais cedo poderei ir embora. Mereço mais do que me pagam. É pena que vocês não possam me experimentar. Sairiam encanadas. Agora mais um pedido: mandem-me alguns perfumezinhos bons para atender melhor minha grande clientela. Todos gostam de uma mulher perfumada discretamente. E eu tenho arte para isso. Vocês conhecem as preferências de sues maridos.
- Mas é mesmo uma descarada!
- Pelo contrário. Tenho uma boa cara. Até logo e lembre-se de Tiara. Ela não incomoda ninguém e trata bem as visitas. Gosto muito desta cidade. Talvez até resolva não sair mais daqui. Ajudem-me e terão uma boa colaboradora. Dou aquilo que os maridos de vocês não têm em casa. Até outro encontro.
E lá se foi, tranquilamente.
- É uma cínica!
Muita gente assistiu de longe o encontro do grupo de casadas com a Tiara.
- Que tal a Tiara. Pelo que se viu, gostaram da menina. Mas todos estão censurando. Mulheres casadas, da melhor sociedade de Nossa Senhora da Pureza, conversando longamente com uma transviada. Que falta de decência. Acabou-se a dignidade da cidade. Os maridos estão todos revoltados. Que não se repita outra falta de compostura dessa ordem.
Vocês, francamente, ou não tem juízo, ou estão perdendo o decoro. Não admito que se repita outro encontro. O que não vão dizer:
- A mulher de fulano, conversando abertamente com uma quenga, em pleno dia e em plena cidade, aos olhos de todo mundo.
Não, isto não ficará assim. Nós, os maridos iremos reagir. Falta de compostura. Fazer relacionamento com uma mulher perdida. Incrível. Nós, os maridos não iremos perdoa-las, estejam certos disso. Não nos faltava mais nada!
As mulheres reuniram-se. O caso estava sério. Não deviam ter se metido com a Tiara. Está em que deu. Imiscuí-se com uma catraia e os maridos danados da vida.
Tomaram uma decisão unânime. Pedir desculpas aos respectivos maridos. O feitiço havia virado por cima do feiticeiro. E foi o que fizerem com lágrimas nos olhos de tanto arrependimento.
- Desta feita estão perdoadas, mas não desrespeitem mais a dignidade moral de Nossa Senhora da Pureza.
Em cidade pequena tudo se sabe. E Tiara ficou sabendo por alto, da confusão.
- Muito bem, vocês reclamaram das mulheres por que falaram comigo. É engraçado. Vocês as deixam em casa e vem para mim e ainda me pagam por isso. Certamente me consideram melhor do que elas. Pois é. E tem o desplante de censurá-las porque falaram comigo. Vou, por isso passar a cobrar mais caro ou talvez vá embora daqui. Trataram mal a elas e a mim. Não gosto dessas injustiças.
- Ir embora, nunca. O que te falta aqui. É melhor aumentar o preço das visitas.
Era isto que Tiara queria. Foi somando, somando e um belo dia não amanheceu em Nossa Senhora da Pureza. Fez um benefício. Inflacionou a zona. As outras meninas ganharam com a história. Passaram a arrecadar mais. E não faltou freguesia. Os bichos estavam viciados e a cidade deixou de ser Pureza.
10-1-1984

*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.