A
ENFERMEIRA*
João Henriques da
Silva
(In Memoriam
20/09/1901 - 16/04/2003)
Abigail fez o curso de enfermagem,
por vocação. Deste de menina sentia o desejo de poder amenizar os sofrimentos
alheios. Em suas brincadeiras com as bonecas, contrariava-se quando uma boneca
sofria um acidente qualquer e procurava curá-la, cercado-a de todo carinho.
Tinha que ir para cama até que
viesse o médico e lhe consertasse o braço ou a perna. Simulava doença nos seus
bonecos, só para bancar a enfermeira, dar-lhes chazinho, dar-lhes massagens,
exigir silêncio para não lhes perturbar o sono.
Quando acontecia um grande desastre
com um boneco de barro ou de louça, que caiam aos pedaços sem mais possível
concerto, preparava-lhe um enterro piedoso. Todas as outras bonecas tinham que
comparecer ao velório, mas sem choro para não perturbar a tranqüilidade da
desventurada vitima: pode acontecer que mesmos depois da morte, o ente querido,
ainda pudessem ouvir as lamurias.
A verdade é que Abigail cresceu e
matriculou-se numa escola de enfermagem, donde saiu diplomada e com bastante
experiência. E como era reconhecida sua dedicação, teve logo convite para um
dos bons hospitais da cidade, aliás, dirigido por freiras. Só o fato de ser
administrado por Irmã de Caridade já era um bom motivo para aceitar o convite.
Dentro de pouco tempo tornou-se a
enfermeira geral. Visitava constantemente todas as enfermarias e doentes para
levar-lhe uma palavra de consolo e resignação. Queria estar em toda a parte e
de ouvidos atentos nas companheiras, procurava certifica-se se o atendimento
estava sendo feito.
Mas com algum tempo começou a sentir
desapontamento. Ouvia veladamente a conversa das enfermeiras e das próprias
freiras, num tom, muitas e muitas vezes, que não lhes agradava. Doentes
impacientes, doentes enjoados. Porque não morre logo e muitos comentários que
indicavam indiferença à impiedade, o que fazia redobrar a vigilância.
E de si para si, fazia sua analise
do comportamento das companheiras. Certo dia sua preocupação aumentou. Duas
irmãs já maduronas, antigas e familiarizadas como sofrimento alheio, faziam um
comentário. Ora fulana, não sei por que aquela velhota do apartamento 18, não
morre logo para nos deixarem descansadas. Esse tempão todo chateando a gente e
os médicos conservando-a a custa de remédios.
Tem-se que morrer. que se vá mais
breve possível. Abigail estremeceu. Chegava a nem acreditar no que ouvira.
Deveria ser caduquice das irmãs, cansaço da vida ou puramente familiaridade com
as doenças dos outros e a morte. Aquilo lhe causou tristeza e desencantos.
Era horrível, desejar que uma pessoa
que buscava saúde, mais algum tempo de vida, estivesse sob aquela condenação.
Era para se pensar como estaria sendo atendida e com que desprezo. O hospital
ou a Casa de Saúde era para dar vida e não para fazer enterros.
Abigail correu ao apartamento da
enferma que já deveria ter morrido. Lá encontrou uma velhinha, dessas mulheres
conformadas e de boa fé, uma criatura que ela própria havia pedido para ser
internada no hospital das freiras. Era D. Natercia, baixinha, corpo delgado e
extremamente simpática.
Mas o problema para as irmãs é que
estava ali há muito tempo nem atava nem desatava, isto é, nem recebia alta, nem
morria de uma vez. Abigail redobrou as atenções e sempre que podia ficava ali
pertinho dela, confortando-a.
- Olha minha filha, não posso morrer
agora. Tenho duas netinhas órfãs sob meus cuidados. Nem sei como estão vivendo
nas mãos da empregada. Às vezes vem aqui me visitar, mas morro de cuidado
nelas. Já pensou, eu sou a mãe e o pai dessas duas crianças. Tenho que lhes dar
tudo e, sobretudo o carinho que elas necessitam.
Mas os médicos não poderão ainda me dar
alta e eles têm razão. Eu mesma sinto que não estou em condições disso. Que se
há de fazer. Mas Deus a de me ajudar e permitir que eu volte para cuidar de
minhas netinhas. Mais de um mês aqui e sem resultado visível. Será, minha
filha, que não tenho mais cura. E o que será das duas meninas.
- Não se preocupe tanto D. Natercia.
Pense mais na sua saúde. Vou lhe ajudar. Confie em mim. E diga-me uma coisa,
alguém já se interessou em saber, a senhora quem é?
- Apenas sabem meu nome. Aparece-me
aqui, quando trazem a medicação e uma vez perdida, uma freira vem me olhar em
silêncio, e tenho, Deus me perdoe, a impressão de que vem apenas verificar se
ainda não morri. Como é difícil viver, minha filha.
- Irá sair logo. Mais um pouco de
paciência. Abigail foi se ter com as irmãs. Era urgente levantar as forças de
D. Natercia, com duas netas para cuidar. Dar-lhe mais assistência, uma medicação
mais eficiente, alem de certos cuidados pessoais.
- Tem se feito tudo menina, mas a enferma
não vem reagindo. Também nos parece que não contribui para restabelece-se. Se
ela conta que só a visitam quando vai ministrar alguma medicação, o que não é
muito pouco para uma criatura naquela idade, e com um sério problema a
preocupá-la em casa.
- O doente não se cura apenas com
remédio. O mais importante é carinho, incentivo, estímulo. Ninguém ao menos, já
se informou quem é a paciente.
- E que nos interessa estar
bisbilhotando a vida alheia.
- Bem. Irmã deixe a paciente comigo.
– Ora, é um alivio para nós. Pode
ficar com ela.
Abigail chamou o médico de plantão e
pediu-lhe uma assistência mais ativa. Tomou a doente pelos braços e a fez
sentar-se na cama, como uma primeira experiência. No dia seguinte já a fez
andar um pouco pelo apartamento. E quando perguntando como se sentia a resposta
foi franca e alegre.
- “Ora minha filha, bem mais
disposta”.
- Pois veja como é fácil a recuperação. Irá
tomar nova medicação e dentro de poucos dias estará em casa com suas duas
netas. Lá completará o tratamento, desde que siga minha orientação.
No dia seguinte recebia a visita das duas
netas, duas quase mocinhas, com fisionomia preocupada e pedindo a Dindinha para
voltar.
- Voltará brevemente, minhas
queridinhas. Tenham mais um pouquinho de paciência. Irei levá-la lá. Esperem.
Dona Natercia beijou as netas, desta vez cheia de confiança. Sabia que
sua saúde estava voltando graças aos cuidados e o carinho de Abigail.
Quatro dias depois, Abigail conduzia D. Natercia
á sua casa. Não era possível avaliar a alegria das netas, não só pela presença
da vovó, mas sobre tudo pela sua saúde.
Na casa de Saúde, comentava-se a recuperação
rápida de D. Natercia. As irmãs não se conformavam, com aquele zelo excessivo
de Abigail querendo impor novos conceitos de enfermagem. - Aquela moça chegou
para cá e quer se mostrar -. O certo, entretanto, é que os internados estavam
tendo uma assistência desvelada e notava-se pelo semblante de cada um que havia
mais confiança e maiores esperança de cura.
Abigail conversa com os médicos,
dava orientações as enfermeiras e quando se ouvia um chamando, estava de olho
se o cliente estava sendo atendido prontamente. Não esquecia a alimentação, tanto
nos horários como na qualidade e teve que falar sobre isto com a irmã
superiora.
- Veja Irmã, não se pode servir a um
doente, uma alimentação qualquer, tipo de carregação. Cada doente terá que
receber comida de conformidade com o seu estado e que tenha sabor agradável.
Como é que uma criatura doente,
fastienta, pode engolir aquela droga que estão servindo: quer deixar comigo as
compras e a cozinha. Prestarei conta de tudo e talvez se gaste menos.
- É certamente se propõe a fazer
milagre, Não é mesmo?
- Mesmo que não custe menos, não
será possível exigir que um doente aceite o que lhes dão; aqueles caldos
brancos, insossos, de péssimo aspecto. Há de se fazer um cardápio para cada um.
Pagam para isto. Pelo menos fazer
algumas variações, consultá-los, sobre o que desejam comer. O medico dá a
medicação especifica e a cozinha a alimentação adequada. Uma boa alimentação é
meia cura. Uma Casa de Saúde deve se credenciar pelas curas que faz e não pelos
internos que saem.
Sabe Irmã, a Senhora deveria deixar comigo
grande parte da administração e ir descansar um pouco. Deve reconhecer que já
trabalhou demais. Quero somente lhe ajudar. Nada mais. Não tenho ambição a não
ser pelo meu trabalho, pelo exercício útil da minha profissão.
Não quero que me transmita oficialmente,
nenhum cargo ou função, o que me interessa é somente presta serviço.
E a casa São José, adquiriu maior conceito e
teve que ser ampliada. Abigail conversava com os pacientes e cada vez se
certificava mais da impropriedade da direção das casas de saúde por freira.
São por formação: religiosas,
partidárias de que o sofrimento é que conduz aos páramos celestiais. Não faz
mal, portanto, que os doentes sofram.
Um internado já idoso e com algumas
entradas no hospital, queixava-se: “Freiras não deve cuidar de doente... Não
tem pena de ninguém. Quanto mais gritar, chorar e gemer, melhor. Estará mais
perto do céu. E nessa filosofia anticristã, vai fazendo enterro de muita gente.
Se alguém vai ao céu não se sabe. Tem-se apenas, certeza de que foi para o
buraco... e abriu uma vaga no hospital, para outra vítima”.
- Quer dizer, meu amigo, que as
freiras são mais desumanas.
- Ah! Não tem nem dúvida. Não já lhe
disse que para elas o sofrimento é o caminho do céu. A morte é a libertação. A matéria
é coisa impura e para salvar a alma é necessário separá-las. E outra mais.
Quando a doença se agrava, chamam logo o confessor. Já pensou quanto sofre um
enfermo com a presença do padre.
Na certa o cabra está desenganado e
nas últimas. Credo em cruz: Deveria ser proibida freira dirigindo Casas de
Saúde.
Abigail tomou conta dos tratamentos e da
assistência social aos doentes. E com isso a Casa de Saúde adquiriu conceito e
só falava na enfermeira Abigail. Era, demais, honesta como mulher e não admitia
licenciosidade lá dentro, viesse de onde viesse. Quem tivesse seus amores
ocultos que se cuidasse.
Não fazia escândalos, mais chamava reservadamente e acertava os
ponteiros do relógio. Tornou-se tão respeitada que os próprios médicos tinham
medo de enfrentá-la. Acabaram com as entrevistas ás portas fechadas, para
evitar quaisquer suspeitas e comentários.
Sabia muito bem que algumas das enfermeiras mantêm relações livres e nem
por isso as dispensava. O que exigia era respeito lá dentro. Todas as atenções
deveriam ser dirigidas aos pacientes e as tarefas de cada um.
Haveria, assim, maior cuidado no tratamento das pessoas e dos afazeres.
Abigail pretendia casar-se, igualmente ás outras moças normais. Não era,
portanto, contra o amor. Dr. Aparício, fisioterapeuta e ainda no inicio de
carreira, via Abigail, o seu ideal de esposa.
Ela percebia suas intenções e não as desprezava. Apenas não dava
qualquer demonstração no ambiente onde trabalhava. E a primeira manifestação do
Dr. Aparício, convidou-a a falar em sua casa ou na cidade.
Dentro da Casa de Saúde seriam dois estranhos nesse particular. Não
queria abrir precedente e quando depois noivaram, mantinham a mesma conduta. E
fez ao noivo uma advertência. Não confundir relacionamento profissional com
liberalidade com os outros médicos. Teria que ser afável cordial com todos
eles, pois não admitia certas reservas em seu ambiente de trabalho.
- Olha Dr. Aparício, ciúme comigo é uma espécie de veneno que tira todo
gosto de amor. Não adianta desconfiar de mim. E se não confias, é bem melhor
nos separarmos logo, antes que o juiz de o nó da indissolubilidade.
- Não, Abigail, ciúme de ti, não existe de minha parte. Foi justamente a
confiança que me mereces que despertou minha paixão. O que não gosto é que
certos colegas conversem contigo como se quiserem te devorar.
Sujeitos que não descravam os olhos dos olhos teus e, movimentam os
lábios com se quisessem beber de um sorvo, os teus gestos, os teus sorrisos, as
tuas palavras. São esses tipos que me enfaram. Porque não ti viram antes e
somente agora depois de nossos compromissos. O que querem de ti? Percebo muito
bem que não são atitudes de cordialidade profissional.
São investidas cheias de desejos. Conhece-se pela cara dos patifes.
Conversam contigo como se estivesse mastigando um fruto doce e raro. Uma pouca
vergonha.
- Mas o que isto importa, se não lhes dou a menor oportunidade nem
confiança. E francamente, nem chego a notar esse interesse que dizes. E se há,
terminarão desiludidos, cansados. Vê bem, Dr. Aparício, se não confias
plenamente em mim, como confio em ti, o certo mesmo é pormos um ponto final em
tudo, então nos casarmos já e já.
- E pensas que eles recuam depois de casada. Ai
é que tentarão. A bichinha já casou, o caminho está aberto e acabou a
responsabilidade. O que acontecer será, por conta do marido. Tranqüilo!...
- Bem, sou uma moça honesta e inviolável. Não
posso evitar que tenham admiração por mim. Não correspondo a nenhum. Quero me
casar contigo, para sermos felizes. No entanto, não mostras segurança sobre
minha pessoa. Não pretendo largar a minha profissão e, portanto a decisão é
tua.
Resolve-te. Existem muitas moças
sonhando com casamento. Certamente encontrarás uma ou algumas de tua plena
confiança. Tem medo de mim como solteira, receio maior ainda como casada e
sempre fui e serei honesta.
Se eu desejasse certos
relacionamentos já teria conseguido há muito tempo. E até me parece que nosso
casamento será o começo de uma vida difícil para nós dois. Quero me casar para
ser feliz, isto é, mais feliz, mas antevejo que não será assim. Portando, Dr.
Aparício, considero nosso noivado desfeito. Continuemos bons amigos
desinteressados, como éramos antes.
Pois é, não me queira mal. Espero encontrar um
que não veja o diabo em cada esquina.
- Não, Deus me livre de perdê-la. Tenho
somente zelo, zelo e não ciúme. E quem não zela o que é seu, o que ama
perdidamente?
- Sim, mais amor é confiança e sem isso, a
vida torna-se muito difícil. Case-se comigo. Não terá mais necessidade de estar
se mortificando naquela Casa de Saúde e terá o nosso lar para tecer os seus
sonhos.
- É muito cedo ainda para abandonar
meu sacerdócio. Já pensou ter que deixar tanta gente desesperada que carece de
mim. Vamos devagar com a louça. Primeiro, habitue-se ao meu sistema de vida,
dentro das exigências da profissão. Não veja em cada homem um seu rival, como
se eu fosse um daqueles bazares da festa.
Se eu quisesse balançar-me na rede
de varandas das felicidades amorosas, nem pensava em casamento. Posso dar-lhe
um prazo de um mês para acomodação com os seus sentimentos. Mas desde agora vou
lhe reafirmar, não posso cortar meus relacionamentos profissionais. Se alguém
me olhar com intenções espúrias, não poderei evitar.
Aliás, creio que essas coisas nascem
somente de sua imaginação. Talvez seja um vicio ou uma idéia falsa de que toda
enfermeira de hospital é uma mulher fácil. O fato de ficar sozinha á noite com
os médicos plantonistas, gera essa concepção idiota.
É possível, ou antes, é certo que
muitos médicos inescrupulosos se aproveitam disso para conquistar, mas nem
todas as moças se deixam levar. Na verdade são uns canalhas e daí deve perder
esse teu medo ou esse zelo. E é bem capaz de ser um deles e por isto, suspeitas
de mim.
Mas formiga sabe que roça corta. Nunca ninguém
se atreveu a me fazer propostas ilícitas.
- Certo Abigail. Se achar que a
mereço, vamos nos casar. Respeitarei todas tuas vontades. Não serei possível
uma comprovação mais legitima de pureza de coração.
- Então nos casaremos tão logo os
papeis estejam prontos. Mas, antes disso, nada de querer avançar o sinal. O
semáforo ficará fechado até o dia do casamento.
13/07/86
*O
conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.