terça-feira, 11 de setembro de 2012

A ENFERMEIRA


A ENFERMEIRA*

João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 - 16/04/2003)

Abigail fez o curso de enfermagem, por vocação. Deste de menina sentia o desejo de poder amenizar os sofrimentos alheios. Em suas brincadeiras com as bonecas, contrariava-se quando uma boneca sofria um acidente qualquer e procurava curá-la, cercado-a de todo carinho.
Tinha que ir para cama até que viesse o médico e lhe consertasse o braço ou a perna. Simulava doença nos seus bonecos, só para bancar a enfermeira, dar-lhes chazinho, dar-lhes massagens, exigir silêncio para não lhes perturbar o sono.
Quando acontecia um grande desastre com um boneco de barro ou de louça, que caiam aos pedaços sem mais possível concerto, preparava-lhe um enterro piedoso. Todas as outras bonecas tinham que comparecer ao velório, mas sem choro para não perturbar a tranqüilidade da desventurada vitima: pode acontecer que mesmos depois da morte, o ente querido, ainda pudessem ouvir as lamurias.
A verdade é que Abigail cresceu e matriculou-se numa escola de enfermagem, donde saiu diplomada e com bastante experiência. E como era reconhecida sua dedicação, teve logo convite para um dos bons hospitais da cidade, aliás, dirigido por freiras. Só o fato de ser administrado por Irmã de Caridade já era um bom motivo para aceitar o convite.
Dentro de pouco tempo tornou-se a enfermeira geral. Visitava constantemente todas as enfermarias e doentes para levar-lhe uma palavra de consolo e resignação. Queria estar em toda a parte e de ouvidos atentos nas companheiras, procurava certifica-se se o atendimento estava sendo feito.
Mas com algum tempo começou a sentir desapontamento. Ouvia veladamente a conversa das enfermeiras e das próprias freiras, num tom, muitas e muitas vezes, que não lhes agradava. Doentes impacientes, doentes enjoados. Porque não morre logo e muitos comentários que indicavam indiferença à impiedade, o que fazia redobrar a vigilância.
E de si para si, fazia sua analise do comportamento das companheiras. Certo dia sua preocupação aumentou. Duas irmãs já maduronas, antigas e familiarizadas como sofrimento alheio, faziam um comentário. Ora fulana, não sei por que aquela velhota do apartamento 18, não morre logo para nos deixarem descansadas. Esse tempão todo chateando a gente e os médicos conservando-a a custa de remédios.
Tem-se que morrer. que se vá mais breve possível. Abigail estremeceu. Chegava a nem acreditar no que ouvira. Deveria ser caduquice das irmãs, cansaço da vida ou puramente familiaridade com as doenças dos outros e a morte. Aquilo lhe causou tristeza e desencantos.
Era horrível, desejar que uma pessoa que buscava saúde, mais algum tempo de vida, estivesse sob aquela condenação. Era para se pensar como estaria sendo atendida e com que desprezo. O hospital ou a Casa de Saúde era para dar vida e não para fazer enterros.
Abigail correu ao apartamento da enferma que já deveria ter morrido. Lá encontrou uma velhinha, dessas mulheres conformadas e de boa fé, uma criatura que ela própria havia pedido para ser internada no hospital das freiras. Era D. Natercia, baixinha, corpo delgado e extremamente simpática.
Mas o problema para as irmãs é que estava ali há muito tempo nem atava nem desatava, isto é, nem recebia alta, nem morria de uma vez. Abigail redobrou as atenções e sempre que podia ficava ali pertinho dela, confortando-a.
- Olha minha filha, não posso morrer agora. Tenho duas netinhas órfãs sob meus cuidados. Nem sei como estão vivendo nas mãos da empregada. Às vezes vem aqui me visitar, mas morro de cuidado nelas. Já pensou, eu sou a mãe e o pai dessas duas crianças. Tenho que lhes dar tudo e, sobretudo o carinho que elas necessitam.
Mas os médicos não poderão ainda me dar alta e eles têm razão. Eu mesma sinto que não estou em condições disso. Que se há de fazer. Mas Deus a de me ajudar e permitir que eu volte para cuidar de minhas netinhas. Mais de um mês aqui e sem resultado visível. Será, minha filha, que não tenho mais cura. E o que será das duas meninas.
- Não se preocupe tanto D. Natercia. Pense mais na sua saúde. Vou lhe ajudar. Confie em mim. E diga-me uma coisa, alguém já se interessou em saber, a senhora quem é?          
- Apenas sabem meu nome. Aparece-me aqui, quando trazem a medicação e uma vez perdida, uma freira vem me olhar em silêncio, e tenho, Deus me perdoe, a impressão de que vem apenas verificar se ainda não morri. Como é difícil viver, minha filha.
- Irá sair logo. Mais um pouco de paciência. Abigail foi se ter com as irmãs. Era urgente levantar as forças de D. Natercia, com duas netas para cuidar. Dar-lhe mais assistência, uma medicação mais eficiente, alem de certos cuidados pessoais.
- Tem se feito tudo menina, mas a enferma não vem reagindo. Também nos parece que não contribui para restabelece-se. Se ela conta que só a visitam quando vai ministrar alguma medicação, o que não é muito pouco para uma criatura naquela idade, e com um sério problema a preocupá-la em casa.
- O doente não se cura apenas com remédio. O mais importante é carinho, incentivo, estímulo. Ninguém ao menos, já se informou quem é a paciente.
- E que nos interessa estar bisbilhotando a vida alheia.
- Bem. Irmã deixe a paciente comigo.
– Ora, é um alivio para nós. Pode ficar com ela.
Abigail chamou o médico de plantão e pediu-lhe uma assistência mais ativa. Tomou a doente pelos braços e a fez sentar-se na cama, como uma primeira experiência. No dia seguinte já a fez andar um pouco pelo apartamento. E quando perguntando como se sentia a resposta foi franca e alegre.
- “Ora minha filha, bem mais disposta”.
 - Pois veja como é fácil a recuperação. Irá tomar nova medicação e dentro de poucos dias estará em casa com suas duas netas. Lá completará o tratamento, desde que siga minha orientação.
 No dia seguinte recebia a visita das duas netas, duas quase mocinhas, com fisionomia preocupada e pedindo a Dindinha para voltar.
- Voltará brevemente, minhas queridinhas. Tenham mais um pouquinho de paciência. Irei levá-la lá. Esperem.
  Dona Natercia beijou as netas, desta vez cheia de confiança. Sabia que sua saúde estava voltando graças aos cuidados e o carinho de Abigail.
 Quatro dias depois, Abigail conduzia D. Natercia á sua casa. Não era possível avaliar a alegria das netas, não só pela presença da vovó, mas sobre tudo pela sua saúde.
 Na casa de Saúde, comentava-se a recuperação rápida de D. Natercia. As irmãs não se conformavam, com aquele zelo excessivo de Abigail querendo impor novos conceitos de enfermagem. - Aquela moça chegou para cá e quer se mostrar -. O certo, entretanto, é que os internados estavam tendo uma assistência desvelada e notava-se pelo semblante de cada um que havia mais confiança e maiores esperança de cura.
Abigail conversa com os médicos, dava orientações as enfermeiras e quando se ouvia um chamando, estava de olho se o cliente estava sendo atendido prontamente. Não esquecia a alimentação, tanto nos horários como na qualidade e teve que falar sobre isto com a irmã superiora.
- Veja Irmã, não se pode servir a um doente, uma alimentação qualquer, tipo de carregação. Cada doente terá que receber comida de conformidade com o seu estado e que tenha sabor agradável.
Como é que uma criatura doente, fastienta, pode engolir aquela droga que estão servindo: quer deixar comigo as compras e a cozinha. Prestarei conta de tudo e talvez se gaste menos.                
- É certamente se propõe a fazer milagre, Não é mesmo?
- Mesmo que não custe menos, não será possível exigir que um doente aceite o que lhes dão; aqueles caldos brancos, insossos, de péssimo aspecto. Há de se fazer um cardápio para cada um.
Pagam para isto. Pelo menos fazer algumas variações, consultá-los, sobre o que desejam comer. O medico dá a medicação especifica e a cozinha a alimentação adequada. Uma boa alimentação é meia cura. Uma Casa de Saúde deve se credenciar pelas curas que faz e não pelos internos que saem.
 Sabe Irmã, a Senhora deveria deixar comigo grande parte da administração e ir descansar um pouco. Deve reconhecer que já trabalhou demais. Quero somente lhe ajudar. Nada mais. Não tenho ambição a não ser pelo meu trabalho, pelo exercício útil da minha profissão.
 Não quero que me transmita oficialmente, nenhum cargo ou função, o que me interessa é somente presta serviço.
 E a casa São José, adquiriu maior conceito e teve que ser ampliada. Abigail conversava com os pacientes e cada vez se certificava mais da impropriedade da direção das casas de saúde por freira.
São por formação: religiosas, partidárias de que o sofrimento é que conduz aos páramos celestiais. Não faz mal, portanto, que os doentes sofram.
Um internado já idoso e com algumas entradas no hospital, queixava-se: “Freiras não deve cuidar de doente... Não tem pena de ninguém. Quanto mais gritar, chorar e gemer, melhor. Estará mais perto do céu. E nessa filosofia anticristã, vai fazendo enterro de muita gente. Se alguém vai ao céu não se sabe. Tem-se apenas, certeza de que foi para o buraco... e abriu uma vaga no hospital, para outra vítima”.
- Quer dizer, meu amigo, que as freiras são mais desumanas.
- Ah! Não tem nem dúvida. Não já lhe disse que para elas o sofrimento é o caminho do céu. A morte é a libertação. A matéria é coisa impura e para salvar a alma é necessário separá-las. E outra mais. Quando a doença se agrava, chamam logo o confessor. Já pensou quanto sofre um enfermo com a presença do padre.
Na certa o cabra está desenganado e nas últimas. Credo em cruz: Deveria ser proibida freira dirigindo Casas de Saúde.
 Abigail tomou conta dos tratamentos e da assistência social aos doentes. E com isso a Casa de Saúde adquiriu conceito e só falava na enfermeira Abigail. Era, demais, honesta como mulher e não admitia licenciosidade lá dentro, viesse de onde viesse. Quem tivesse seus amores ocultos que se cuidasse.
  Não fazia escândalos, mais chamava reservadamente e acertava os ponteiros do relógio. Tornou-se tão respeitada que os próprios médicos tinham medo de enfrentá-la. Acabaram com as entrevistas ás portas fechadas, para evitar quaisquer suspeitas e comentários. 
   Sabia muito bem que algumas das enfermeiras mantêm relações livres e nem por isso as dispensava. O que exigia era respeito lá dentro. Todas as atenções deveriam ser dirigidas aos pacientes e as tarefas de cada um.
  Haveria, assim, maior cuidado no tratamento das pessoas e dos afazeres. Abigail pretendia casar-se, igualmente ás outras moças normais. Não era, portanto, contra o amor. Dr. Aparício, fisioterapeuta e ainda no inicio de carreira, via Abigail, o seu ideal de esposa.
  Ela percebia suas intenções e não as desprezava. Apenas não dava qualquer demonstração no ambiente onde trabalhava. E a primeira manifestação do Dr. Aparício, convidou-a a falar em sua casa ou na cidade.
  Dentro da Casa de Saúde seriam dois estranhos nesse particular. Não queria abrir precedente e quando depois noivaram, mantinham a mesma conduta. E fez ao noivo uma advertência. Não confundir relacionamento profissional com liberalidade com os outros médicos. Teria que ser afável cordial com todos eles, pois não admitia certas reservas em seu ambiente de trabalho.
  - Olha Dr. Aparício, ciúme comigo é uma espécie de veneno que tira todo gosto de amor. Não adianta desconfiar de mim. E se não confias, é bem melhor nos separarmos logo, antes que o juiz de o nó da indissolubilidade.
  - Não, Abigail, ciúme de ti, não existe de minha parte. Foi justamente a confiança que me mereces que despertou minha paixão. O que não gosto é que certos colegas conversem contigo como se quiserem te devorar.
  Sujeitos que não descravam os olhos dos olhos teus e, movimentam os lábios com se quisessem beber de um sorvo, os teus gestos, os teus sorrisos, as tuas palavras. São esses tipos que me enfaram. Porque não ti viram antes e somente agora depois de nossos compromissos. O que querem de ti? Percebo muito bem que não são atitudes de cordialidade profissional.
  São investidas cheias de desejos. Conhece-se pela cara dos patifes. Conversam contigo como se estivesse mastigando um fruto doce e raro. Uma pouca vergonha.
  - Mas o que isto importa, se não lhes dou a menor oportunidade nem confiança. E francamente, nem chego a notar esse interesse que dizes. E se há, terminarão desiludidos, cansados. Vê bem, Dr. Aparício, se não confias plenamente em mim, como confio em ti, o certo mesmo é pormos um ponto final em tudo, então nos casarmos já e já.
 - E pensas que eles recuam depois de casada. Ai é que tentarão. A bichinha já casou, o caminho está aberto e acabou a responsabilidade. O que acontecer será, por conta do marido. Tranqüilo!...
 - Bem, sou uma moça honesta e inviolável. Não posso evitar que tenham admiração por mim. Não correspondo a nenhum. Quero me casar contigo, para sermos felizes. No entanto, não mostras segurança sobre minha pessoa. Não pretendo largar a minha profissão e, portanto a decisão é tua.
Resolve-te. Existem muitas moças sonhando com casamento. Certamente encontrarás uma ou algumas de tua plena confiança. Tem medo de mim como solteira, receio maior ainda como casada e sempre fui e serei honesta.
Se eu desejasse certos relacionamentos já teria conseguido há muito tempo. E até me parece que nosso casamento será o começo de uma vida difícil para nós dois. Quero me casar para ser feliz, isto é, mais feliz, mas antevejo que não será assim. Portando, Dr. Aparício, considero nosso noivado desfeito. Continuemos bons amigos desinteressados, como éramos antes.
 Pois é, não me queira mal. Espero encontrar um que não veja o diabo em cada esquina.
 - Não, Deus me livre de perdê-la. Tenho somente zelo, zelo e não ciúme. E quem não zela o que é seu, o que ama perdidamente?
 - Sim, mais amor é confiança e sem isso, a vida torna-se muito difícil. Case-se comigo. Não terá mais necessidade de estar se mortificando naquela Casa de Saúde e terá o nosso lar para tecer os seus sonhos.
- É muito cedo ainda para abandonar meu sacerdócio. Já pensou ter que deixar tanta gente desesperada que carece de mim. Vamos devagar com a louça. Primeiro, habitue-se ao meu sistema de vida, dentro das exigências da profissão. Não veja em cada homem um seu rival, como se eu fosse um daqueles bazares da festa.
Se eu quisesse balançar-me na rede de varandas das felicidades amorosas, nem pensava em casamento. Posso dar-lhe um prazo de um mês para acomodação com os seus sentimentos. Mas desde agora vou lhe reafirmar, não posso cortar meus relacionamentos profissionais. Se alguém me olhar com intenções espúrias, não poderei evitar.
Aliás, creio que essas coisas nascem somente de sua imaginação. Talvez seja um vicio ou uma idéia falsa de que toda enfermeira de hospital é uma mulher fácil. O fato de ficar sozinha á noite com os médicos plantonistas, gera essa concepção idiota.
É possível, ou antes, é certo que muitos médicos inescrupulosos se aproveitam disso para conquistar, mas nem todas as moças se deixam levar. Na verdade são uns canalhas e daí deve perder esse teu medo ou esse zelo. E é bem capaz de ser um deles e por isto, suspeitas de mim.
 Mas formiga sabe que roça corta. Nunca ninguém se atreveu a me fazer propostas ilícitas.
- Certo Abigail. Se achar que a mereço, vamos nos casar. Respeitarei todas tuas vontades. Não serei possível uma comprovação mais legitima de pureza de coração.
- Então nos casaremos tão logo os papeis estejam prontos. Mas, antes disso, nada de querer avançar o sinal. O semáforo ficará fechado até o dia do casamento.

13/07/86
*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

A HERANÇA


A HERANÇA*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

            Aquilo é que é um sujeitinho de sorte, todo mundo dizia. Filho único, o pai desaparece e fica com aquela fortuna, sem ter dado um prego para formá-la. De escola em escola, de colégio em colégio, sem fazer o menor esforço e recebe de mão beijada, uma riqueza daquela: Fazendas, gado de entupir curral, casas e dinheiro. Bem que dizem que a sorte é cega. Dos estudos não aproveitou nada. Não pegava num livro.
            Fulgêncio, sem experiência nas coisas da vida, andava tonto. Jamais pensara que poderia ficar sem mãe e sem pai, sozinho, e desorientado. Se adivinhasse com o que ia lhe acontecer, teria tomado outro rumo na vida. Se não tivesse nada, talvez não estivesse tão cercado de preocupações. Mas o que iria fazer para preservar tudo quanto o pai lhe deixara e sem qualquer participação sua. Não entendia de fazenda, nem de negócios. Só de uma coisa estava certo. Não faria como outros que dentro de pouco tempo põem fora tudo que receberam por herança.
            Percebia bem os comentários que faziam a seu respeito, mas isso deixava para lá. Iriam ver quem era Fulgêncio, apesar de moço e inexperiente. No meio de suas preocupações surgiu-lhe uma idéia. Consultar o melhor amigo de seu pai. Iriam ver como se põe uma herança fora. E foi á casa do fazendeiro.
Tiburcio por cuja filha nutria uma especial simpatia. Estava ali, dizia, para pedir orientação, sobre a conservação lucrativa da herança que havia inesperadamente recebida. Até então se despreocupara, inclusive, com os estudos na doce esperança de que teria por toda vida, um pai que zelaria por tudo.
            - É meu rapaz, fui sempre amigo de teu pai. Era quase como se fossemos dois bons irmãos. É pena que tenha se ido tão cedo. O destino é uma coisa terrível. Causa surpresa a cada instante. Desaparece quem deveria viver e ser eterno e ficam os que não deveriam existir, ou antes, não deveriam ter se gerado. Mas o mundo foi feito assim. Erros por cima de erros. Também era coisa demais para ser feito em sete magros dias. Haveria de sair muita coisa chamuscada. Nem sei para que tanta pressa. Muita coisa ruim foi criada, o que não me parece ter sido obra de um Deus. Na certa havia gente mascarada, falsificando as coisas. Há muito gato por ai passando por lebre...
            A maledicência, então, é uma coisa terrível. Sabes que há muita gente por aí prognosticando que dentro de pouco tempo consumirás toda a herança que o meu compadre Adriano te deixou. É isto mesmo. Ninguém sai para te ajudar ou te aconselhar. Amam a destruição da felicidade alheia. No entanto, tua intenção é bem outra e podes ficar certo de que se confiares em minha ajuda, tua fortuna crescerá para desespero dos que vaticinam tua destruição. E para começo de tua nova vida, começo dando-te um conselho de amigo. Não poderás nem deverás continuar sozinho. Não será apenas a solidão a te desencorajar. Ela própria conduzirá á dissipação, como um meio de fuga. O medo da solidão fará com que se procurem ambientes onde campeia a voracidade humana. E daí para frente, terá muitos amigos que serão uma atração. Mas amigos da abundância, da dissipação, da consumação total. Enquanto tiveres dinheiro, terás grandes amigos e não te faltarão elogios. É a regra geral, sem exceção. Mas quando se for o ultimo ceitil, fugirão de ti com medo que passes a precisar deles. E te acusarão como um perdulário, um inepto, um idiota e incapaz. Devoraram a vítima e atira o esqueleto onde não se sinta o mau cheiro. Pois bem meu Fulgêncio, sustenta o que é teu. Estás no caminho certo. Muitos haveres e poucos amigos. Fora desta regra, perderás as duas coisas. Os amigos só duram enquanto ouvem tinir das moedas, isto é, á exceção dos amigos desinteressados e leais. Mas como ia te dizendo, a primeira coisa que tens a fazer é casar, mas casar sem pressa e com alguém que não te confunda como o teu dinheiro ou os teus bens. Escolhe uma moça que não necessite do que é teu. Moça sem ambição e de boa raça. A raça também é importante.
            - Não será que já tem alguma em vista.
            - Já e há bastante tempo.
            - Quem, então, se me podes dizer.
            - Para ser franco, está bem perto do senhor. É a Aline, com sua permissão, desculpe-me. Sempre foi o meu grande doirado sonho. Depende exclusivamente dela e dos pais.
            - Mas será, Fulgêncio, que é minha filha, a jovem que irá realmente completar a tua vida.
            - Exatamente. Onde iria encontrar outra com maiores dotes morais. Nem fazendo como Diógenes. Saindo em pleno dia com candeeiro aceso!
            - Ao que parece, não viestes pensando em conselho para a boa direção de teus haveres, mas, para fazeres um pedido de casamento...
            - Apenas a primeira intenção, o que seria um preparativo para a segunda, mas a oportunidade foi tão propicia que me antecipei. Se der certo, serei muito feliz e daí para frente, não me faltará mais nada. Estarei em casa, como se diz e os meus negócios crescerão.
            Aline concordou e dentro de poucas semanas o casamento realizou-se. Com a presença apenas de amigos diletos. Eram poucos, mas qualificados. Daqueles que vaticinavam a diluição rápida da herança, nem a sombra. E estes não desistiram:
- “agora sim, o tal coronel Teburcio vai deixá-lo somente como a filha. Trocou uma coisa pela outra”.
            Mas enganaram-se, Fulgêncio dia a dia solidificava mais ainda o seu patrimônio, com o apoio e a orientação do sogro. E para demonstrar sua prosperidade, comprava casas na cidade e fazendas que alugava ou explorava lucrativamente. Em cada casa colocava uma placa indicativa de propriedade. Queria era ver muita gente morando em suas casas, seus inquilinos. Era uma forma de desmascarar os maldizentes. E, na verdade não houve outra saída se não reconhecerem que o Fulgêncio possuía grande tino administrativo.
            Dentro de poucos anos, Fulgêncio era uma das pessoas mais influentes da cidadezinha de Abelhas. Quem necessitava de dinheiro em situação de emergência ou não, recorria a ele, o que significava ser o mais procurado para os bons negócios:
- “vai, vai ao Fulgêncio, é dinheiro vivo e na hora”. Alem disso, guarda inteiro sigilo. Também não é nenhum usurário. Muitas vezes, até valoriza um pouco o que lhe oferecem. O relacionamento é cada vez mais largo e já chegam até a falar em fazê-lo prefeito. Sabe-se que não quer envolver-se em política, embora prometa ajudar algum amigo honesto que se candidate. Mal tem tempo para cuidar do que é seu e detesta boatos e acusações graciosas ou não.
            Sabe que nas campanhas políticas, e na administração da coisa publica, poucos respeitam a honorabilidade do candidato ou do administrador. A ganância pelos cargos faz esquecer os princípios da dignidade. É uma canalhice. E o que acontece é que os mais honestos, os mais limpos, os mais bem intencionados e autênticos, raramente se elegem. No entanto, aqueles que já cheiram a podre e que água não lava, são os eleitos. O povão gosta é de trapaça, de cambalachos. Mas não é povinho só, não senhor. Os piores são aqueles que antevêem oportunidades para coisas escuras.
 Fulgêncio estava fora disso. Não adiantava tentar. Possuía outras formas de ajudar a cidade e a seu povo. Alem disso não faltavam candidatos. Estavam aí ás enxurrado, com lama e tudo. Quem já vira, por ventura, eleger-se alguém que prometesse consertar as coisas. Só se for por um engano ou algum milagre.
            - Aline colaborava com o marido, particularmente nos apontamentos dos bens e no registro dos animais e casas. Não desejava encher-se de filhos, mas queria um casal ou como ela mesma dizia um par. Homens ou mulheres, não havia importância. Um só seria criado com muito mimo e lhe faltaria um companheiro mais tarde. Mas de tanto ir com sede á fonte, lhe vieram quatro, uma mulher e três homens. Eram tão graciosos que até pensava que poderia vir uma dúzia.
No entanto, a mãe lhe desaconselhava: - olha Aline, filhos demais quebram as forças da gente e quando crescem dão muitas preocupações. Querem tornar-se independentes e fazer o que pretendem, sobretudo quando são extrovertidos. Ninguém os segura.
Dos meus seis filhos, posso-te dizer que apenas um não me tirou muitas noites de sono. Saem, voltam quando querem apesar do rigorismo de teu pai. Já as mulheres são diferentes um pouco. Muitas, ainda umas meninas, inventam de namorar, não escolhem com quem. Basta o sujeitinho ter uma cara de anjo, embora mal lavada, e já se enchem de paixão. E cegam a gente. Os homens andam por onde querem e ninguém vê ninguém comenta; as mulheres não. Qualquer liberdadezinha estará na boca do povo. Deixa como está. Quatro já chegam para encher tua vida. Aposto que somente viestes, a saber, o que é uma mãe, depois que tivestes filhos. Antes disto, uma mãe, mesmo adorada, e uma Santa é não raro apenas uma mulher que teve filhos e não fazem o que os filhos querem. Exigente, antiquada, palmatória do mundo. No entanto, só mesmo uma mãe sabe verdadeiramente quanto lhe custa nove meses de gestação, as noites de insônia, as preocupações nas doenças, o pensamento no futuro dos filhos. A dor que sente quando tem que contrariá-los.
            - É, mamãe, é assim mesmo. E então, o primeiro é um Deus nos acuda. Não se dorme tranqüila, não se sabe se está como sede, o que é que lhe doe. Um martírio. Se não fossem criaturinhas tão mimosas e nascidas do amor da gente, daria para não deseja-los.
            - Filhos que agente adora e que, por vezes. Doem tanto na gente.
             
 Em 22-7-1986
*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.





                                                       



quinta-feira, 6 de setembro de 2012

A VOLTA


A VOLTA*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003

            A janela do quarto amanheceu aberta e a cama vazia. Francelina havia fugido e foi aquele alvoroço em casa de seu Abílio.
            Ninguém esperava que ela fizesse aquilo. A família não queira o casamento, mas não chegava a ponto de proibi-lo totalmente. Queria apenas que Francelina fizesse uma melhor escolha para não começar logo errada. Mas a menina endoidou e pela madrugada sumiu, com o namorado, um moço de boa família, mas desocupado
Na verdade não era um viciado e estivera vários anos internado em um bom colégio da capital. Deixara os estudos e vivia à custa do pai, dando de pernas pela cidade. Raramente ajudava nos afazeres da casa comercial, apesar da insistência do pai.
            Pegou Francelina e desapareceu, levando pouco dinheiro e a inexperiência no trabalho. Era dessas criaturas que não queriam nada na vida.
Procura daqui, procura dali e nem notícia do paradeiro. As duas famílias desesperadas tiveram que se acomodar e aguardar noticia. A única esperança que alimentaram era que quando o dinheiro acabasse estariam de volta. Mas isso não aconteceu e lá e foram muitos meses e mais de dois anos. Não adiantava chorar. Nem se maldizer. Saíram porque quiseram e bem contra a vontade dos pais. Se não voltaram era certamente porque estava indo bem. Mas as coisas têm sempre o seu dia e, inesperadamente, os dois apareceram. Aliás, os três, pois Francelina já trazia um filho, gorducho e esperto. Foi um dia de alegria imensa, embora nada soubessem ainda como estavam vivendo lá fora. Bastava-lhe a presença dos três e o passado parecia não mais existir. O tempo parou, encarregou-se do resto.
            - Onde andou minha filha, que nunca deu à menor noticia?
            - Doidice minha, mamãe. Não queria dar-lhe desgosto e sei que dei ainda maior. Fomos andando, andando sempre, procurando onde viver. Trabalhando os dois em qualquer coisa que aparecia. Tínhamos saudades de casa, mas também tínhamos vergonha de voltar.
            Vida dura, mamãe, mais dura do que possa imaginar. Dias longos e noites mais longas ainda, com o pensamento sempre acordando a gente. Tinha-se a impressão que se estava para lá do fim do mundo, perdidos no meio de um deserto. Mas tinha-se que arranjar comida e lugar onde morar. Findamos parando numa cidadezinha do alto sertão, para lá das Espinharas – Volta do Riacho. Nunca havia ouvido falar nesse lugar. Felizmente o povo era bom e teve pena da gente. Perilo arranjou emprego numa casa comercial e eu trabalhava cuidando de crianças numa casa de família. Lá mesmo comíamos e dormíamos, separados. Não havia outro jeito. Só depois compramos uma cama e alugamos um quarto onde passamos a viver. A sorte é que sempre nos entendemos muito bem, e confiávamos um no outro. Findei engravidando, o que já esperava. Com mais algum tempo alugamos uma casinha e comprávamos para ir pagando, o essencial. Passamos a ganhar mais um pouco e já se estava mais tranqüilos. Era como se estivéssemos ricos. Nasceu o menino. As famílias me ajudaram e ganhávamos o leite para o Toninho. Nunca estivemos doentes. A doença braba era somente saudade. Dias que a gente sofria mesmo. Vontade de sair correndo os dois até aqui. Mamãe tenho tanta pena dessas moças que fazem como eu. E como dói andar com o coração apertado e sem remédio. É essa tal de paixão que se tem pelas pessoas. Sim, somente paixão e doidice. Amor. Amor é outra coisa bem diferente. É a gente sofrer juntos sem reclamar, sem culpar um ao outro, pacientemente. Conviver na santa paz, achando que tudo vai bem. Não querer mais se separar. Amor é o que se tem por um filho, fazendo-o sempre sorrir. Mas a final de contas, estamos aqui, vendo com os próprios olhos, papai, mamãe, os manos e não apenas com a imaginação.
Quando saltei a janela do meu quarto, pensava que o mundo era todo cor de rosa. Parecia que a vida estava em doar-me e sentir os prazeres do corpo. Uma semana depois, ou melhor, logo no dia seguinte, cai na realidade. Por alguns momentos de prazer, enfrentara o desconhecido, quando poderia muito bem ter esperado ou deixado de ser mulher. Nos dias próximos ao parto, quanto precisei de mamãe, de estar pertinho da senhora, de papai, no conforto da família. Deus teve dó de mim e nada aconteceu, mas ninguém avalia a angustia e a falta que me faziam.
            Tudo, entretanto, já passou e creio que já paguei minha ingratidão. Perdoem-me e me sentirei feliz. Viemos para voltar. E já nem sei como será. Lá em Volta do Riacho temos bons amigos, mas não temos parentes. Isto me aflige. Mas é lá que temos trabalho. Foi lá que recomeçamos a viver. Não sei como será a despedida, mamãe, no entanto é o que temos a fazer. Perilo anda amargurado. Desejaria não voltar, mas diz que foi um ingrato com a família e não merece outra coisa.
            - O que! Saírem mais daqui? Nunca, Francelina. Nunca. Divide-se o pão em dois pedaços. Com ou sem trabalho, não permitiremos o regresso. E não acredito que o pai de Perilo permita que ele retorne a Volta do Riacho. Em todo caso, concordaremos que voltem lá para uma despedida e os agradecimentos. Só, se é que não o fizeram ao sair.
            - Na verdade já, mamãe. Não desejaríamos mais voltar. Esta é que é a verdade... No entanto poderia ter que voltar.
            - Assim é que se pensa e se faz.
            - Não sabíamos como iriam nos receber depois de nossa ingratidão e de nossa doidice.
            - Foi muito difícil no começo. Ninguém se conformava. Depois tivemos que aceitar como uma coisa consumada. Mesmo assim, não perdíamos a esperança de reencontrá-los. São desatinos dessa mocidade sonhadora e inexperiente. Mocidade que  acha que todos os demais estão errados.
            - Ah! Mamãe, errados andávamos nós. E depois dos erros cometidos fica-se esmagado. Eu e Perilo, coitado, tivemos dias amargos. Felizmente nos sobraram paciência e compreensão para resistir. Foram muitos meses de duras provações. Mudamos inteiramente. Tinha receio que Perilo desse para beber, e então tudo estaria completamente perdido. Mas não. O tostão que pegava era para levar qualquer coisa para casa ou guarda-lo como quem guarda um tesouro. Nunca pensei que uma moedinha de nada pudesse ter tanto valor. Gostava de contar as poucas que ia juntando, coisa que antes  nunca havia feito. Quando se tem tudo que quer, não se dá valor a essas pequenas coisas. Quando estava em casa era assim. Nem me passava pela cabeça que alguns centavos viessem a fazer falta. Não imagina a alegria que tinha quando ia juntando e somava um cruzeiro. Tinha uma fortuna. E a gente mesmo ria de tanta felicidade, naqueles momentos cruciais de apertura.
            - Francelina, vai ao teu cofre que eu vou ao meu. Vamos ver quem tem mais. Parecíamos dois usurários. Mas somente Deus sabia avaliar nossa riqueza. E cada um ia apresentando uma moedinha e somando. Quase sempre eu ganhava. E chegávamos a nos beijar de contentamento.
– “Mulher, sobrou  isto tudo, mulher!”.
            Planejamos a volta para um fim de semana, quando iríamos receber o último dinheiro. Era necessário ir juntando. E lá se foram muitas semanas, até que um dia contamos o “dinheiro”. Pareciam moedas de ouro. – Dê ou não dê, vamos embora, disse-me Perilo. Vamos enfrentar o caminho de volta. O pior e o melhor dia será o da chegada à casa do lajedo Vermelho. Como irão nos receber não se sabe!
            - Não é isto que eu penso. O que me preocupa, Perilo, é como nos apresentaremos. Com que cara e com que roupa.
            - Ora, Francelina, com aquela mesma cara com que saímos. Os pais da gente irão entender e perdoar nossa doidice. Não posso mais te ver, tão angustiada e nem te quero ver sofre mais. O nosso filhinho não tem culpa de nossas loucuras de amor.

*O Conto pertence ao Livro, “Vidas Nordestinas”, no prelo.