sexta-feira, 23 de maio de 2025

 

QUERO SER GENTE

 

Nasci de uma ninha de doze irmãos, comigo treze passa fome no mundo de meu Deus. Fazer o quê, se a vida é para ser vivida de um jeito ou de outro. Minha casa era bem aconchegante e quentinha. Só não gostava muito do local por causa da zoada da turma que vinha jogar lixo perto do meu lar doce lar.  Minha mãe era magrinha, que dava pena; mas o que fazer, estava tudo caro pelo preço da morte. Jogavam no lixo tudo menos resto de comida, era mesmo uma falta de respeito com a gente. Pensavam que a gente não era gente. Coisa difícil deles entenderem. Minha pobre mãe saía devagarinho pra não acordar a turma, antes mesmo que o sol botasse sua cara quente de fora, a procurar no nosso café, almoço e janta; e as vezes voltava com os olhos molhados, sei que eram de lágrimas, e a boca vazia e espumando de contrariedade por não ter achado nem um ossinho de nada para a gente pelo menos sentir o cheiro bom de carne. Deitava-se ao nosso lado, mas para descansar do que para oferecer um gole quente do leite tão precioso para nossa sobrevivência. Ninguém reclamava, apenas ficávamos brincando de procurar o maná milagroso, de peito em peito magro, mas cheiroso, Cheiro de mãe!

Meu velho pai, não o conhecemos de perto. Sabemos que foi amor verdadeiro. Como sempre, quando chega o dia das mães se amarem, derramam um tal de feromônio incrível que bate nas ventas de dezenas de pretendentes pelas redondezas atraindo para uma competição de quase vida ou morte.  Chegava primeiro o que morava mais próximo e se mostrava altaneiro e prepotente. Rodava em volta, cheirava e perguntava que tal? Minha mãe se fazia de difícil. Sabia que muitos pretendestes já, já apareceriam com a mesma cantada. Dessa vez, não ia cair na lábia fácil. Queria um cabra que fosse forte e valente para ajudar na lida da ninhada. Sujeito que tivesse presente pelo menos nos primeiros dias do puerpério.

Com o tempo ganhamos o mundo desmantelado e cheio de preconceito. Cada qual seguiu um destino imprevisível. Não sei quantos dos irmãos ainda estão vivos.  Vivemos em média apenas uns quatro anos e isso já basta. A vida de cachorro vira-lata não é fácil. Falo assim porque a gente ouve por ande passa – Sai daqui vira-lata safado. Ninguém tem a coragem de chamar – sai daqui seu Sem Raça Definida. Não ter padrão nem origem conhecida, e por esse motivo não tem pedigree. Só não aceito é ser chamado de ladrão. Somos caçadores inteligentes a procura da sobrevivência, possuímos o melhor olfato da turma canina, por isso vivemos comendo do bom e do melhor, claro, pelo meio do mundo, já que somos proibidos de fazer compras nos açougues e super mercados.

Não sabem de que raça sou. Raça mais velha do mundo, possuo sangue de todas as qualidades de DNA existente entre os canídeos. Sou forte para nascer e para bater as botas também. Não morro tão fácil assim. Doenças, desconheço quase todas! Mesmo vivendo a margem da sociedade, desprezado e jogado a força pelos arrabaldes das cidades e até nas zonas rurais somos menosprezados.

Coisa de cachorro mesmo! Mas nem ligo. Sou teimoso e resistente não abro nem pro cão do segundo livro, - modesta a parte, esse não é da nossa raça. Não tenho inveja desses ajeitadinhos metidos a ricos, cheios de fricotes e por qualquer coisinha dão logo um chilique. Todos com nomes pomposos; Bijoux, Brando, Dolce, Jax, Lulu, Mimi, Monet, e Winston, Mel, Nina, Thor, Luna, Amora, Luke, Bob, Bella, Chloe, e por aí vai.

Lá em casa, mãe nos chamava de Baleia, Mocotó, Piaba, Corisco, Ramela, Rajado, Nevoeiro, Leão, Parafuso, Mosquito, Carniça, Tubarão e o meu de Zé, até hoje não sei o porquê. Onde danado mãe achava todos esses nomes?

 Além disso me considero como um brasileiro de coração. Somos cem por cento brasileiros, dizem os sabidos.  Já fomos cotados para estampar a cédulas de 200 mil. Somos estudados por cabras metidos a besta, como um tal de Nelson Rodrigues, que transformou nosso “tipo” em “complexo de Vira-lata”, como síndrome do brasileiro em sentir inferioridade a outras pessoas do mundo. Ledo engano. Somos felizes, não nos trocamos por nenhuns mequetrefes, ricos, bonitões ou estrangeiros. Somos os caras!

Nossa pelagem possuem todas as cores, estou presente nos recantos mais impossíveis de se viver e nos mais comuns também. Becos, avenidas, estradas, shopping, universidades, hotéis, cinemas e o diabo a quatro. As vezes corro atrás de motos só por diversão. Sempre procuro ser amigo desse povo que se diz mais inteligente, pra ver se arranjo um cantinho e um pouco de carinho, coisa que o mundo nos tem negado. Um dia Deus com certeza vai mudar essa relação entre todos os habitantes da terra ou será no céu? Quem viver verá! Mas, não abro mão de também ser gente.

Tenho dito.

Zé Cachorro

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