domingo, 19 de agosto de 2012

ADELICE



 A D E L I C E*

João Henriques da  Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)


            Quando Adelice foi ficando uma moça, começou a dar cuidado. Não por ser uma jovem extrovertida ou irascível, mas pela sua formosura exótica que atraia a atenção de toda gente. Talvez não estivesse apenas, em seus dotes físicos o dom de chamar a atenção.  Havia qualquer coisa indefinida que a tornava uma criatura impressionante. Não se afetava e nem procurava se exibir, e, no entanto, era como uma espécie de flor exótica, que desabrochava todos os dias ao amanhecer, perenemente, mostrando uma corola sempre mais bela e atrativa. Quem via Adelice não a esqueceria mais. Seus olhos, sua boca, seu rosto, o corpo, formavam um conjunto inesquecível. Era Adelice como uma coisa que houvesse sido feita errada e dera certo, maravilhosamente certo.
            Estava visto que Adelice não tinha culpa da nada. Nascera assim porque assim Deus a fizera diferente das outras. E não se preocupava que andassem espiando tanto para ela e tecendo comentário sobre sua beleza estranha.
            - Olha Pedro, a Adelice mata qualquer um de amores. Tenho tentando me aproximar, mas parece que nem me vê. Ou se vê mostra-se desinteressada. Já não é mais uma menina e deveria perceber que ando apaixonado, com o juízo fervendo. Não deveria fazer isso comigo. Trata-me como uma pessoa amiga, como se fosse um irmão. E é isto que mais me intriga, e assusta não me dar se quer oportunidade para dizer que a amo como um doido, amor que poderá se tornar violento!
            - Ora, Alcino, e quem não andam com os olhos em cima dela. É provável que alguns deles estejam merecendo suas atenções. Quem pode saber. As mulheres são peritas em simulação, especialmente quando não querem desagradar ninguém. E pelo que se vêem, todos a querem ao mesmo tempo. Intimamente ela deve ter até pena de ti, de mim e dos outros que não são o seu príncipe encantado. Pode ser também que esteja esperando, por timidez por conveniência, ou que lhe faça declaração de amor. Fica um esperando pelo outro, feito um pateta e o tempo vai passando em brancas nuvens. Quaisquer dias destes, alguém mais resoluto e atrevido, desencanta, a menina. E do jeito que ela é, quando se decidir, não mudará mais, mesmo que lhe ofereçam o céu, a terra e todos os tesouros.
            - Pelo menos tu que és meu amigo, deixa o caminho aberto para minha tentativa. Ninguém, estou certo, anda tão apaixonado quanto eu. No entanto, tenho o maior medo de que me recuse e venha com aquela conversa velha; “Quero ser apenas  tua boa amiga”.  E então, meto uma bala no céu da boca e rebento o crânio para não ter mais que pensar em nada. Além disso, não confio em ninguém.
            - Quanto mais demora, pior será. E agora te pergunto, para que queres uma mulher daquela se tens até medo de falar-lhe. Aproxima-te da menina, pega-a de surpresa, fala sério de tua paixão, dar-lhe um beijo inesperado, derrama toda tua paixão na boca e nos olhos da endiabrada. Embora seja isso uma faca de dois gumes, não há outra saída inteligente. Poderás ser aceito ou levar uma boa tapa na cara, mas isto é um risco de quem ama.
            - Teria coragem de fazer isto?
            - Já estava premeditado para fazê-lo. E não ponho em pratica por que me pedes e respeito nossa velha amizade. Mas faças isto que ninguém perceba. Uma tapa de mulher lembra-te é a que mais dói especialmente no teu caso. Mas aconselho-te. Se não sabe beijar, nem te metas. Um beijo mal dado  é um desastre. Lava e perfuma a boca suavemente, mas isso não é o mais importante. O principal é o jeito, o ardor do beijo, a maneira de prender a dona. Dependerá de tua habilidade amorosa.
            - Rapaz, esta tua receita é muito violenta. Tenho lá coragem para isto.
            - Então fica como está. Na duvida, na incerteza. Estas coisas a gente põe logo em pratos limpos. Deu, deu, não deu, paciência. E toma-se outra direção.
            Alcino ficou sem saber o que fizesse. Em todo caso havia de fazer alguma coisa de positivo.
            Passou a noite planejando o encontro. Medindo as palavras e avaliando as conseqüências da disparada de um beijo imprevisto. E sentia no rosto o ardor de uma tapa dessas de estalo. Pedro tinha idéias de doido. Quem diabo iria se atrever a sapecar um beijo numa moça pura daquela.
            Pedro estava era atirando-o no braseiro. Adelice não era moça para se brincar com ela. Sua paixão também não era uma brincadeira colegial. Seus 21 anos eram suficientes para pesar e medir as circunstâncias. O certo mesmo era abordar Adelice, declara-se claramente embora recebesse dela o desengano. Teria de conforma-se e confiar no seu próprio destino. Se fosse recusado perderia algumas noites de sono, mas haveria de confirma-se. Não tinha de ser e havia muita moça disponível e atraente. Adelice sairia rapidamente de sua memória. Pelo menos faria o possível para esquecê-la. Com outra menina ao seu lado tudo seria fácil.
            Pedro amanheceu de plano feito. Não passaria nem mais um dia. Do contrario, mudaria de rumo casar-se-ia com outra e até era perigoso casar-se com uma moça tão ambicionada. Às três horas da tarde foi procurar Adelice.
            Encontro-a em casa e estava encantadora. Percebeu que seria na verdade, muito difícil esquecer uma diabinha daquela. Apelou para o seu anjo da guarda, rezou para o poderoso Santo Antonio, pediu a proteção divina e aproximou-se tremendo. O revolver estava na cintura e poderia até suicidar-se aos pés de Adelice. E chegou até a pensar em matar friamente qualquer um que se casasse com ela. Não podia admitir que alguém viesse a possui-la.
            Oh! Adelice. Posso falar um instante contigo.
            - Pode, sim. E por que não. Será um prazer receber uma pessoa amiga. Aquela “amiga” causou-lhe arrepios.
            - Olha Adelice, sou um teu admirador. Seria uma grande felicidade poder sempre conversar um pouco contigo. Embora tenha bons amigos, sempre que não te vejo é como se estivesse só. Exerce uma poderosa atração sobre mim. Atração que me prendi a ti como se fosse um cativo de tua beleza. Em fim confesso-te, Adelice, amo-te perdidamente. Não imagina como me tenho martirizado a falta de coragem para dizer-te, o que sempre senti. Receio de que poderias até rir de mim. No entanto não tive mais como conter minha ansiedade, e resolvi expor-me definitivamente ao teu julgamento. Preferi submeter-me logo ao desengano a prolongar dias e noites imaginando um sim ou não, pensando na felicidade ou num sonho irrealizável. Sim, Adelice, uma moça tão admirada e desejada como és, com tanto e tantos admiradores, só por milagre poderias me dar qualquer atenção. Sei que não te mereço, mas deixo em tuas mãos, meu destino e minha felicidade. Peço-te, porem uma coisa. Não quero ouvir um não saído dos teus lábios. Bastará o silêncio para quer eu entenda. E então irei tentar esquecer minha má sorte, coisa impossível, bem sei, mas farei que me esqueça, silenciando minha desdita.
            Serei como um rio ou uma fonte que secou. Uma árvore que secou á margem do caminho por onde não haverá de passar mais ninguém. Longe de teus olhos, serei como um cego que perdeu o seu guia no meio de um deserto. Serei uma noite sem luar e sem estrelas. Um pássaro sem asas. Serei o silêncio e a solidão.
            - Pedro, não sabe por que Deus me fez uma criatura tão diferente das outras mulheres. Tenho um profundo desgosto disso. Olho-me no espelho e vejo que sou uma criatura estranha. Sempre acreditei que todos olhavam pra mim, não por amor, mas por me considerarem uma figura exótica e incapaz de amar alguém. Sempre fui por isto uma pessoa triste e amargurada. E alem disto, uma tímida e inibida. No entanto, tenho a impressão de que me considera uma moça vaidosa e cheia de orgulho; quando o que existia era apenas a sensação de ser um objeto curioso, sem alma e sem coração. E por que Pedro me vem dizer isto tão tarde. Poderias ter amenizado minhas incertezas e meus sofrimentos. Sentia que quem me olhava era simplesmente por curiosidade, curiosidade de quem vai a uma exposição para ver um animal que apresenta alguma anormalidade. Um gato com duas cabeças ou um coelho com cinco pernas. Agora, pergunto-te, que graça te atrai em mim. Não será apenas curiosidade tua. Curiosidade que depois de vista perde o encanto? Olha Pedro, não quero ser mais infeliz do que tenho sido.
            - Também não creio que desejas que eu venha a ser mais infeliz do que tenho sido. Levar toda minha confiança em ti, como se estivesse correndo atrás de uma miragem. Sonhando com o que me parecia inacessível, inatingível.
            - Quanto queria que alguém se aproximasse de mim para dizer-me ao menos que gostava de mim. Mas, não, só fazia me olhar e sorrir uma coisa indefinida que me angustiava. Pedro, não me diga mais nada. Apenas me diga novamente que me amas. Só isto. E te darei uma resposta.
            - Dizer que te amo é muito pouco ainda.  Quero dizer-te que te adoro e quero casar-me contigo, antes que eu morra de amor.
            - Então, aí tens minha resposta, sem uma palavra. Um beijo de amor é mais sonoro, mais doce, mais expressivo, mais comunicativo. E beijou-o como se estivesse se transferindo, derramando-se no coração de Pedro.
- Agora, Pedro sabe o que é a felicidade.
- E eu, o que é deixar de ser infeliz.
                
  Em 9-9-1986
*O conto faz parte do livro "Vidas Nordestinas", no prelo.

A ZELADORA




A ZELADORA*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)
           
Dona Maricota sem ter freqüentado colégio de freira, era caída pela reza e pelo zelo dos altares. Padre Tota nem tinha preocupação com a igreja. Confiava tudo a dona Maricota, desde a sacristia até o adro da igreja.
Santo não criava poeira. Não era possível existir uma zeladora mais dedicada e pontual.
            Maricota vivia de rendimentos de casas alugadas e de saldos bancários. Tentara casar-se algumas vezes, mas não aparecia o seu anjo da guarda. Tinha sempre a impressão de que só havia interesse pelos seus bens materiais e ela queria casar por amor, amor verdadeiro.
            O resto era coisa impura, contrária a sua religiosidade. Nunca! Ou gostava dela como mulher, ou então que se ficassem pra lá. Sabia muito bem viver sozinha, servindo à igreja, sob as graças de Deus e do padre Tota. Pelo menos duas vezes ao dia dona Maricota comparecia à igreja. Fiscalizava coisa por coisa como se fosse o seu patrimônio mais precioso. Fazia tudo com o maior fervor. Levava sempre um lírio ou uma rosa para enfeitar os altares. Os paramentos eram classificados e arrumados com um zelo especial. Antes das missas ou outros atos religiosos, separava cuidadosamente as peças que deveriam ser usadas. Substituíra nas gavetas das cômodas as bolinhas de naftalina, por um cravo, um jasmim, uma rosa ou um molhinho de raízes cheirosas. A naftalina era coisa para afugentar morcego. Padre Tota sempre tinha uma palavra de conforto e agradecimento. Sob tais estímulos dona Maricota ia se despreocupando de si própria. Já se  encostava aos seus trintas e dois anos, naquela monotonia de vida sem se aperceber que estava envelhecendo só e só, fazendo maiores economias e batendo poeira de santo. Era necessário um acontecimento que a despertasse. Acomodada como estava terminaria uma refinada barata-de-igreja. Contentava-se com cheiro de incenso e a visão do céu, que nem ao menos sabia onde era.
 – “Vai se casar a Florinda”.
 Os comentários corriam pelas esquinas. E é pra já. Talvez tenha havido alguma precipitação. Mais velha do que ela, de feições pouco atrativas, valendo-lhe apenas o formato do corpo de curvas acentuadas e o trato a que se dava, Florinda iria mesmo se casar. O noivo – quem diria –  um rapagão bem mais moço e fiscal da prefeitura. Entrava apenas com o físico e um emprego efetivo. Dona Florinda, solteirona, não dependeria dele. O noivo poderia até sair do emprego. Em todo caso, um fiscal, era sempre uma autoridade. Casamento com dia marcado. Noivos na igreja e padre Tota já paramentado todo, quando dona Maricota chegou. Teve um choque emocional. Pensou em sua vida de solitária, nas noites vazias, conversando apenas com os seus haveres. A igreja lhe era uma ocupação também vazia. Não deixava nada para esta vida. Era uma inútil para  si mesma. Será que não tinha um corpo como dona Florinda. O seu só havia servido para digerir e levá-la a Igreja. Coisa esquisita aquela. O que estaria sentindo dona Florinda ao lado do noivo que mais tarde estariam sozinhos em casa. Ela que se benzia quando lhe vinha qualquer pensamento que considerava impuro, ante-religioso. E dentro dela foi se acendendo esquisita chama em forma de desejos. Lembrou-se, então, de já haver sentido a mesma coisa quando era uma mocinha. Tentou mudar de pensamentos, mas inutilmente. Os noivos sorriam um para o outro e olhavam-se com uma espécie de gula. E quando o padre Tota disse “estão casados e vão viver felizes”, dona Maricota não teve mais dúvidas de que teria de ouvir também aquelas santas palavras.
            Saíram os noivos e ela saiu atrás procurando adivinhar o que iria acontecer mais logo descobriu, então, que também era mulher e que estava perdendo o melhor de sua vida. Dona Florinda nem era mulher de andar rezando nem batendo poeira de santo e o padre Tota desejou-lhe felicidade. Tinha sido até ali, uma inocente, uma boboca. Nem atinava como se havia deixado envolver por coisas místicas e se esquecendo de que também poderia ser feliz como dona Florinda. E o segredo estava justamente na coragem de arranjar também um homem para fazer-lhe companhia. Passou a se sentir só, incompleta e burra. Os homens não gostavam de carolismo, de baratas-de-igreja. Faziam até mau juízo. Quase sempre deveriam estar cheirando a batina de seu vigário e por isso não pensavam mais em ninguém.
            E o padre Tota que era um espertalhão. Sempre notava o seu jeitão de olhar para ela como quem fazia um convite. Mas tudo para ela era pecado. Desejava um lugarzinho no céu no coro das onze mil virgens.
            Despregou-se, entretanto, dessas idéias fantásticas. Foi à casa do padre Tota. Revelou-lhe que estava cansada. Iria abandonar a zeladoria. O tempo estava passando sem que cuidasse de si. Lamentava não poder colaborar por mais tempo. Pedia compreensão.
            - Não há que fazer. Já fez muito pela igreja de Cristo. Seja feliz
Dona Maricota saiu como se tivesse ganhado a liberdade e um noivo. Teria que freqüentar festas, visitar amigos, gastar mais um pouco consigo mesma. Melhores vestidos, mais decotados e colados, perfumes, em fim uma melhor apresentação. Falar sempre em casamento, na felicidade de um lar, passeios, conhecer outras cidades, tudo quanto pudesse despertar a atenção. De igreja só a lembrança, alguma missa aos domingos e longe do cheiro enjoado da sacristia. Ver os homens como um participante ativo na vida das mulheres. Conversar com eles sobre seus rendimentos. Sobre a vida que poderia levar. E aventura-se a dizer que pretendia casar-se. Precisava de alguém que tomasse conta dela e de seus haveres. Que havia deixado a igreja para cuidar de sua vida enquanto era tempo. Tudo dependeria de encontra um pretendente. E, de fato, começaram a aparecer. Conhecia a vida de todos e saberia selecionar. Na verdade, sua escolha estava feita. Sabia a quem desejava.  Não queria assim qualquer um. Casar só para usufruir vantagens, isto não. O seu escolhido não se manifestava e talvez nem pensasse nela. Seria necessário despertar-lhe atenção. Homem já bem vivido, solteirão, dono de uma pequena mercearia. Exatamente ele. Admirava-lhe a conduta, o respeito humano que merecia. Completamente destreinada no assunto necessitava de alguém para os primeiros contatos, ou as convenientes sondagens. Lembrou-se da lavadeira de seu Adroaldo Pereira, o seu bem amado. Conversou com Mirita, explicou-lhe minuciosamente a sua pretensão:
 – Como poderia viver só. Porque não procurava uma companheira ou uma moça já vivida, para se casar.
Tinha pressa nisso, pois se não desse certo, partiria para outro.
            Mirita sabia que seria gratificada e apressou-se. Lavou e passou rapidamente a roupa de Adroaldo e botou-se à casa do homem. Entregou a roupa, tomou a sua habitual dose de vinho de jurubeba e puxou conversa.
            - Seu Adroaldo. Como é que o senhor agüenta viver só, passar as noites falando com as paredes.
            Depois vai ficando velho, nervoso, aborrecido da vida e não encontra mais com quem se casar. E envelhecer sozinho é muito triste e até perigoso. Uma mulher em casa enche-a de alegria. Já pensou ter uma mulher para dormir com ela, fazer o arranjo da casa, cantar, colocar flores nos jarros. E aquelas outras coisas boas. O senhor sabe.
            - Na minha idade, Mirita, quem iria se interessar por mim. Não iria querer qualquer doidinha dessas que andam por aí, casando por casar, só para ter arrimo. Vivo dessa bodega e não poderei dar o conforto merecido a uma moça de categoria, caso a encontrasse. Difícil, muito difícil, Mirita.
            - Talvez não seu Adroaldo. Conheço uma moça, já de certa idade, pela casa dos trinta e vive bem. Ótima pessoa.
            - E quem será essa jóia?
            - O senhor conhece muito bem. Dona Maricota aquela que era zeladora da igreja. Deixou a igreja e hoje cuida somente de si e de seus bens. Vive também sozinha, num certo abandono. Daria certinho, no meu entender. Pode ser que não simpatize com o senhor, mas isso só vendo. Fale com ela como quem quer e não quer. Ela sempre faz compras aqui e será fácil observá-la.
            A gente conhece uma mulher quando deseja alguma coisa. Puxa-se o assunto por longe, fazendo arrodeios. Que é um bom partido, lá isso é. Honesta, bem pensada e bem de vida. Bens, dinheiro e zelo.
            - Mas olha. As mas línguas falavam dela com o padre Tota, que não bota água, à pinto. Quem sabe se não houve mesmo alguma coisa. Tantos anos metida na sacristia.
            - Esta não. Posso jurar. Ali é uma mulher direita, honesta. Uma moça completa. É possível que seu vigário tenha tentado. O bicho é esperto, mas, daquela ele não sentiu nem o cheiro. Ouvi dona Maricota, duvido. Sei de tudo que se passa por aqui. Aquela se não casar vai se juntar às onze mil virgens
            - Então, vou tentar, mas sem nenhuma esperança. Uma moça instruída, independente, bonitona, vai lá se interessar por um babeco de minha marca. Mas, olha lá. Não toques no assunto com ela.
            - Deus que me guarde. Fique sem cuidado.
            Seu Adroaldo ficou na escuta. Impaciente. Dona Maricota não aparecia. Deveria estar fazendo suas compras noutra mercearia.
            A velha Mirita aguçara as idéias de Adroaldo. Embora de temperamento calmo, voltado só para os seus negócios, começou a sentir qualquer coisa mexendo com ele, martelando-lhe o juízo. Que diabo tinha aquela maluca de meter na cachola idéias de casamento. Sempre viveu só, sem problemas, quando queria visitava as pensões de mulheres e lá elas ficavam sem lhe dar dor de cabeça. Agora se saía àquela avariada de uma figa, atiçando um fogo já quase apagado. Teve até vontade de tomar-lhe a lavagem de roupa, para deixar de ser intrometida. Mas será um castigo. Dona Maricota vivia acendendo-lhe a luzinha da memória. Procurava ocupação para desviá-la, mas era inútil. A velha Mirita botara-lhe feitiço.
– “Não tinha nada que se meter em minha vida de solteiro. Não era de sua conta”.
 Mal sabia que lhe viera já de encomenda, com os olhos famintos em cima da gratificação. No mais, poderia atolar os dois. E a coisa aconteceu depois de longos dias de espera.
            Dona Maricota chegou para fazer umas comprinhas. Entrou cumprimentou seu Adroaldo, com simplicidade e certa indiferença. Seu Adroaldo entristeceu. Mas não perdia ensejo de admirar o mulherão que estava pertinho dele. Notou, entretanto, que vinha usando perfume, de blusa nova, um pouco decotada, mangas curta, bem diferente dos tempos de zeladora.
            - Então, dona Maricota, soube que deixou a igreja. O padre Tota deve ter sentido muito.
            Em pouco tempo, entrava dona Maricota toda de branco, de braços dado com o Adroaldo, fazendo inveja as demais balzaquianas da cidade e ao padre Tota.

*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.