A D E L I C E*
João
Henriques da Silva
(In
Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)
Quando Adelice
foi ficando uma moça, começou a dar cuidado. Não por ser uma jovem extrovertida
ou irascível, mas pela sua formosura exótica que atraia a atenção de toda
gente. Talvez não estivesse apenas, em seus dotes físicos o dom de chamar a
atenção. Havia qualquer coisa indefinida
que a tornava uma criatura impressionante. Não se afetava e nem procurava se
exibir, e, no entanto, era como uma espécie de flor exótica, que desabrochava
todos os dias ao amanhecer, perenemente, mostrando uma corola sempre mais bela
e atrativa. Quem via Adelice não a esqueceria mais. Seus olhos, sua boca, seu
rosto, o corpo, formavam um conjunto inesquecível. Era Adelice como uma coisa
que houvesse sido feita errada e dera certo, maravilhosamente certo.
Estava visto que
Adelice não tinha culpa da nada. Nascera assim porque assim Deus a fizera
diferente das outras. E não se preocupava que andassem espiando tanto para ela
e tecendo comentário sobre sua beleza estranha.
- Olha Pedro, a
Adelice mata qualquer um de amores. Tenho tentando me aproximar, mas parece que
nem me vê. Ou se vê mostra-se desinteressada. Já não é mais uma menina e
deveria perceber que ando apaixonado, com o juízo fervendo. Não deveria fazer
isso comigo. Trata-me como uma pessoa amiga, como se fosse um irmão. E é isto
que mais me intriga, e assusta não me dar se quer oportunidade para dizer que a
amo como um doido, amor que poderá se tornar violento!
- Ora, Alcino, e
quem não andam com os olhos em cima dela. É provável que alguns deles estejam
merecendo suas atenções. Quem pode saber. As mulheres são peritas em simulação,
especialmente quando não querem desagradar ninguém. E pelo que se vêem, todos a
querem ao mesmo tempo. Intimamente ela deve ter até pena de ti, de mim e dos
outros que não são o seu príncipe encantado. Pode ser também que esteja
esperando, por timidez por conveniência, ou que lhe faça declaração de amor.
Fica um esperando pelo outro, feito um pateta e o tempo vai passando em brancas
nuvens. Quaisquer dias destes, alguém mais resoluto e atrevido, desencanta, a
menina. E do jeito que ela é, quando se decidir, não mudará mais, mesmo que lhe
ofereçam o céu, a terra e todos os tesouros.
- Pelo menos tu
que és meu amigo, deixa o caminho aberto para minha tentativa. Ninguém, estou certo,
anda tão apaixonado quanto eu. No entanto, tenho o maior medo de que me recuse
e venha com aquela conversa velha; “Quero ser apenas tua boa amiga”. E então, meto uma bala no céu da boca e
rebento o crânio para não ter mais que pensar em nada. Além disso, não confio
em ninguém.
- Quanto mais
demora, pior será. E agora te pergunto, para que queres uma mulher daquela se
tens até medo de falar-lhe. Aproxima-te da menina, pega-a de surpresa, fala
sério de tua paixão, dar-lhe um beijo inesperado, derrama toda tua paixão na
boca e nos olhos da endiabrada. Embora seja isso uma faca de dois gumes, não há
outra saída inteligente. Poderás ser aceito ou levar uma boa tapa na cara, mas
isto é um risco de quem ama.
- Teria coragem
de fazer isto?
- Já estava
premeditado para fazê-lo. E não ponho em pratica por que me pedes e respeito
nossa velha amizade. Mas faças isto que ninguém perceba. Uma tapa de mulher
lembra-te é a que mais dói especialmente no teu caso. Mas aconselho-te. Se não
sabe beijar, nem te metas. Um beijo mal dado
é um desastre. Lava e perfuma a boca suavemente, mas isso não é o mais
importante. O principal é o jeito, o ardor do beijo, a maneira de prender a
dona. Dependerá de tua habilidade amorosa.
- Rapaz, esta tua
receita é muito violenta. Tenho lá coragem para isto.
- Então fica
como está. Na duvida, na incerteza. Estas coisas a gente põe logo em pratos
limpos. Deu, deu, não deu, paciência. E toma-se outra direção.
Alcino ficou sem
saber o que fizesse. Em todo caso havia de fazer alguma coisa de positivo.
Passou a noite
planejando o encontro. Medindo as palavras e avaliando as conseqüências da
disparada de um beijo imprevisto. E sentia no rosto o ardor de uma tapa dessas
de estalo. Pedro tinha idéias de doido. Quem diabo iria se atrever a sapecar um
beijo numa moça pura daquela.
Pedro estava era
atirando-o no braseiro. Adelice não era moça para se brincar com ela. Sua
paixão também não era uma brincadeira colegial. Seus 21 anos eram suficientes
para pesar e medir as circunstâncias. O certo mesmo era abordar Adelice,
declara-se claramente embora recebesse dela o desengano. Teria de conforma-se e
confiar no seu próprio destino. Se fosse recusado perderia algumas noites de
sono, mas haveria de confirma-se. Não tinha de ser e havia muita moça
disponível e atraente. Adelice sairia rapidamente de sua memória. Pelo menos
faria o possível para esquecê-la. Com outra menina ao seu lado tudo seria
fácil.
Pedro amanheceu
de plano feito. Não passaria nem mais um dia. Do contrario, mudaria de rumo
casar-se-ia com outra e até era perigoso casar-se com uma moça tão ambicionada.
Às três horas da tarde foi procurar Adelice.
Encontro-a em
casa e estava encantadora. Percebeu que seria na verdade, muito difícil
esquecer uma diabinha daquela. Apelou para o seu anjo da guarda, rezou para o
poderoso Santo Antonio, pediu a proteção divina e aproximou-se tremendo. O
revolver estava na cintura e poderia até suicidar-se aos pés de Adelice. E
chegou até a pensar em matar friamente qualquer um que se casasse com ela. Não
podia admitir que alguém viesse a possui-la.
Oh! Adelice.
Posso falar um instante contigo.
- Pode, sim. E
por que não. Será um prazer receber uma pessoa amiga. Aquela “amiga” causou-lhe
arrepios.
- Olha Adelice, sou um teu admirador. Seria uma grande
felicidade poder sempre conversar um pouco contigo. Embora tenha bons amigos,
sempre que não te vejo é como se estivesse só. Exerce uma poderosa atração
sobre mim. Atração que me prendi a ti como se fosse um cativo de tua beleza. Em
fim confesso-te, Adelice, amo-te perdidamente. Não imagina como me tenho
martirizado a falta de coragem para dizer-te, o que sempre senti. Receio de que
poderias até rir de mim. No entanto não tive mais como conter minha ansiedade,
e resolvi expor-me definitivamente ao teu julgamento. Preferi submeter-me logo
ao desengano a prolongar dias e noites imaginando um sim ou não, pensando na
felicidade ou num sonho irrealizável. Sim, Adelice, uma moça tão admirada e
desejada como és, com tanto e tantos admiradores, só por milagre poderias me
dar qualquer atenção. Sei que não te mereço, mas deixo em tuas mãos, meu
destino e minha felicidade. Peço-te, porem uma coisa. Não quero ouvir um não
saído dos teus lábios. Bastará o silêncio para quer eu entenda. E então irei
tentar esquecer minha má sorte, coisa impossível, bem sei, mas farei que me
esqueça, silenciando minha desdita.
Serei como um rio
ou uma fonte que secou. Uma árvore que secou á margem do caminho por onde não
haverá de passar mais ninguém. Longe de teus olhos, serei como um cego que
perdeu o seu guia no meio de um deserto. Serei uma noite sem luar e sem
estrelas. Um pássaro sem asas. Serei o silêncio e a solidão.
- Pedro, não sabe
por que Deus me fez uma criatura tão diferente das outras mulheres. Tenho um
profundo desgosto disso. Olho-me no espelho e vejo que sou uma criatura
estranha. Sempre acreditei que todos olhavam pra mim, não por amor, mas por me
considerarem uma figura exótica e incapaz de amar alguém. Sempre fui por isto
uma pessoa triste e amargurada. E alem disto, uma tímida e inibida. No entanto,
tenho a impressão de que me considera uma moça vaidosa e cheia de orgulho;
quando o que existia era apenas a sensação de ser um objeto curioso, sem alma e
sem coração. E por que Pedro me vem dizer isto tão tarde. Poderias ter
amenizado minhas incertezas e meus sofrimentos. Sentia que quem me olhava era
simplesmente por curiosidade, curiosidade de quem vai a uma exposição para ver
um animal que apresenta alguma anormalidade. Um gato com duas cabeças ou um
coelho com cinco pernas. Agora, pergunto-te, que graça te atrai em mim. Não
será apenas curiosidade tua. Curiosidade que depois de vista perde o encanto? Olha
Pedro, não quero ser mais infeliz do que tenho sido.
- Também não
creio que desejas que eu venha a ser mais infeliz do que tenho sido. Levar toda
minha confiança em ti, como se estivesse correndo atrás de uma miragem.
Sonhando com o que me parecia inacessível, inatingível.
- Quanto queria
que alguém se aproximasse de mim para dizer-me ao menos que gostava de mim.
Mas, não, só fazia me olhar e sorrir uma coisa indefinida que me angustiava.
Pedro, não me diga mais nada. Apenas me diga novamente que me amas. Só isto. E
te darei uma resposta.
- Dizer que te
amo é muito pouco ainda. Quero dizer-te
que te adoro e quero casar-me contigo, antes que eu morra de amor.
- Então, aí tens
minha resposta, sem uma palavra. Um beijo de amor é mais sonoro, mais doce,
mais expressivo, mais comunicativo. E beijou-o como se estivesse se
transferindo, derramando-se no coração de Pedro.
- Agora,
Pedro sabe o que é a felicidade.
- E eu, o que
é deixar de ser infeliz.
Em 9-9-1986
*O conto faz parte do livro "Vidas Nordestinas", no prelo.