sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

CAVALOCÍPEDE

 

CAVALOCÍPEDE

 

Anfrozino era um cavalocípede, como chamava meu pai aquelas pessoas desregradas, animalescas nas refeições, completamente analfabetas na moral, estúpidos no raciocínio e por aí vai essa classificação...

O cara era metido a enxerido e a frequentar as casas sem ser convidado. Todos os domingos o bicho maquinava a casa de uma vítima para filar o almoço do domingo e as boas sobremesas como era costume nas boas famílias.

A cidade de Bela Vista, situada num recanto desguarnecido de estradas “reais”; as pessoas tinham ainda o costume de receber as visitas com uma boa recepção, seja quem fosse.

Povo esmerado na educação, nos costumes de antanho, famílias esmeradamente católicas. Povo bom e honesto, as vezes fácil de ser lubridiado, pois acreditava plenamente nas pessoas, pela primeira vez e principalmente nas suas as aparências e os bonitos palavreados.

Anfrozino se aproveitava disso e metia o garfo nos banquetes ao domingo ou dias santos. A casa na rua ou nos sítios já estavam escalonadas. Sempre dava um espaço grande de tempo entre uma e outra. Com isso esperava que a turma esquecesse da sua incomoda visita.

Sua próxima vítima seria a fazenda do seu Zeferino. Esperou o vendedor de leite da fazenda e avisou. Diga ao coronel que domingo chego por lá.

Domingo amanheceu com o céu lindo, sol manso, nuvens passageiras azuladas com fiapos brancos que pareciam cumulus. Antes de pôr os pés fora de casa, tinha o cuidado de olhar o céu em direção a sua vítima e ver qual vestimenta e acessórios teria que levar.

Nesse dia, achava que Deus estava do seu lado. Havia dormido muito bem, acordado tranquilamente e com uma fome de lascar. Arrumou-se e danou-se de mundo a fora com um cigarro no bico. Não sabia que a paciência e a raiva pelo desaforo do sujeito tinham se esgotado pela população que vinha sendo explorada há muito tempo. A combinação havia sido feita dias antes na saída da missa. Vamos empanturrar esse cabra de peia de comida pesada e carregada até na pimenta malagueta e outros temperos ferozes.

Enquanto Anfrozino jogava conversa fora com os empregados do sítio, a cozinha preparava o atentado violento, temperado com muita algazarra e da certeza da vitória contra o vilão das panelas. Dessa vez ele ia tirar o choco longe das redondezas, lá para as bandas onde o vento faz a volta e se dana para o fim do mundo. Sujeito metido a besta e pensa que a boa vontade é sinal de fraqueza.

Botaram os mocotós, a buchada de bode, o picado de porco, a feijoada do domingo anterior, a dobradinha, fizeram um pirão com a gordura dos mocotós, tudo requentado no grande fogão a lenha. Suco de jenipapo misturado com sapoti, arranjaram uma cana chamada poca ói e chamaram Anfrozino ao trabalho. Botaram o bicho no meio da mesa, a propósito, para que todos pudessem servir, como haviam combinado. Não era para ele parar de comer.

O tirinete começou com uma bicada da cana feita com o resto do caxixi destinada aos porcos. Engoliu e por cima ainda estalou os beiços.

- Sirva-se seu Zino, como era chamado na intimidade.

- Primeiro o dono da casa.

- Não aqui quem primeiro se serve são os convidados especiais.

Não se fez de rogado. Tome feijoada. Antes de terminar, dona zumira encheu o prato fundo com pirão de mocotó, Berlinda ao lado, completou com uma buchada e uma concha de maxixe fervendo. Seu Bento encheu o copo da pinga malvada. Nina perguntou se ele gostava de picado e sem poder falar balançou afirmativamente com a cabeça.

- Tome um copo de suco para ajudar a descer.

 Virou de uma só golada.

Quando menos se espera, Tonhão dana duas conchas de dobradinha.

- Dobradinha só presta com farinha seu Zino – disse Zefa, e sem que o guloso pudesse decidir, atolou duas conchas feita de alumínio, em cima do feijão branco com picadinhos de miúdos de boi.

O danado já começava a mostrar a força da cozinha de Mãe Véia. O suor começava a escorrer por cima das grossas sobrancelhas e caindo nos olhos.

- Seu Zino parece que está com fastio hoje, está mastigando devagar, não está gostando do pobre almoço?

- Tá bom demais da conta, isto é que uma fartura. Casa de gente rica é assim mesmo.

Terezinha chega da cozinha trazendo um jarro e diz – fiz só para o senhor esse ponche, e encheu o copo de uma meropéia da gota serena.

Outra caieba, mais uma concha da farta mesa, e Anfrozino não abria do tempo. Trouxeram bananas anãs, danou pra dentro umas quatro. Veio uma tigela de jerimum de leite, engoliu umas três fatias e nada do homem desistir.

- Levo as sobremesas, gritou alguém lá de dentro.

Pudim de leite, bolo de milho, doce de mamão com rapadura, mel de engenho e mais uma infinidade de petiscos.  Anfrozino provava de tudo e cada um era um elogio. Encerrado a ágape. O dono da casa convidou para repousarem nas redes lá no terraço.

Como fora tudo combinado e muito bem tramado, apareceu um meninote que começou a balançar a rede do convidado. No começo dos balanços reclamou, mas o dando do moleque nem ligava. E tome balanço. Seu Zino foi ficando meio enjoado, tentava levantar a cabeça da rede para reclamar, porem a barriga cheia não permitia e a coisa foi ficando feia. Deu primeiro uma tontura, começou depois um suor frio, na pança sentiu uns tremores diferentes e querendo subir para a goela, gritou: pare seu danado. Vou vomitar. Ajudem aqui minha gente que não posso sair da rede.

Era o que todos já esperavam. Levantaram o pantagruélico para debaixo de um pé de seriguela no terreiro e o sentaram num banco velho e saíram de perto. Começou o inferno para seu Zino, cada vomitada era um urro, um berro que até os cachorros correram.

De camarote a turma se deliciava com o quadro do bobo da corte do rei de espada.

O camarada cortinava abandonado no pátio gemendo e botando bezerros enormes.

- Me acudam pelo amor de Deus. Vou morrer minha gente, tenham piedade de um ser humano que está morrendo à míngua.

O dono da casa, de cima do terraço, fazia gestos com as mãos e a cabeça para não o acudirem. Porém dona Catarina sentindo piedade, pediu que fossem socorrerem.

Sentaram o bicho numa espreguiçadeira quase nas vascas da agonia. O danado do menino que fora contratado para balançar a rede, foi chamado para trazer o abano de palha lá da cozinha e ficasse aliviando a agonia que poderia se transformar numa indigestão cavalar e até o levar à morte.

Dona Catarina gritou para trazerem rápido um copo grande de chá de losna outro de erva doce, macela e de boldo.

Empurraram de goela a dentro, copo atrás de copo até o cabra começar a arrotar, sinal de melhora. Quando se viu mais aliviado, e dando grandes arrotos, olhou para um lado e outro, encarando todos os expectadores e disse cinicamente:

- Quem já se viu servi chá sem uma bolachinha! Povo sovino e sem coração!