domingo, 3 de janeiro de 2016

O ROÇADO


O ROÇADO*

João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

            Ananias saiu da escola porque não tolerava leitura, nem conta. Muitos pensavam que era burrice; e, a professora dona Marieta tinha pena do pobre coitado que havia nascido sem memória e sem inteligência. Era mesmo de fazer dó, aquele tapume mental. Por mais que explicasse as coisas repetidamente era como se estivesse pregando no deserto. Nem uma lição certa. Na tabuada pior ainda. Baralhava tudo, metia os pés pelas mãos, confundia os números mais simples.
            Seu problema era sair da escola, e, cuidar daquilo que lhe apetecia. E como nada lhe entrava no bestunto, deixou as aulas de dona Marieta e as caminhadas diárias do sítio do pai à cidade.
            O caderno, cartilha e a tabuada lhe pesavam demais. O que queria mesmo era ter o seu roçadinho de milho, feijão e melancia. Plantar algumas fruteiras e viver sem o atropelo da escola. Não podia haver coisa mais enjoada do que a escola. Decorar aquelas garatujas, dar as lições e sem atinar para que; já sabia falar e dizer o que lhe convinha. Todo mundo lhe entendia. E então, para que a tal leitura. Burrice legítima. Era coisa só e só para quebrar a cabeça. Para trabalhar e mais tarde arranjar uma namorada, não necessitava de letras.
            O pai estava ali, sem saber sequer assinar o nome e tinha propriedade, casa para morar, um bocado de vacas, cabras e ovelhas. E então? Ter que agüentar a chateação de dona Marieta, com aqueles olhos miúdos e lábios finos e secos, dando-lhe gritos, mandando-o estudar. Porque não procurava outra coisa para fazer. Além disso, dois mil réis por semana que saía do bolso do pai. Seria muito mais certo que os desse a ele para comprar doce-seco e cocada. Isto sim valeria à pena.
Quando saiu da escola, benzeu-se às escondidas e rendeu graças a Deus.
            - Pai me dê um cantinho de terra para fazer meu roçado. Lá naquela terra nova da broca. Não tenho cabeça para os estudos, mas talvez dê para a plantação. Eu mesmo quero é plantar, limpar e fazer a colheita. Vou ganhar dinheiro.
            - O meu gosto e de tua mãe é que estivesse na escola, pra não cresceres burro como o teu pai. Não sei ler um bilhete.
            - O senhor não lê, mas fala, diz o que quer. Tem terra, gado, roçado e tem muita gente que sabe ler, sem ter um pau para dar num gato.
            - Vem cá, Ananias. Conta mesmo à verdade. Não acredito nessa tua falada burrice.
            - É pai. Sou burro não. Não gostava daquilo. Só servia para atrapalhar minha vida. Tinha tanto desgosto. E não é assim mesmo quando a gente tem que fazer alguma coisa que não gosta.
            - Não acredito nesta tua roça. Estudar que não pesa, largastes pra lá, quanto mais o cabo do freijó.
            - Tenho forças nos braços. A cabeça é que se cansa com aquela letraria ingresiada.
            - Pois bem. Vais ter o teu roçado e num local dos melhores. Vamos ver a tua disposição.
            Ananias enfiou a enxada na terra. Preparou a rigor para semeá-la quando as chuvas chegassem. Tudo limpinho e ciscado. O pai ficou até com inveja do trabalho do filho. Era só esperar pelas trovoadas. As sementes estavam reservadas e catadas. Sem podres e sem chochas. Deu um solzinho nelas para aquecê-las. Deveria ser bom. Todo mundo gosta de um pouco de sol. Teve vontade de semear no seco, mas poderia chover pouco e não dar para nascer. Era melhor mesmo aguardar. Havia de chover forte para molhar a terra, bem molhada.
            Ananias acordou certa noite com o estalo do trovão e o aguaceiro caindo. Bem sabia que não faltaria chuva para plantar o seu primeiro roçado. Havia de mostrar que renderia mais do que a Escola de dona Marieta, ensinando a ler e escrever gastando o dinheiro do pai.
            A roça iria ver. No fim do ano teria dinheiro para comprar sapatos novos e se empanturrar de doce-seco e aluá. Oras bolas, seria outra vida. De que diabo lhe serviria aprender a somar e multiplicar sem um tostão no bolso. Somar e multiplicar o quê? Só mesmo a cabeça de dona Marieta poderia sair tal idéia.
Entupiu a terra molhada de sementes de milho, feijão, melancia e jerimum caboclo e de leite. Quinze dias depois já o chão mostrava as carreirinhas de suas preciosas lavouras.
            Aquilo sim era escola. Quando estivesse com milho maduro, levaria umas boas espigas a professora que não plantava nem coentro e tinha que comprar tudo, com toda sua sabedoria. Poderia até passar fome ou priva-se de muita coisa. Ele não. Sem cartilha e sem tabuada, tinha para comer e vender. Dava-lhe vontade de perguntar-lhe onde estava sua produção. Uma fava! Ganhar um dinheiro magro para meter bobagens no quengo dos bestas.
            A coisa era mesmo plantar, ter roçado repleto de milho e feijão, encher o depósito, ter para dar e vender. O milharal estava pendoado e o feijão canivetado. Coisa de fazer gosto. Mas, inesperadamente as chuvas pararam. Ananias assustou-se. Andava caldo e ouvia as lamentações do pai e dos vizinhos.
            - Parece que vai se perder tudo. Mais uma ou duas semanas de verão e lá se foi tudo quanto “Marta fiou”!
            Ananias não dormia direito. Temia o fracasso e lembrava-se de suas intenções para com a dona Marieta. Nem uma tamboeira de milho e nem leitura. Um desastre dos diabos. E não choveu mesmo. O cariri era isso assim. Preparar a terra, semear, tratar da lavoura e perder o trabalho. O que sobrava eram apenas os retraços para o gado comer.
            Ananias não tinha gado. Andava triste, macambúzio, sem dizer nada a ninguém. Fora de má sorte. Dona Marieta continuava dando as suas aulas e formando a meninada para o dia sete de setembro e nas procissões da Igreja.
            Ananias vestira roupa nova porque o pai lhe comprara. Teve inveja dos ex-colegas uniformizados, marchando pelas ruas principais da cidade. Olhou para as mãos e estavam grossas de calos. Metera a mão no bolso e tinha apenas as moedinhas que a mãe lhe dera para os doces secos e o aluá. Por falta de uma chuvinha à-toa estava ali deprimido, de cara pro ar.
            No desfile iam faixas em letras graúdas. Não sabia o que elas diziam. Era como estivesse olhando para sua ignorância. A enxada não lhe deu milho, nem feijão. As abobreiras não vingaram. Os alunos que desfilavam, o olhava com um rizinho safado, e zombeteiro. Traduzia aquilo como se estivesse chamando de burro.
            - Olha aí, meu filho. Bem que poderias estar marchando também. Não é tão bonito? Sabem ler, sabem contar e mais tarde poderão até se firmar. E tu, nem estudo nem lavoura. O que pensas disso?
            - Vou plantar de novo. Há de chover!
            - E porque não faz as duas coisas, menino teimoso? Queres te criar bruto como um toco de roçado?
            - Não mãe. Não gosto de escola e não aprendo nada. A cabeça não dá.
            - Dá sim. Bastará um pouco de esforço e boa vontade. Poderás não ser dos primeiros alunos, mas pelo menos não ficarás como um jegue que só sabe rinchar, não muda o tom. Teu pai fica sempre acabrunhado quando pedem para assinar qualquer coisa. Tem que botar o dedão melado de tinta e exigem testemunhas. E já me pediu para lhe ensinar a assinar o nome. E vai aprender. Deixa essa história de roçado, numa terra que só chove por acaso. Pelo menos, muda para criar algum bicho que coma o mato do campo. As poucas chuvas criam alguma coisa.
            - Mais uma vez só, mãe. Se não der certo volto para a escola de dona Marieta.
            E no ano seguinte estava o roçado todo plantado e as lavouras crescidas. Mas as chuvas foram escassas e produção mixurucas. Não pagava o trabalho e as sementes.
            É, mãe.  A senhora tinha razão. Vou para a escola. Aprender qualquer coisa para ter ao menos um emprego.
Ananias matriculou-se. A turma comentava as escondidas. Chegou o jerico, o tapado. Pelo menos será uma distração. Dona Marieta vai ficar fina para enfiar qualquer coisa naquela cabeçota de pedra de mármore.
            Mal sabiam que Ananias não era como pensavam. Não aprendera antes muito de indústria. Gostava era da vidinha do campo, com a cabeça cheia de doces ilusões. O destempero das chuvas tirou-lhe a graça.
            Somente a experiência despertaria para a realidade. Que sabia das coisas era mesmo quem já havias passado pela vida prática. Não acreditara nos conselhos dos pais, e atolara-se até as orelhas. Como havia muita gente tola e pretensiosa.
            Decorrido o primeiro mês de aula, Ananias causava inveja aos colegas. Tinha as lições na ponta da língua e era mestre na tabuada. Dona Marieta estava impressionada. O burroíde de dois anos atrás dava quinau em todo mundo. Certamente dera também um estalo no quengo, como acontecera com o padre Vieira. Ananias não se orgulhava do que sabia e aprendia. Comportava-se com a maior naturalidade, como se não houvesse mudado. Não tinha pretensão de saber mais do que os outros, mas destacava-se e recebia elogios de dona Marieta. A roça lhe ensinara outros caminhos. Boa memória e inteligência não lhe faltavam. Achava antes, que se poderia viver melhor sem as tais letras. E o que lhe aconteceria depois. O pai destripava-se, mas haveria de formá-lo em alguma coisa. E mandou-o para outros colégios e para a escola de farmácia. Depois do diploma, abriu uma botica, farmaciazinha com poucos vidros e tinturas para manipulação.
            O dinheiro foi entrando e a botica foi crescendo. Especializou-se em curativos e injeções. O povo pobre não procurava médico. Corria para o Ananias e era certa a cura. Dois anos depois estava com um casarão repleto de drogas. Lia, lia , lia e formulava remédios para as pessoas pobres. Juntava dinheiro no baú de dona Amélia, sua mãe.
            Chegaria ao que idealizava comprar; uma fazendola e criar gados: bovinos, caprinos e ovelhas. Fazer, talvez, nos bons invernos, suas roças de milho, feijão, jerimum e melancia. Haveria de acertar algumas vezes. Tinha um plano. Comprar 12 novilhas e um burrinho para começar. Uma dúzia de ovelhas e uma dúzia de cabras com os respectivos reprodutores. Queria e fazia questão de ter um pai de chiqueiro especialista no bodejar... E um dia teria de levar o milho verde de sua roça para dona Marieta. Em casamento nem se falava. O bom mesmo era viver com os pais e a irmã que a seu contra gosto já andava noivando.
            Ananias considerava a vida de solteiro a melhor forma de viver. Nada de atrapalho de filhos e depois poderiam não se entender bem e teria que dar grande desgosto aos pais. Tinha o exemplo do seu amigo Fulgêncio, casara-se por amor, segundo dizia, e andava crucificado.
            A mulher, apesar de honesta, era exigente e ciumenta até a raiz dos cabelos. Tinha que atender em casa na hora certinha e que Deus o livrasse de ser apanhado conversando com alguma dona, mesmo das mais respeitáveis. Sua mulherzinha vivia espoletada e mordida. O pobre do Fulgêncio anda sob um controle de cachorro amordaçado. Até para sair com algum amigo, tinha que ser bem selecionado. Andar pelas pontas da rua, mesmo a negócio, era um precipício.
             Em sua casa comercial era fiscalizado constantemente. A empregadinha doméstica era mandada freqüentemente a loja para certificar-se se o “bicho” estava lá e com quem. Era um Deus no acuda.
            - O que anda fazendo menina?
            - Foi dona Florinda quem mandou saber se o senhor estava aqui.
            - Diga a ela que não estou e que nem sabe onde fui. E veja lá. Se eu te pego!
            - Pronto, patroa. Seu Fulgêncio não estava e nem se sabe para onde foi. Está na loja apenas o empregado. E acrescentava por sua conta e risco: “Parece que foi uma dona quem mandou chamá-lo...”.
            - O que? É hoje que bode dá leite e macaco enjoa banana...


*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.

NINA


NINA*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/4/2003)

Nina a mais velha das três irmãs, teve que assumir a direção da casa, quando o pai fugira com outra mulher e a mãe entrevada em cima de uma cama, contava os dias de vida.
Nascida e criada na roça Nina e as suas irmãs não tinham outra saída se não fazer o pedaço de chão que lhes ficara, produzir para manter as quatro.
Uma casa de mulheres exigia das três esforços quase sobre humanos. Quando o dia amanheceu sem o pai e a mãe em cima da cama, sem ao menos saber bem se ainda existia, Nina reuniu as irmãs, já mocinhas e narrou o que havia de fazer.
Lina, a mais moça, estava visto, não poderia se afastar de casa para cuidar da mãe e da cozinha.
As outras duas, Nina e Ieda, enfrentariam a vida do campo, as coisas externas em si, o pequeno rebanho de cabras, a criação de galinhas, a vaquinha de leite e o leitão que grunhia no chiqueiro de toras.
Na despensa não havia mais do que feijão, farinha e um pouco de milho, que teriam de render o máximo, em quanto à vaquinha crioula desse leite, não faltaria alimento para dona Santina, o que de certa forma já as tranquilizavam.
Lina que cuidasse da casa e zelasse pelo pouco que havia guardado. Dali por diante não se venderia uma cabra, não se mataria mais uma galinha poedeira. O mais importante era aumentar o rebanho. Mais cabras, mais galinhas, mais leite, mais ovos e frangos.
A roça mesma era um quase nada. Mas dava para não faltar milho, feijão e farinha. O essencial era a criação. Dava menos trabalho e bode não se preocupava muito com a seca. Até pelo contrário, não gostava de chuva, ficava tudo logo amontoado ou no alpendre da casa, encolhido. O casebre ao lado da casa de morada servia para os ninhos das galinhas chocas. E daí saía às ninhadas de pintinhos alimentados com farelo de milho e um pouco de pirão de farinha e leite de cabra. O maior cuidado era com gavião peneira que piava no alto do céu, espreitando as vítimas. O vigilante era o galo que, quando ouvia o piado do gavião dava logo sinal para que a pintalhada se refugiasse debaixo das asas das galinhas ou alguém disparasse tiros contra eles.
Tinham que plantar mais milho e um pouco mais de mandioca para prevenir alimento. Ovos para deitar e chocar, somente das melhores galinhas. As maiores e mais poedeiras. Precisavam vender ovos todas as semanas e queijinhos de coalho de leite de cabra, frangos quanto estavam no ponto. O terreiro se povoava e no chiqueiro das cabras o pai de chiqueiro fabricava cabritos.
Sábado de madrugada, madrugada silenciosa e triste, a dona da casa deixou de respirar. O último suspiro acabou com o tremendo padecimento. Mesmo doente na cama, imobilizada e muda, dona Santina era como se fosse a viga mestra da casa. As moças, então, sentiram-se sós e sem o teto da casa. O pai não sabia onde andava e preferiram não vê-lo. Quem deixa uma pobre mulher paralítica em cima de uma cama, de um catre, e três filhas mocinhas e inexperientes, não merecia sequer uma lembrança. O que desejavam é que não mais aparecesse, nem mandasse notícias. Mas não se enganassem, se um dia tentasse voltar, ali não ficaria. A terra que possuíam e aquela casinha rústica era herança de sua mãe. Felizmente nunca apareceu e tempo depois correra a notícia de que havia sido preso para não mais sair da prisão. Estava onde merecia estar. Deixara de ser pai.
Das três, nenhuma tinha tempo de pensar em assanhamentos e era bem verdade que o exemplo da casa as assustava. A mãe era uma Santa. E padeceu tanto. Casara-se cheia de sonhos e esperanças e o casamento fora aquela ruína.
Nunca um namorado ou um noivo revelava o que realmente era. Todo bonzinho, um santo, depois botava as unhas de fora. Afinal de contas estavam vivendo tranquilamente. Contavam além do mais, com os tios e tias maternos que não esqueciam. Gente da raça do pai que se ficasse para lá, pois sempre acharam que tudo acontecera por falta de amizade e carinho. Agora deveriam estar sabendo quem era e que é o bonzinho do parente.
Três irmãs, três companheiras e amigas de todas as horas. Nas atividades campestres e caseiras, entendiam-se e até resolviam tudo de comum acordo. Não se censuraram, completavam-se. Mas até quando permaneciam sem pensar além dos seus afazeres cotidianos?
Decorridos o luto da mãe, um recolhimento sentimental, decidiram sair um pouco, comparecer à cidade, as festividades da padroeira, usufruir um pouco do ambiente social. O dinheiro economizado, já permitiria despesas extras. Já era tempo de sair do dia a dia, o que era um sinal velado de que algo novo sacudia as asas pra voos diferentes. Aquela ansiedade de sair, passear, comunicar-se, fazer amizades, revelava o despertar de sentimentos novos.
As festividades da padroeira se avizinham. Teriam que mandar fazer vestidos novos, comprar sapatos da moda, e perfumes. Os cabelos longos que ainda usavam, fora da moda, teriam que ser aparados à altura dos ombros, o que elas mesmas o fizeram. De pintura não careciam. Coradas como uma romã bem madura, queimadinhas de sol, dispensava qualquer artifício. Durante a festa iriam ficar em casa de dona Naná, velha amiga de sua mãe e que lhes oferecia a casa. Chegaram à véspera. Deram logo uma volta pela cidade, de roupa um tanto colada como era a moda de então. Viram os últimos preparativos da festa e não tinham dúvidas que chamaram atenção. Afinal de contas, não eram feias e sua beleza natural despertava curiosidade. E como se sentiam admiradas, lamentavam intimamente o tempo que já haviam perdido. Mas, afinal todas as coisas têm suas oportunidades. Certamente se tivessem sido sempre vistas teriam se tornadas vulgares. E como era comum ser acompanhada de pai, mãe ou irmãos, chegaram a julgar que deveriam ser moças da capital, onde os costumes já eram bem mais evoluídos. Os decotes um tanto atrevidos e pedaços de pernas a mostra, causaram má impressão a muitas mulheres ciumentas. E até algumas chegaram a comentar que deveriam ser mulheres de vida fácil.
- Suas desavergonhadas. Pois não era. Aquelas mangas curtas, as blusas modelando os seios com aquele decote que dava para sonhar com eles, não podiam ser coisa para gente direita. O certo é que os homens gostavam o que era pior.
- É a moda minha comadre. Nas cidades grandes ninguém ainda mais se enrola de pano das pontas dos pés, ao gogó.
- Que moda que nada! É, é falta de vergonha. E o jeitinho das três não engana ninguém. Não estás vendo como são atrevidas? Olham para os rapazes e para qualquer homem como se já os tivessem convidado para a cama. Um desaforo. Veem essas coisinhas para desassossego das famílias honestas. Vão ver o reboliço que as três vão fazer durante a festa. Não é possível que o vigário não as ponha para fora da igreja se tiverem a coragem e falta de vergonha de botarem os pés na casa de Deus. Quem tiver seu marido que se cuide. Não irei tirar os olhos de cima do meu.
- E estás por ventura, pensando que elas vão sobrar para a marmota do teu marido.
- Ora, como és inocente, essas qualidades de gente quer é dinheiro. Está lá se incomodando com cara feia e bonita, se é novo ou velho. Quer é chupar as notas. E essas três piranhas, novinhas como são e atrevidas como andam, vão encher o papo. Vou prestar a atenção no padre. Nossa tranquilidade depende dele.
E aconteceu a coincidência. Padre Camilo encontrou-se com as três bem ali no virar do beco e bem as vistas da dona Rosário e dona Jandira. E as meninas fizeram questão de beijar-lhe a mão. A bem dizer nunca haviam visto um sacerdote assim de tão perto. E o encontro prolongou-se. Padre Camilo estava inquieto e risonho. Não tirava os olhos das três. Não as devorava porque não podia, mas bem que se via que tinha vontade. E crivando as moças de perguntas, chegou onde queria.
- Ora minhas filhas, não percam as rezas. É muito agradável ter gente nova na cidade, abrilhantando as festividades. E é engraçado, morando tão perto, as vejo com satisfação pela primeira vez. Não se vive só do trabalho. Festa alegra o coração da gente e dos outros.
- Mas sempre fomos muito atarefadas. Somos sozinhas, sem pais, sem irmão homem. Só agora tivemos uma folga e pretendemos não perder mais festas e as missas dos domingos.
- Isto! É assim que moças ajuizadas se comportam. A primeira vista pensei que fossem da capital. Tão bem vestidas na moda como estão, não dava para pensar outra coisa. É necessário mesmo ir acabando com essas velharias de andar enrolada de pano parecendo uma marmota. Quero revê-las. Se tiverem um tempinho visitem a casa paroquial. Ponham-se mais próximas de Deus. Espero vocês. Até breve.
As meninas saíram, enquanto o padre Camilo, absorto e parado olhava-as caminhando, rindo e se voltando para ele.
- Estás vendo aí como são as coisas. Padre Camilo gostou das meninas.
- Que nada. Deve é ter passado um descaradela nas desavergonhadas.
E quando as três se aproximaram dona Sofia às chamou.
- Venham cá, desejamos falar com vocês.
- Chamei-as para conhecê-las e admirar a elegância dos vestidos e das blusas.
- Ora é tudo tão simples, tão amatutado...
- Vocês que pensam.
- São por certo da capital.
- Somos sim. Gostamos de conhecer as festas do interior. Quase não temos outra coisa a fazer. É muito lucrativo e gratificante. Logo que passar as festas, estaremos de volta.
- E posso perguntar onde estão hospedadas? Gostaríamos de revê-las.
- Não, não valeria à pena. Nós estamos lá na casa de uma dona na entrada da cidade.
E as três se foram, abismadas com a curiosidade das duas velhotas.
- O que é que eu te dizia minha comadre. E viste como quase aparece a saliência dos peitos. Além disso, estão hospedadas na ponta da rua, frisou as palavras. - Três quenguinhas legítimas. E ainda te enganas? Viste o padreco como estava derretido? Acabou-se a vergonha e a seriedade. O mundo está mesmo nas últimas. Qualquer dia dá um estouro e vai tudo pro beleléu.
- Pois não é, as três bichotas saem lá da capital e veem cavar a vida aqui. Nem Deus dá mais jeito. Quando esperava que seu vigário corresse com elas, o que fez foi palestrar quase meia hora e com aquela cara de furão, mais cínica da vida. E olha só, ainda está acolá olhando na direção em que as três piranhas vão. E espia mesmo, está indo em direção a elas.
- Com certeza vai chamá-las a ordem.
- Pode ir é chamá-las nos peitos.
- Que é isso minha comadre. Assim também é demais. Não tem medo que a língua caia... Não creio no que dizes. Em minha opinião, são três moças direitas.
- Direitas coisas nenhuma. Então, três moças direitas sairiam da capital para uma cidadezinha de interior só para conhecer a festa da padroeira. Duvido! Até parece que és cega de guia. Tenho pena de ti.
- E se fossem como queres, que mal te fazem. Deixa que se divirtam e divirtam a rapaziada. Nada de mais. Por que não te preocupas assim com a “pensão de mulheres” da dona Marreca? Está apipado de mulheres, o teu marido não sai de lá. Segundo me dizem e tu nem enxerga nada. E lá só tem mesmo mulatas vagabundas, mal vestidas e sujas. Nem chega aos pés daquelas três meninas, as quais se eu fosse homem correria atrás.
- Meu marido, o Pedrinho, nos bordéis? É uma infâmia. Ali está a honestidade matrimonial em carne e osso. Essa não, se o teu foi assim, muito bem, o meu é homem da maior confiança.
- Ainda bem que é uma conformada, batizada e vacinada!
- Ah! Se todos os maridos fossem puros como o Pedrinho. Nem me bata o papo!
- Um dia saberás a joia que tens em tua cama. Será que nunca sentisses a inhaca das bichas? Cheiro enjoado de pó barato Patchuli. Ou não tens faro? Veras mais tarde quem são as três meninas e terás remorso. Remorso também de suspeitares do vigário.
- Está aí. Posso errar nas moças, mas no padreca, nunca. Conheço demais aquela abelha, que só tem de padre a batina e o latim. Não dou um vintém pelas missas que reza, e nem os dez reis pelas confissões. Já vi que é mesmo uma inocentona. Tens olhos, mas não vês, tens ouvidos, mas não ouves. Como é que se é tola assim, meu Deus. Fica da meia noite em diante e espreita e me dirás depois.
- Nina, Ieda e Lina em minha opinião são três moças apenas mais evoluídas do que essas matutas daqui. Nem tenho, aliás, qualquer dúvida. Andam pela cidade, comunica-se com quem vão encontrando, mas não se observa um gesto irreverente, por ventura, o que já notastes de escuso ou de duvidoso em qualquer uma das três? Poderão não ser umas santinhas, mas também não são moças transviadas. Aqueles decotes um tanto atrevidos, e o que diabo é que tem demais mostrar mais um pouquinho o corpo? Não andam de peito de fora, não mostram os joelhos e então?
- E aquela roupa colada mostrando as curvas do corpo. Queres mais?
- Ora, aquilo é que lhes dá uma graça extraordinária. Estás é com inveja. Tens um corpão de almofada de fazer renda e tu ficas com ciúmes. O bonito é para se ver, é lógico. Como não tens uma curva a não ser nesse pandeiro de tanajura, deves mesmo esconder ou pelo menos disfarçar.
- Que dizer que eu sou uma bruxa velha.
- Não, isto não. Apenas um fardo de lã. Imagina, tu ou eu com um vestido colante, que marmota. As três moças, sim, têm o que mostrar. Pouco pano e muitas curvas bem traçadas. Parece até que estás apaixonada pelas moças.
- Não é paixão é admiração e saudade dos meus tempos de moça. Tive um corpo igual ao delas, só que era proibido mostrar. Quando me casei só se vendo o corpo que eu tinha. Hoje sou um balão. Teu corpo eu sempre conheci, não sei como o Pedrinho te quis. Pedrinho ou outro qualquer. Primeiro não tinhas cintura, coisa que dá tanta graça as mulheres. Eras coisa para quem gosta de banha de barril.
- Sabes de uma coisa, vamos mudar de conversa, senão terminarás me transformando num hipopótamo. E uma coisa eu te digo. Tinha um corpo meio desajeitado, mas fui muita mulher. O Pedrinho que o diga. E é o que vale, o que voga. O mais é conversa fiada. Não adianta ter um corpo de ninfa e ser um bloco de gelo, uma comida como bolacha de resguardo, água e sal. Tenho vaidade dos meus temperos. E por isso, tenho o marido fiel que possuo; o Pedrinho de toda a confiança.
- Fica-te com ele, o meu nunca foi essa pureza que é o teu. Sabia disso, mas sabia também que tinha um homem em casa.
- Que queres dizer com isso? Que o Pedrinho não é homem? Tu não conheces o Pedrinho que estás vendo.
- Eu não conheço e Deus que me guarde, mas tem muita gente que conhece. As negras da pensão, por exemplo.
- Não adianta, pois não acredito. Vou morrer confiando nele. Sempre me chega a casa com um cheirinho diferente para me agradar.
- Já vi que não entende disso. Esconjuro-te comadre. Até amanhã. E não se fala mais nisso. É mesmo de não se acreditar. O Pedrinho confia tanto em tua burrice que nem toma banho depois de paleio com as negras.
- Quem te disse? Trabalha arrumado na loja até tarde, depois da ceia, toma banho lá mesmo e lá mesmo se perfuma. É assim que um homem decente faz. Com um daquele me casaria dez vezes.
- Há muita forma de ser feliz...
A festa começou. A rua da matriz cheia, cheinha de gente. Gente da cidade, gente da roça, dando encontradas. Pavilhões, jogos, leilões, namoros e ciumadas.
Nina, Ieda e Lina volteavam sem parar. Blusas com um pouco mais de decote, um pouquinho mais de pernas à mostra e mais justas.
Chamavam a atenção. Entravam na igreja daquele jeito e padre nem dava bolas. Para dona Rosário aquilo era o começo do fim do mundo. E era bom mesmo que desse um estouro para acabar com a pouca vergonha. Para que continuar se não havia moral. E o reverendo também metido no conluio. Como podia permitir que aquelas três bichotas afrontassem impunemente a sociedade local, sem protesto, sem um grito de alarme. Santo Deus.
Na segunda noite de festa, lá estavam as três no pavilhão da igreja, bem sentadinhas, tomando guaraná e desafiando o decoro. A rapaziada rodava as três à distância, ainda travadas no namoro. Namoro de olhares e gestos. O padre, que era padre, tinha carta branca. Puxou uma cadeira e sentou-se ao lado das três. Desejava conhecê-las de perto. As meninas já não lhe beijaram a mão. Apenas sorriam com um gesto de satisfação.
A rapaziada ficou enciumada. Tinham os namoradores que encostar também. Aproveitaram a presença do vigário, que era a pessoa insuspeita e amiga de todos para uma aproximação. Era o que elas queriam.
Dona Rosário ficou paralisada. Quase lhe dava um troço. Fez o pelo sinal duas ou três vezes disfarçadamente e ficou na observação. Esperava a qualquer momento o estrondo do fim dos tempos. De guaraná passaram a cerveja e elas gostaram da novidade. Era dia de festa e tudo se permitia.
- Está aí o que eu dizia. Uma mulher decente não toma cerveja assim de público, mas as desavergonhadas bebem com os homens. Umas viciadas das pensões de mulheres à-toa.
O padre levantou-se para fiscalizar a renda de seu pavilhão. A rodinha de gaiatos permaneceu na maior euforia. E aquilo tudo justamente no pavilhão da Santa Igreja Apostólica Romana.
Desse dia em diante, as meninas jamais ficaram sós e sempre bem acompanhadas. Os namoradores tentaram separá-las.
- Seria mais agradável uma conversa a sós, par a par. Aliás, - deviam ter experiência disso.
- Nas capitais não se estranha isso!
- Sim, sim, sim, mais nós três somos inseparáveis. É um hábito. O que se conversa separadamente conversa-se em grupo.
Foi um desapontamento. As meninas ou eram umas viciadas sem pudor ou eram umas santas. E agora, como decifrar o mistério daquela união? Pelo jeito não podiam ser muito sérias. Aquela forma de vestir dava a entender que eram moças liberais e, no entanto, em ação era outra coisa muito diferente.
Daquela forma não tinha como avançar o sinal, a menos que ficassem os seis num grupo isolado, fora da vista dos demais. E foi então que tentaram sair para local apropriado. Mas não era possível que fossem tão cínicas que pudessem ser casadas coletivamente. E naquela dúvida danada sugeriram um passeio.
- Nada disso. Viemos foi assistir a festa e aqui estamos otimamente. Por que saímos dessa ambiente tão agradável? Aqui se conversa nos conhecemos melhor e sempre tivemos medo da língua ferina de certas pessoas. Nos veem sair e ficarão logo maldosas. – Aonde vão aquelas sirigaitas? Chegam de fora e estão por aí soltas. Estão vendo aí? Já ganharam o mundo com três espertalhões. Para onde foram? Já se sabe - as coisas devem ser feitas discretamente, fora das vistas maldosas da sociedade.
Parecia claro que o caminho estava aberto. Dependia somente de condições adequadas. Marcariam um encontro para o dia seguinte. Levariam as três para a pensão de dona Florinda, velhota discreta e além de tudo muito séria. Ninguém desconfiaria. O golpe estava armado.
- Então, amanhã sairemos, não é assim? Marque a hora.
- Hora pra quê?
- Para se dar umas voltinhas. Iremos para o local conveniente, onde somente nós sabemos.
As três se olharam. Nina falou:
- Pelo que percebemos, estão preparando uma armadilha. Talvez estejam pensando que somos umas doidinhas de programas, não é? Enganam-se com nossa aparência. Somos moças direitas, de família e nosso entretimento é outro bem diferente. Obrigado pela companhia e até breve. Queremos namorados, mas, gente decente como nós. Queiram fazer a gentileza de nos deixar a sós. O que vocês pretendem tem outro endereço.
Sem jeito para uma justificativa ou desculpa, desapontados, os três saíram de rabo entre as pernas, remoendo e descontentes.
Os circunstantes que estavam de olho neles notaram o fora e então crescia o mistério.
Dona Rosário chegou a assusta-se. Alguma coisa andava errada. Possivelmente os moços que procuravam moças direitas, constataram que eram três piranhas e saíram do jogo. E tiveram sorte. Antes morrer de sede do que afogado. E nesse exato momento, o padre se aproximou da mesa das meninas.
- Então, minhas filhas, que tal a festinha da padroeira?
- Ótima, padre!
- E os moços que estavam com vocês? Deixaram-nas sozinhas. Coisa de matutos de aldeia.
- Não seu padre. São três patifizinhos. Pensavam que éramos gente à toa. Queriam nos levar por aí a fora e pedimos para que se fossem.
- Mas minhas filhas, que atrevimento e falta de pudor. E olhem que são três das melhores famílias da cidade. Quer dizer que fizeram propostas indecorosas?
- Exatamente. E nos tiraram o prazer da festa. Estamos dispostas a voltar para nossa casa.
- Não, não se precipitem. Um caso não representa o todo. E se saírem, acaba-se a festa. Mas afinal de contas, as meninas vivem sozinhas?
- É. Só nos três. Mãe, Deus a levou e pai, que havia nos abandonado fugiu com outra, deixando mamãe em cima de uma cama. Dele não sabemos mais notícias.
- E o que fazem, afinal, na capital? Vivem de rendimentos? Desculpe a indiscrição.
- Não há porque se desculpar. O senhor é um confessor para nós. Mas seu vigário, nunca fomos de cidade, nem grande, nem pequena. Somos três moças da roça daqui do município mesmo. Quem pode haver pensado nisso?
- Toda gente. São tidas como da capital. E não foi isso que me deram a perceber                          - Queríamos somente ver o comportamento das pessoas.
- Chegaram até a pensar que eram três moças levianas. Imagina...
- Pois é, somos daqui de perto, não saímos do sítio, só agora com a vida arrumada viemos à cidade.
- E nem pensam em se casar?
- Pensamos sim, senhor.
- Mas veja o que nos aconteceu no primeiro ensaio. Por isto desconfiamos dos homens. E o meu pai, só foi um exemplo de botar sal na moleira. E os três rapazes que nos faziam companhia só pensavam em tirar proveito das mocinhas extrovertidas da capital... Mas erraram o salto, somos da roça, mas não somos tolas.
- Afinal não temos pressa, não cairemos em mãos de aventureiros. Pois sim. Mocinhas da capital, fáceis no relacionamento e fácil nos amores.
Dona Rosário espreitava de longe e fazia suas conjecturas. Escaparam dos três inexperientes, mas não irá escapar das unhas treinadas do reverendo, o velho gavião peneira.
- Não podemos atinar qual a razão pelo qual nos supuseram moças da capital. Até parece anedota de “almanaque da saúde da mulher”.
- Acho que poderei decifrar o enigma. Basta que comparem a maneira de vestir das moças daqui com a elegância de vocês. Blusas baixas em cima e saias altas em baixo, como dizia um poeta mineiro. Ademais essas roupas colantes, revelando as formas do corpo. Aqui ainda tem acanhamento de usá-las quando, no entanto, são tão elegantes e atraentes. Coisas de gente evoluída, não acham? Agora, uma coisa que gostaria de saber. Porque se trajam diferentemente das outras moças?
- Não foi iniciativa nossa. Nem sequer acompanhávamos essa coisa de moda. Foi à costureira quem escolheu os modelos, e disse que era a moda das capitais. Pensávamos que na última moda estariam todas. Foi somente isso.
- Pois acertaram meninas. As moças da terra, diante de vocês parecem umas matutas de pé de serra. Não faz mal nenhum mostrar um pouco das coisas belas que se tem e que andam tão escondidas.
- O senhor achar?
- E por que não. Essa panaria que usam enrolando as pessoas do pescoço ao tornozelo é uma velharia. Da próxima vez encurtem mais em cima e embaixo.
Dona Rosário a estas horas já estava bem perto dos quatros, capiscando a conversa do padre Camilo. Dava-lhe gana de furar-lhe os olhos e corta-lhe a língua. Pois não era, insinuando as meninas para o nudismo e o dessavergonhamento.
Não tinha mais em quem confiar. Esperou que o padre Camilo saísse e aproximou-se das moças com ares angelicais.
- Pensava que fosse da capital. Com esses decotes e pernas de fora, cheguei até a pensar que não fossem moças direitas. E como conheço a aldeia e os índios, poderia dar-lhe uns conselhos. Primeiro não confiem no padre Camilo. Aquilo não é flor que se cheire. Segundo, vistam-se igualmente as outras moças, para não aparentar transviadas. Aposto que aqueles moços que estavam com vocês lhe fizeram propostas desonestas. Os gaviões andam soltos. Essas roupas muito avançadas despertam dúvidas e desejos.
- Os homens só pensam nessas coisas. São uns canalhas. Como é mesmo o nome da senhora?
- Rosário.
- Pois Dona Rosário, não há perigo. Essas coisas que a senhora pensa não acontecerá com a gente. Sabemos o que queremos. Pra nosso lado pode vir até o Padre Mestre e o Cavalo do Cão. Temos corpo fechado. Somos três matutas do roçado, sem casamento no cartório e no vigário, é inútil qualquer reinação. Sabemos nos defender. Já mandamos três passear e estamos vendo claramente a intenção do reverendo. Achamos até graça. Com a gente ninguém pisa milho pra fazer fubá. Na próxima festa vamos voltar como manda o figurino. E olhe, graças às costureiras nos tornamos populares e conhecidas. Aliás, temos notado que a senhora só vive nos observando. Deve ter sido a senhora que espalhou essa coisa de sermos moças da capital. E por ventura moça da capital não é honesta? Talvez muito mais do que as daqui do interior.  Vestem-se na moda, tornam-se atraentes e nem por isto são levianas. Não há pior veneno social do que uma má língua. Será que pensam que uma saia curta e um decote discreto como é o nosso, tiram a virgindade da pessoa?
- Que coisa. Pois da próxima vez vamos mostrar tudo quanto puder sem escândalo. Apertar mais as saias e as blusas, subir e descer nos lugares competentes. Está bom... Seu vigário disse que muita roupa é matutada e o que belo é pra ser mostrado.
- Está vendo aí. O padre é que entende das coisas. Viajado, observador e bom conselheiro. Se ainda estiver viva, nos espere, vamos botar pra quebrar...
- Santo Deus. Se eu tivesse nascido homem, vocês iriam ver. Tirava-lhes esse rócio. É porque essa rapaziada de hoje só tem conversa. São uns gabolas. Agradeçam a nosso senhor. Na minha lábia, cairiam até as onze mil virgens, quanto mais umas matutinhas como vocês.
- Foi bom que tivesse nascido mulher e semelhante brucutu.
- Estão me ofendendo sinhas cabritinhas?  Mereço mais respeito.
- A senhora é casada?
- Não, por quê? Tem alguma coisa a dizer?
- Nada não. É porque se fosse ninguém acreditaria. Com uma voz afinada desta, uma cara de angu que tem, um corpo tão maravilhoso e, além disso, fofoqueira e intrometida, só se fosse com um jaburu.
A dona Sofia ia rinchar de veias inchadas e olhos esbugalhados, congestionada, quando padre Camilo encostou.
- Que é que há dona Sofia. As meninas fizeram alguma coisa?
- São desaforadas e desrespeitosas. Não sei como o senhor as tolera. Credo em cruz.
- Ao contrário. São excelentes meninas. Alias, a senhora é mulher e as mulheres sempre tem ciúmes das outras. Sobretudo quando há tanta diferença entre elas. Acalme-se e conforme-se com as desigualdades do mundo. Deus fez tudo assim, para não faltar assunto. Mas não se preocupe que quando elas estiverem na sua idade também ficarão fora de forma. Bem entendido se a senhora ainda estiver viva.
- O senhor também padre Camilo, não sabia que era tão gaiato. Mas fique logo sabendo que estas três aí o senhor não vai tirar leite com espuma. São durinhas de roer, a não ser que sejam umas espertinhas mesmo da capital, e estejam enrolando para ver que se pegam os bestas. A conversa e os modelos não são moças roceiras. Vou embora. Aproveite-se. Elas estão atrás disso mesmo. Gandaia... E sabe o que me estavam dizendo? Simplesmente que na próxima festa vão descer os decotes e encurtar as sais. Apertá-las mais. Querem mostrar do joelho pra cima e o bico dos pães de milho. Elas lhe adoram. Vá benzê-las na sacristia...
Dona Sofia deu meia volta e saiu pisando em sua desventura.
- Até logo, até logo, até logo, dona Sofia.
- Dane-se!...Justamente com essa poda do cariri. Vão ver quanto dói uma saudade, bichotinhas. Quero é ver todas três barrigudinhas na próxima festa. Vão saber quem é esse pai de chiqueiro. Estrepou-se.
Dona Sofia de nada mais queria saber, mas ainda virou-se e fez uma figa com as duas mãos. E se foi com a sua desdita.
Estava mesmo uma bruxa. Não se casa porque não achara o noivo dos seus sonhos e, agora, metida no casarão, único bem que possuía além da merceariazinha, espritou-se, sacou o Rosário e o velho Adoremos no fundo do baú, soltou um tesconjuro e largou-se para casa de comércio com vontade de quebrar as garrafas, derramar os temperos e tocar fogo no resto.
Para o último desespero de uma solteirona astuciosa. Aqueles picuaios não lhe ajudavam em nada e muito menos a vida que levava. O certo mesmo era botar querosene no rabo da saia e riscar um fósforo “olho”. Àquelas horas o reverendo e as três sirigaitas deveriam estar tirando o couro. O melhor seria voltar lá e dizer o que ainda não havia dito. Fora mesmo uma égua. Deveria ter soltado os grossos palavrões que sabia de cor. E voltou a passos largos, mas teve uma decepção, já haviam sumidos.
- Eu não dizia, já estão na gandaia. Padre Camilo nunca correu para não derrubar. Eram disso que elas andavam atrás. Cadê que ele me da bolas... Quer é gente nova, cheia de requebros. O safadório nem se lembra de que coco velho é que dá azeite.
 A sorta, ia falando alto, quando ouviu por trás de si, uma voz em tom de galhofa – Azeite rançoso.
Falando sozinha, dona Sofia?
Pois é, mulher, estou ficando biruta. Moça velha , sem esperança só dá pra isto.
Que nada. Por que não te casas com o Pantaleão. É doidinho por ti. Só vive te encarando. Que queres mais para quebrar o resguardo. Velho enxuto. Pelo menos não morres nesse desespero das onze mil virgens.Vais esperar mais por quem!
Assim também é demais.
Demais como?
- Feiúra por feiúra, idade por idade, não se troca um pelo outro.
- Só não me casarei com padre Camilo. Prefiro me juntar.
- É, casa no civil somente ou apenas na igreja verde...
- É o mais certo. Pelo menos não se gasta um tostão. Obrigado, minha boa comadre. Conversando é que se entende.
- Mas te ajeitas. Vestido colante e um decote escorregadio. Assanha o velho sinha burra.
Um mês depois estavam casados no Dr. Juiz.
- Deu em nada, minha comadre. O Pantaleão não é de nada. Queria era minha “bodega”. E agora só tem um jeito é botar-lhe um bom par de chifres, para deixar de ser mole. O bicho é mole mesmo. É como relógio que bate seis e meia. Os dois ponteiros estão em baixo.
- Manda tomar alguma garrafada feita pela velha Abelarda.
Já tomou tudo. Piora. E ainda se mete a enxerido com as mulatas que vão fazer compras. Um descarado... Qualquer hora dessa boto-lhe água quente nos ouvidos. Não merece outra coisa.
- Pega o bicho quanto estiver se assanhando com as mulatas. Pode ser que...
Já experimentei essa tática. Sabes o que é um molambo velho molhado? É a mesma coisa. Tudo perdido. Mas daqui a alguns dias te direi o resultado. Não tem mais jeito, senão acunhar-lhe mesmo um par de chifres de boi do Piauí.
Achas com quem?
- Não é possível minha comadre, que de graça, de mão beijada ainda sobre.
Sei lá. Eu mesmo se fosse homem enjeitava.
E no dia seguinte correu a notícia, o velho Pantaleão largou dona Sofia.
Largou uma ova. Foi à velhota que o despachou. Estava fora de uso. Dizem que lhe deu um pontapé mesmo na gema.Mas dizem também que foi o Pantaleão que a deixou. A veiota estava chifrando o coitado e logo com o preto Xexéu. Uma desgraça. Nem a fome do Sertão de 1915.
As três irmãs voltaram às festas no ano seguinte, vestidas igualzinha às moças da terra. Deixaram de ser moças da capital. E foi desapontamento, especialmente para o padre Camilo que passa o ano todo pensando em ver mais coisas.
- Então, meninas, que vira-volta foi essa. Voltaram a ser matutas da roça. Um retrocesso. Não deveriam ter feito isso. Quem anda de costa é caranguejo.
- Não quisemos mais ser confundidas com essa gente avançada de ponta de rua.
- Pois aí está. A moda de vocês pegou. Decote e saia curta é que está na moda. Vocês estão parecendo duas religiosas. Vão mudar isso. Com saia curta as moças andam mais desembaraçadas e os decotes ventilam mais. Com esse calor de dezembro, quanto menos roupa melhor.
- Mudamos de orientação, padre. Da outra vez tiveram dúvidas a nosso respeito. Não parecíamos moças decentes. Já estamos no ponto de arranjar casamento. E já estamos trabalhando nesse sentido. E queremos mesmo rapazes da roça, desses que desejam moças honestas e recatadas.
- E já tem alguém à vista?
- Já. Mas depende deles. Rapazes que não vêm a gente despidas. Se pudéssemos casaríamos todas ao mesmo tempo e moraríamos na mesma casa. Entretanto, isso não seria possível.
- Casamento, meninas, é coisa seria. A pessoa se amarra para o resto da vida. Acaba-se a liberdade. Chegam os filhos, a obediência ao marido, as noites indormidas, tanta coisa estranha que até parece não ser mais negócio.
- Há tanto casamento desfeito. Seja lá como for, iremos para a água benta.
- Não queremos passar o tempo. Se toda moça se casa é porque certamente a coisa é boa e vale à pena.
- É, mais devem passar bem. Pode-se ter vida de casada sem casar, sem compromissos. Deveriam ir se confessar comigo e receber orientação que só pode ser ministrada no segredo da santa confissão.
- Entre nos três não há segredos, padre. Pode falar aqui mesmo.
- Que nada meninas. Só de uma em uma, para manter o verdadeiro sentido da confissão.
- Ah! O senhor pensa que somos tolas e só por sermos da roça. Percebemos as coisas mais de longe do que o senhor pensa. De boas intenções o inferno está cheio. Pode guardar as suas. Dona Sofia nos falou muito a respeito do senhor. Só não fez elogios. E nos recomendou para termos cuidado. Disse ainda que a presença do senhor junto à gente já era uma péssima recomendação. Francamente não acreditamos, mas pelo visto, a coisa se parece.
- Aquilo é uma jararaca de tocaia, com uma carga de veneno de matar elefante.
 - É, sim, mas de qualquer forma estamos de sobreaviso. Seguro morreu de velho, diz o ditado.
- Que nada. Só faço aconselhar para o bem.
-Está se vendo. Mas nem afie as pontas. E para melhor dizer e melhor pensar, nos dê licença e até logo, seu vigariata.
O padreca ficou tonto. - Três matutas espertas e atrevidazinhas. Não me respeitaram. Também são criadas como bicho do mato!
Horas depois estavam acompanhas por um grupo de rapazes e travada no namoro. Namoro para casar.
E tempo depois se casou a primeira, a do meio. As outras duas, estavam noivas.
No ato do casamento padre Camilo, pensava casadinhas que é bom. E cravou-lhe os olhos cheios de malícia. O bicho continuava reinando.
No ano seguinte casaram as outras duas. Separaram-se, mas obrigatoriamente, aos domingos reuniam-se o dia inteiro. Compareciam as festas e lá estavam numa mesa só, dando e vendendo felicidade.
Padre Camilo nem se atrevia a passar perto. Não era nem besta para enfrentar as três matutas robustas, como touro de pé de serra. Mas, mesmo assim, rondava de longe, sem perder totalmente a esperança. Se pudesse mataria de cólica a velha Sofia, língua de trapo. Botara-lhe a caçada no mato. Vez por outra dava-lhe a veneta de se aproximar, mas seria muita imprudência.
E numa das tardes deu de cara com dona Sofia.
- Boa noite, reverendo. Como vão as festividades deste ano? As tais meninas estão ali. Não vai dar uma palestrinha com elas; passadinha já é mais fácil...
- Olha, dona Sofia, quero mais respeito. Por que o diabo já não a levou? Faça-me o favor de não por os pés na minha igreja e nem perto de mim. Corujão da má sorte. Só porque ninguém a quer vive a atrapalhar a vida dos outros. Megera. Eu te amaldiçôo por todos os séculos e séculos, amém.
- Some da minha vista ou vou contar agora mesmo que estás rondando as mulheres daqueles três. E conto-lhe o mais. Tiro-te o gosto da festa.
- Não estás nem doida. Vou arranjar-te um novo casamento. Bem que mereces. Não te preocupes com minhas brincadeiras. Pancada de amor não dói. Bem sabes que gosto de ti. Convido para zeladora da igreja. E não recuses. Sempre tive esta intenção.
- Velhaco... Por que não me convidastes quando eu era mais moça?
- Deixa de bobagem. Não estás também assim fora de uso. Quem não tem cachorro caça com gato. Vamos nos sentar ali e tomar uma cervejinha gelada ou uma bebida quente. Reatar nossa velha amizade.
- Vamos, mas quero respeito.
- Dizem que botastes chifre no teu marido?
- Ele não merecia outra coisa. Só fez assanhar. Então tinha que ser culpa dele. É como a história que contam: Casei-me com um côrno. É assim que se faz.
- Quero ver-te amanha cedo na igreja. És a zeladora que eu procurava.
- Mas já te disse. Com todo respeito.
- Decreto, todo respeito que mereces...

*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.