NINA*
João
Henriques da Silva
(In
Memoriam 20/09/1901 – 16/4/2003)
Nina a mais velha das
três irmãs, teve que assumir a direção da casa, quando o pai fugira com outra
mulher e a mãe entrevada em cima de uma cama, contava os dias de vida.
Nascida e criada na roça
Nina e as suas irmãs não tinham outra saída se não fazer o pedaço de chão que
lhes ficara, produzir para manter as quatro.
Uma casa de mulheres
exigia das três esforços quase sobre humanos. Quando o dia amanheceu sem o pai
e a mãe em cima da cama, sem ao menos saber bem se ainda existia, Nina reuniu
as irmãs, já mocinhas e narrou o que havia de fazer.
Lina, a mais moça, estava visto, não
poderia se afastar de casa para cuidar da mãe e da cozinha.
As outras duas, Nina
e Ieda, enfrentariam a vida do campo, as coisas externas em si, o pequeno
rebanho de cabras, a criação de galinhas, a vaquinha de leite e o leitão que
grunhia no chiqueiro de toras.
Na despensa não havia
mais do que feijão, farinha e um pouco de milho, que teriam de render o máximo,
em quanto à vaquinha crioula desse leite, não faltaria alimento para dona
Santina, o que de certa forma já as tranquilizavam.
Lina que cuidasse da
casa e zelasse pelo pouco que havia guardado. Dali por diante não se venderia
uma cabra, não se mataria mais uma galinha poedeira. O mais importante era
aumentar o rebanho. Mais cabras, mais galinhas, mais leite, mais ovos e
frangos.
A roça mesma era um
quase nada. Mas dava para não faltar milho, feijão e farinha. O essencial era a
criação. Dava menos trabalho e bode não se preocupava muito com a seca. Até
pelo contrário, não gostava de chuva, ficava tudo logo amontoado ou no alpendre
da casa, encolhido. O casebre ao lado da casa de morada servia para os ninhos
das galinhas chocas. E daí saía às ninhadas de pintinhos alimentados com farelo
de milho e um pouco de pirão de farinha e leite de cabra. O maior cuidado era
com gavião peneira que piava no alto do céu, espreitando as vítimas. O
vigilante era o galo que, quando ouvia o piado do gavião dava logo sinal para
que a pintalhada se refugiasse debaixo das asas das galinhas ou alguém
disparasse tiros contra eles.
Tinham que plantar
mais milho e um pouco mais de mandioca para prevenir alimento. Ovos para deitar
e chocar, somente das melhores galinhas. As maiores e mais poedeiras.
Precisavam vender ovos todas as semanas e queijinhos de coalho de leite de
cabra, frangos quanto estavam no ponto. O terreiro se povoava e no chiqueiro
das cabras o pai de chiqueiro fabricava cabritos.
Sábado de madrugada,
madrugada silenciosa e triste, a dona da casa deixou de respirar. O último
suspiro acabou com o tremendo padecimento. Mesmo doente na cama, imobilizada e
muda, dona Santina era como se fosse a viga mestra da casa. As moças, então,
sentiram-se sós e sem o teto da casa. O pai não sabia onde andava e preferiram
não vê-lo. Quem deixa uma pobre mulher paralítica em cima de uma cama, de um
catre, e três filhas mocinhas e inexperientes, não merecia sequer uma lembrança.
O que desejavam é que não mais aparecesse, nem mandasse notícias. Mas não se
enganassem, se um dia tentasse voltar, ali não ficaria. A terra que possuíam e
aquela casinha rústica era herança de sua mãe. Felizmente nunca apareceu e tempo
depois correra a notícia de que havia sido preso para não mais sair da prisão.
Estava onde merecia estar. Deixara de ser pai.
Das três, nenhuma
tinha tempo de pensar em assanhamentos e era bem verdade que o exemplo da casa
as assustava. A mãe era uma Santa. E padeceu tanto. Casara-se cheia de sonhos e
esperanças e o casamento fora aquela ruína.
Nunca um namorado ou
um noivo revelava o que realmente era. Todo bonzinho, um santo, depois botava
as unhas de fora. Afinal de contas estavam vivendo tranquilamente. Contavam
além do mais, com os tios e tias maternos que não esqueciam. Gente da raça do
pai que se ficasse para lá, pois sempre acharam que tudo acontecera por falta
de amizade e carinho. Agora deveriam estar sabendo quem era e que é o bonzinho
do parente.
Três irmãs, três
companheiras e amigas de todas as horas. Nas atividades campestres e caseiras,
entendiam-se e até resolviam tudo de comum acordo. Não se censuraram,
completavam-se. Mas até quando permaneciam sem pensar além dos seus afazeres
cotidianos?
Decorridos o luto da
mãe, um recolhimento sentimental, decidiram sair um pouco, comparecer à cidade,
as festividades da padroeira, usufruir um pouco do ambiente social. O dinheiro
economizado, já permitiria despesas extras. Já era tempo de sair do dia a dia,
o que era um sinal velado de que algo novo sacudia as asas pra voos diferentes.
Aquela ansiedade de sair, passear, comunicar-se, fazer amizades, revelava o
despertar de sentimentos novos.
As festividades da
padroeira se avizinham. Teriam que mandar fazer vestidos novos, comprar sapatos
da moda, e perfumes. Os cabelos longos que ainda usavam, fora da moda, teriam
que ser aparados à altura dos ombros, o que elas mesmas o fizeram. De pintura
não careciam. Coradas como uma romã bem madura, queimadinhas de sol, dispensava
qualquer artifício. Durante a festa iriam ficar em casa de dona Naná, velha
amiga de sua mãe e que lhes oferecia a casa. Chegaram à véspera. Deram logo uma
volta pela cidade, de roupa um tanto colada como era a moda de então. Viram os
últimos preparativos da festa e não tinham dúvidas que chamaram atenção. Afinal
de contas, não eram feias e sua beleza natural despertava curiosidade. E como
se sentiam admiradas, lamentavam intimamente o tempo que já haviam perdido.
Mas, afinal todas as coisas têm suas oportunidades. Certamente se tivessem sido
sempre vistas teriam se tornadas vulgares. E como era comum ser acompanhada de
pai, mãe ou irmãos, chegaram a julgar que deveriam ser moças da capital, onde
os costumes já eram bem mais evoluídos. Os decotes um tanto atrevidos e pedaços
de pernas a mostra, causaram má impressão a muitas mulheres ciumentas. E até
algumas chegaram a comentar que deveriam ser mulheres de vida fácil.
- Suas
desavergonhadas. Pois não era. Aquelas mangas curtas, as blusas modelando os
seios com aquele decote que dava para sonhar com eles, não podiam ser coisa
para gente direita. O certo é que os homens gostavam o que era pior.
- É a moda minha
comadre. Nas cidades grandes ninguém ainda mais se enrola de pano das pontas
dos pés, ao gogó.
- Que moda que nada! É,
é falta de vergonha. E o jeitinho das três não engana ninguém. Não estás vendo
como são atrevidas? Olham para os rapazes e para qualquer homem como se já os
tivessem convidado para a cama. Um desaforo. Veem essas coisinhas para
desassossego das famílias honestas. Vão ver o reboliço que as três vão fazer
durante a festa. Não é possível que o vigário não as ponha para fora da igreja
se tiverem a coragem e falta de vergonha de botarem os pés na casa de Deus.
Quem tiver seu marido que se cuide. Não irei tirar os olhos de cima do meu.
- E estás por
ventura, pensando que elas vão sobrar para a marmota do teu marido.
- Ora, como és
inocente, essas qualidades de gente quer é dinheiro. Está lá se incomodando com
cara feia e bonita, se é novo ou velho. Quer é chupar as notas. E essas três
piranhas, novinhas como são e atrevidas como andam, vão encher o papo. Vou
prestar a atenção no padre. Nossa tranquilidade depende dele.
E aconteceu a
coincidência. Padre Camilo encontrou-se com as três bem ali no virar do beco e
bem as vistas da dona Rosário e dona Jandira. E as meninas fizeram questão de
beijar-lhe a mão. A bem dizer nunca haviam visto um sacerdote assim de tão
perto. E o encontro prolongou-se. Padre Camilo estava inquieto e risonho. Não
tirava os olhos das três. Não as devorava porque não podia, mas bem que se via
que tinha vontade. E crivando as moças de perguntas, chegou onde queria.
- Ora minhas filhas,
não percam as rezas. É muito agradável ter gente nova na cidade, abrilhantando
as festividades. E é engraçado, morando tão perto, as vejo com satisfação pela
primeira vez. Não se vive só do trabalho. Festa alegra o coração da gente e dos
outros.
- Mas sempre fomos
muito atarefadas. Somos sozinhas, sem pais, sem irmão homem. Só agora tivemos
uma folga e pretendemos não perder mais festas e as missas dos domingos.
- Isto! É assim que
moças ajuizadas se comportam. A primeira vista pensei que fossem da capital.
Tão bem vestidas na moda como estão, não dava para pensar outra coisa. É
necessário mesmo ir acabando com essas velharias de andar enrolada de pano
parecendo uma marmota. Quero revê-las. Se tiverem um tempinho visitem a casa
paroquial. Ponham-se mais próximas de Deus. Espero vocês. Até breve.
As meninas saíram,
enquanto o padre Camilo, absorto e parado olhava-as caminhando, rindo e se
voltando para ele.
- Estás vendo aí como
são as coisas. Padre Camilo gostou das meninas.
- Que nada. Deve é
ter passado um descaradela nas desavergonhadas.
E quando as três se
aproximaram dona Sofia às chamou.
- Venham cá,
desejamos falar com vocês.
- Chamei-as para
conhecê-las e admirar a elegância dos vestidos e das blusas.
- Ora é tudo tão
simples, tão amatutado...
- Vocês que pensam.
- São por certo da
capital.
- Somos sim. Gostamos
de conhecer as festas do interior. Quase não temos outra coisa a fazer. É muito
lucrativo e gratificante. Logo que passar as festas, estaremos de volta.
- E posso perguntar
onde estão hospedadas? Gostaríamos de revê-las.
- Não, não valeria à
pena. Nós estamos lá na casa de uma dona na entrada da cidade.
E as três se foram,
abismadas com a curiosidade das duas velhotas.
- O que é que eu te
dizia minha comadre. E viste como quase aparece a saliência dos peitos. Além
disso, estão hospedadas na ponta da rua, frisou as palavras. - Três quenguinhas
legítimas. E ainda te enganas? Viste o padreco como estava derretido? Acabou-se
a vergonha e a seriedade. O mundo está mesmo nas últimas. Qualquer dia dá um
estouro e vai tudo pro beleléu.
- Pois não é, as três
bichotas saem lá da capital e veem cavar a vida aqui. Nem Deus dá mais jeito.
Quando esperava que seu vigário corresse com elas, o que fez foi palestrar
quase meia hora e com aquela cara de furão, mais cínica da vida. E olha só,
ainda está acolá olhando na direção em que as três piranhas vão. E espia mesmo,
está indo em direção a elas.
- Com certeza vai
chamá-las a ordem.
- Pode ir é chamá-las
nos peitos.
- Que é isso minha
comadre. Assim também é demais. Não tem medo que a língua caia... Não creio no
que dizes. Em minha opinião, são três moças direitas.
- Direitas coisas
nenhuma. Então, três moças direitas sairiam da capital para uma cidadezinha de
interior só para conhecer a festa da padroeira. Duvido! Até parece que és cega
de guia. Tenho pena de ti.
- E se fossem como
queres, que mal te fazem. Deixa que se divirtam e divirtam a rapaziada. Nada de
mais. Por que não te preocupas assim com a “pensão de mulheres” da dona
Marreca? Está apipado de mulheres, o teu marido não sai de lá. Segundo me dizem
e tu nem enxerga nada. E lá só tem mesmo mulatas vagabundas, mal vestidas e
sujas. Nem chega aos pés daquelas três meninas, as quais se eu fosse homem
correria atrás.
- Meu marido, o
Pedrinho, nos bordéis? É uma infâmia. Ali está a honestidade matrimonial em
carne e osso. Essa não, se o teu foi assim, muito bem, o meu é homem da maior
confiança.
- Ainda bem que é uma
conformada, batizada e vacinada!
- Ah! Se todos os
maridos fossem puros como o Pedrinho. Nem me bata o papo!
- Um dia saberás a joia
que tens em tua cama. Será que nunca sentisses a inhaca das bichas? Cheiro
enjoado de pó barato Patchuli. Ou não tens faro? Veras mais tarde quem são as
três meninas e terás remorso. Remorso também de suspeitares do vigário.
- Está aí. Posso
errar nas moças, mas no padreca, nunca. Conheço demais aquela abelha, que só
tem de padre a batina e o latim. Não dou um vintém pelas missas que reza, e nem
os dez reis pelas confissões. Já vi que é mesmo uma inocentona. Tens olhos, mas
não vês, tens ouvidos, mas não ouves. Como é que se é tola assim, meu Deus.
Fica da meia noite em diante e espreita e me dirás depois.
- Nina, Ieda e Lina
em minha opinião são três moças apenas mais evoluídas do que essas matutas
daqui. Nem tenho, aliás, qualquer dúvida. Andam pela cidade, comunica-se com
quem vão encontrando, mas não se observa um gesto irreverente, por ventura, o
que já notastes de escuso ou de duvidoso em qualquer uma das três? Poderão não
ser umas santinhas, mas também não são moças transviadas. Aqueles decotes um
tanto atrevidos, e o que diabo é que tem demais mostrar mais um pouquinho o
corpo? Não andam de peito de fora, não mostram os joelhos e então?
- E aquela roupa
colada mostrando as curvas do corpo. Queres mais?
- Ora, aquilo é que
lhes dá uma graça extraordinária. Estás é com inveja. Tens um corpão de almofada
de fazer renda e tu ficas com ciúmes. O bonito é para se ver, é lógico. Como não
tens uma curva a não ser nesse pandeiro de tanajura, deves mesmo esconder ou
pelo menos disfarçar.
- Que dizer que eu
sou uma bruxa velha.
- Não, isto não.
Apenas um fardo de lã. Imagina, tu ou eu com um vestido colante, que marmota.
As três moças, sim, têm o que mostrar. Pouco pano e muitas curvas bem traçadas.
Parece até que estás apaixonada pelas moças.
- Não é paixão é
admiração e saudade dos meus tempos de moça. Tive um corpo igual ao delas, só
que era proibido mostrar. Quando me casei só se vendo o corpo que eu tinha.
Hoje sou um balão. Teu corpo eu sempre conheci, não sei como o Pedrinho te
quis. Pedrinho ou outro qualquer. Primeiro não tinhas cintura, coisa que dá
tanta graça as mulheres. Eras coisa para quem gosta de banha de barril.
- Sabes de uma coisa,
vamos mudar de conversa, senão terminarás me transformando num hipopótamo. E
uma coisa eu te digo. Tinha um corpo meio desajeitado, mas fui muita mulher. O
Pedrinho que o diga. E é o que vale, o que voga. O mais é conversa fiada. Não
adianta ter um corpo de ninfa e ser um bloco de gelo, uma comida como bolacha
de resguardo, água e sal. Tenho vaidade dos meus temperos. E por isso, tenho o
marido fiel que possuo; o Pedrinho de toda a confiança.
- Fica-te com ele, o
meu nunca foi essa pureza que é o teu. Sabia disso, mas sabia também que tinha
um homem em casa.
- Que queres dizer
com isso? Que o Pedrinho não é homem? Tu não conheces o Pedrinho que estás
vendo.
- Eu não conheço e
Deus que me guarde, mas tem muita gente que conhece. As negras da pensão, por
exemplo.
- Não adianta, pois
não acredito. Vou morrer confiando nele. Sempre me chega a casa com um
cheirinho diferente para me agradar.
- Já vi que não
entende disso. Esconjuro-te comadre. Até amanhã. E não se fala mais nisso. É
mesmo de não se acreditar. O Pedrinho confia tanto em tua burrice que nem toma
banho depois de paleio com as negras.
- Quem te disse?
Trabalha arrumado na loja até tarde, depois da ceia, toma banho lá mesmo e lá
mesmo se perfuma. É assim que um homem decente faz. Com um daquele me casaria
dez vezes.
- Há muita forma de
ser feliz...
A festa começou. A
rua da matriz cheia, cheinha de gente. Gente da cidade, gente da roça, dando
encontradas. Pavilhões, jogos, leilões, namoros e ciumadas.
Nina, Ieda e Lina
volteavam sem parar. Blusas com um pouco mais de decote, um pouquinho mais de
pernas à mostra e mais justas.
Chamavam a atenção.
Entravam na igreja daquele jeito e padre nem dava bolas. Para dona Rosário
aquilo era o começo do fim do mundo. E era bom mesmo que desse um estouro para
acabar com a pouca vergonha. Para que continuar se não havia moral. E o
reverendo também metido no conluio. Como podia permitir que aquelas três
bichotas afrontassem impunemente a sociedade local, sem protesto, sem um grito
de alarme. Santo Deus.
Na segunda noite de
festa, lá estavam as três no pavilhão da igreja, bem sentadinhas, tomando
guaraná e desafiando o decoro. A rapaziada rodava as três à distância, ainda
travadas no namoro. Namoro de olhares e gestos. O padre, que era padre, tinha
carta branca. Puxou uma cadeira e sentou-se ao lado das três. Desejava
conhecê-las de perto. As meninas já não lhe beijaram a mão. Apenas sorriam com
um gesto de satisfação.
A rapaziada ficou
enciumada. Tinham os namoradores que encostar também. Aproveitaram a presença do
vigário, que era a pessoa insuspeita e amiga de todos para uma aproximação. Era
o que elas queriam.
Dona Rosário ficou paralisada.
Quase lhe dava um troço. Fez o pelo sinal duas ou três vezes disfarçadamente e
ficou na observação. Esperava a qualquer momento o estrondo do fim dos tempos.
De guaraná passaram a cerveja e elas gostaram da novidade. Era dia de festa e
tudo se permitia.
- Está aí o que eu
dizia. Uma mulher decente não toma cerveja assim de público, mas as
desavergonhadas bebem com os homens. Umas viciadas das pensões de mulheres
à-toa.
O padre levantou-se
para fiscalizar a renda de seu pavilhão. A rodinha de gaiatos permaneceu na
maior euforia. E aquilo tudo justamente no pavilhão da Santa Igreja Apostólica
Romana.
Desse dia em diante,
as meninas jamais ficaram sós e sempre bem acompanhadas. Os namoradores
tentaram separá-las.
- Seria mais
agradável uma conversa a sós, par a par. Aliás, - deviam ter experiência disso.
- Nas capitais não se
estranha isso!
- Sim, sim, sim, mais
nós três somos inseparáveis. É um hábito. O que se conversa separadamente
conversa-se em grupo.
Foi um
desapontamento. As meninas ou eram umas viciadas sem pudor ou eram umas santas.
E agora, como decifrar o mistério daquela união? Pelo jeito não podiam ser
muito sérias. Aquela forma de vestir dava a entender que eram moças liberais e,
no entanto, em ação era outra coisa muito diferente.
Daquela forma não
tinha como avançar o sinal, a menos que ficassem os seis num grupo isolado,
fora da vista dos demais. E foi então que tentaram sair para local apropriado.
Mas não era possível que fossem tão cínicas que pudessem ser casadas
coletivamente. E naquela dúvida danada sugeriram um passeio.
- Nada disso. Viemos
foi assistir a festa e aqui estamos otimamente. Por que saímos dessa ambiente
tão agradável? Aqui se conversa nos conhecemos melhor e sempre tivemos medo da
língua ferina de certas pessoas. Nos veem sair e ficarão logo maldosas. – Aonde
vão aquelas sirigaitas? Chegam de fora e estão por aí soltas. Estão vendo aí?
Já ganharam o mundo com três espertalhões. Para onde foram? Já se sabe - as
coisas devem ser feitas discretamente, fora das vistas maldosas da sociedade.
Parecia claro que o
caminho estava aberto. Dependia somente de condições adequadas. Marcariam um
encontro para o dia seguinte. Levariam as três para a pensão de dona Florinda,
velhota discreta e além de tudo muito séria. Ninguém desconfiaria. O golpe
estava armado.
- Então, amanhã
sairemos, não é assim? Marque a hora.
- Hora pra quê?
- Para se dar umas
voltinhas. Iremos para o local conveniente, onde somente nós sabemos.
As três se olharam.
Nina falou:
- Pelo que
percebemos, estão preparando uma armadilha. Talvez estejam pensando que somos
umas doidinhas de programas, não é? Enganam-se com nossa aparência. Somos moças
direitas, de família e nosso entretimento é outro bem diferente. Obrigado pela
companhia e até breve. Queremos namorados, mas, gente decente como nós. Queiram
fazer a gentileza de nos deixar a sós. O que vocês pretendem tem outro
endereço.
Sem jeito para uma
justificativa ou desculpa, desapontados, os três saíram de rabo entre as
pernas, remoendo e descontentes.
Os circunstantes que
estavam de olho neles notaram o fora e então crescia o mistério.
Dona Rosário chegou a
assusta-se. Alguma coisa andava errada. Possivelmente os moços que procuravam
moças direitas, constataram que eram três piranhas e saíram do jogo. E tiveram
sorte. Antes morrer de sede do que afogado. E nesse exato momento, o padre se
aproximou da mesa das meninas.
- Então, minhas
filhas, que tal a festinha da padroeira?
- Ótima, padre!
- E os moços que
estavam com vocês? Deixaram-nas sozinhas. Coisa de matutos de aldeia.
- Não seu padre. São
três patifizinhos. Pensavam que éramos gente à toa. Queriam nos levar por aí a
fora e pedimos para que se fossem.
- Mas minhas filhas,
que atrevimento e falta de pudor. E olhem que são três das melhores famílias da
cidade. Quer dizer que fizeram propostas indecorosas?
- Exatamente. E nos
tiraram o prazer da festa. Estamos dispostas a voltar para nossa casa.
- Não, não se
precipitem. Um caso não representa o todo. E se saírem, acaba-se a festa. Mas
afinal de contas, as meninas vivem sozinhas?
- É. Só nos três. Mãe,
Deus a levou e pai, que havia nos abandonado fugiu com outra, deixando mamãe em
cima de uma cama. Dele não sabemos mais notícias.
- E o que fazem,
afinal, na capital? Vivem de rendimentos? Desculpe a indiscrição.
- Não há porque se
desculpar. O senhor é um confessor para nós. Mas seu vigário, nunca fomos de
cidade, nem grande, nem pequena. Somos três moças da roça daqui do município
mesmo. Quem pode haver pensado nisso?
- Toda gente. São tidas como da
capital. E não foi isso que me deram a perceber - Queríamos somente ver
o comportamento das pessoas.
- Chegaram até a
pensar que eram três moças levianas. Imagina...
- Pois é, somos daqui
de perto, não saímos do sítio, só agora com a vida arrumada viemos à cidade.
- E nem pensam em se
casar?
- Pensamos sim,
senhor.
- Mas veja o que nos
aconteceu no primeiro ensaio. Por isto desconfiamos dos homens. E o meu pai, só
foi um exemplo de botar sal na moleira. E os três rapazes que nos faziam companhia
só pensavam em tirar proveito das mocinhas extrovertidas da capital... Mas
erraram o salto, somos da roça, mas não somos tolas.
- Afinal não temos
pressa, não cairemos em mãos de aventureiros. Pois sim. Mocinhas da capital,
fáceis no relacionamento e fácil nos amores.
Dona Rosário
espreitava de longe e fazia suas conjecturas. Escaparam dos três inexperientes,
mas não irá escapar das unhas treinadas do reverendo, o velho gavião peneira.
- Não podemos atinar
qual a razão pelo qual nos supuseram moças da capital. Até parece anedota de
“almanaque da saúde da mulher”.
- Acho que poderei
decifrar o enigma. Basta que comparem a maneira de vestir das moças daqui com a
elegância de vocês. Blusas baixas em cima e saias altas em baixo, como dizia um
poeta mineiro. Ademais essas roupas colantes, revelando as formas do corpo.
Aqui ainda tem acanhamento de usá-las quando, no entanto, são tão elegantes e atraentes.
Coisas de gente evoluída, não acham? Agora, uma coisa que gostaria de saber.
Porque se trajam diferentemente das outras moças?
- Não foi iniciativa
nossa. Nem sequer acompanhávamos essa coisa de moda. Foi à costureira quem
escolheu os modelos, e disse que era a moda das capitais. Pensávamos que na
última moda estariam todas. Foi somente isso.
- Pois acertaram
meninas. As moças da terra, diante de vocês parecem umas matutas de pé de
serra. Não faz mal nenhum mostrar um pouco das coisas belas que se tem e que
andam tão escondidas.
- O senhor achar?
- E por que não. Essa
panaria que usam enrolando as pessoas do pescoço ao tornozelo é uma velharia.
Da próxima vez encurtem mais em cima e embaixo.
Dona Rosário a estas
horas já estava bem perto dos quatros, capiscando a conversa do padre Camilo.
Dava-lhe gana de furar-lhe os olhos e corta-lhe a língua. Pois não era,
insinuando as meninas para o nudismo e o dessavergonhamento.
Não tinha mais em
quem confiar. Esperou que o padre Camilo saísse e aproximou-se das moças com
ares angelicais.
- Pensava que fosse
da capital. Com esses decotes e pernas de fora, cheguei até a pensar que não
fossem moças direitas. E como conheço a aldeia e os índios, poderia dar-lhe uns
conselhos. Primeiro não confiem no padre Camilo. Aquilo não é flor que se
cheire. Segundo, vistam-se igualmente as outras moças, para não aparentar
transviadas. Aposto que aqueles moços que estavam com vocês lhe fizeram
propostas desonestas. Os gaviões andam soltos. Essas roupas muito avançadas
despertam dúvidas e desejos.
- Os homens só pensam
nessas coisas. São uns canalhas. Como é mesmo o nome da senhora?
- Rosário.
- Pois Dona Rosário,
não há perigo. Essas coisas que a senhora pensa não acontecerá com a gente.
Sabemos o que queremos. Pra nosso lado pode vir até o Padre Mestre e o Cavalo
do Cão. Temos corpo fechado. Somos três matutas do roçado, sem casamento no
cartório e no vigário, é inútil qualquer reinação. Sabemos nos defender. Já
mandamos três passear e estamos vendo claramente a intenção do reverendo.
Achamos até graça. Com a gente ninguém pisa milho pra fazer fubá. Na próxima
festa vamos voltar como manda o figurino. E olhe, graças às costureiras nos
tornamos populares e conhecidas. Aliás, temos notado que a senhora só vive nos
observando. Deve ter sido a senhora que espalhou essa coisa de sermos moças da
capital. E por ventura moça da capital não é honesta? Talvez muito mais do que
as daqui do interior. Vestem-se na moda,
tornam-se atraentes e nem por isto são levianas. Não há pior veneno social do
que uma má língua. Será que pensam que uma saia curta e um decote discreto como
é o nosso, tiram a virgindade da pessoa?
- Que coisa. Pois da
próxima vez vamos mostrar tudo quanto puder sem escândalo. Apertar mais as
saias e as blusas, subir e descer nos lugares competentes. Está bom... Seu
vigário disse que muita roupa é matutada e o que belo é pra ser mostrado.
- Está vendo aí. O
padre é que entende das coisas. Viajado, observador e bom conselheiro. Se ainda
estiver viva, nos espere, vamos botar pra quebrar...
- Santo Deus. Se eu
tivesse nascido homem, vocês iriam ver. Tirava-lhes esse rócio. É porque essa rapaziada de hoje só tem conversa. São uns
gabolas. Agradeçam a nosso senhor. Na minha lábia, cairiam até as onze mil
virgens, quanto mais umas matutinhas como vocês.
- Foi bom que tivesse
nascido mulher e semelhante brucutu.
- Estão me ofendendo
sinhas cabritinhas? Mereço mais
respeito.
- A senhora é casada?
- Não, por quê? Tem
alguma coisa a dizer?
- Nada não. É porque
se fosse ninguém acreditaria. Com uma voz afinada desta, uma cara de angu que
tem, um corpo tão maravilhoso e, além disso, fofoqueira e intrometida, só se
fosse com um jaburu.
A dona Sofia ia
rinchar de veias inchadas e olhos esbugalhados, congestionada, quando padre
Camilo encostou.
- Que é que há dona
Sofia. As meninas fizeram alguma
coisa?
- São desaforadas e
desrespeitosas. Não sei como o senhor as tolera. Credo em cruz.
- Ao contrário. São
excelentes meninas. Alias, a senhora é mulher e as mulheres sempre tem ciúmes
das outras. Sobretudo quando há tanta diferença entre elas. Acalme-se e
conforme-se com as desigualdades do mundo. Deus fez tudo assim, para não faltar
assunto. Mas não se preocupe que quando elas estiverem na sua idade também
ficarão fora de forma. Bem entendido se a senhora ainda estiver viva.
- O senhor também
padre Camilo, não sabia que era tão gaiato. Mas fique logo sabendo que estas
três aí o senhor não vai tirar leite com espuma. São durinhas de roer, a não
ser que sejam umas espertinhas mesmo da capital, e estejam enrolando para ver
que se pegam os bestas. A conversa e os modelos não são moças roceiras. Vou
embora. Aproveite-se. Elas estão atrás disso mesmo. Gandaia... E sabe o que me
estavam dizendo? Simplesmente que na próxima festa vão descer os decotes e encurtar
as sais. Apertá-las mais. Querem mostrar do joelho pra cima e o bico dos pães
de milho. Elas lhe adoram. Vá benzê-las na sacristia...
Dona Sofia deu meia
volta e saiu pisando em sua desventura.
- Até logo, até logo,
até logo, dona Sofia.
- Dane-se!...Justamente
com essa poda do cariri. Vão ver quanto dói uma saudade, bichotinhas. Quero é
ver todas três barrigudinhas na próxima festa. Vão saber quem é esse pai de
chiqueiro. Estrepou-se.
Dona Sofia de nada
mais queria saber, mas ainda virou-se e fez uma figa com as duas mãos. E se foi
com a sua desdita.
Estava mesmo uma
bruxa. Não se casa porque não achara o noivo dos seus sonhos e, agora, metida
no casarão, único bem que possuía além da merceariazinha, espritou-se, sacou o
Rosário e o velho Adoremos no fundo do baú, soltou um tesconjuro e largou-se
para casa de comércio com vontade de quebrar as garrafas, derramar os temperos
e tocar fogo no resto.
Para o último
desespero de uma solteirona astuciosa. Aqueles
picuaios não lhe ajudavam em nada e muito menos a vida que levava. O certo
mesmo era botar querosene no rabo da saia e riscar um fósforo “olho”. Àquelas
horas o reverendo e as três sirigaitas deveriam estar tirando o couro. O melhor
seria voltar lá e dizer o que ainda não havia dito. Fora mesmo uma égua. Deveria
ter soltado os grossos palavrões que sabia de cor. E voltou a passos largos,
mas teve uma decepção, já haviam sumidos.
- Eu não dizia, já
estão na gandaia. Padre Camilo nunca correu para não derrubar. Eram disso que
elas andavam atrás. Cadê que ele me da bolas... Quer é gente nova, cheia de
requebros. O safadório nem se lembra de que coco velho é que dá azeite.
A
sorta, ia falando alto, quando ouviu por trás de si, uma voz em tom de
galhofa – Azeite rançoso.
Falando sozinha, dona
Sofia?
Pois é, mulher, estou
ficando biruta. Moça velha , sem esperança só dá pra isto.
Que nada. Por que não
te casas com o Pantaleão. É doidinho por ti. Só vive te encarando. Que queres
mais para quebrar o resguardo. Velho enxuto. Pelo menos não morres nesse desespero
das onze mil virgens.Vais esperar mais por quem!
Assim também é
demais.
Demais como?
- Feiúra por feiúra,
idade por idade, não se troca um pelo outro.
- Só não me casarei
com padre Camilo. Prefiro me juntar.
- É, casa no civil
somente ou apenas na igreja verde...
- É o mais certo.
Pelo menos não se gasta um tostão. Obrigado, minha boa comadre. Conversando é
que se entende.
- Mas te ajeitas.
Vestido colante e um decote escorregadio. Assanha o velho sinha burra.
Um mês depois estavam
casados no Dr. Juiz.
- Deu em nada, minha
comadre. O Pantaleão não é de nada. Queria era minha “bodega”. E agora só tem
um jeito é botar-lhe um bom par de chifres, para deixar de ser mole. O bicho é
mole mesmo. É como relógio que bate seis e meia. Os dois ponteiros estão em
baixo.
- Manda tomar alguma
garrafada feita pela velha Abelarda.
Já tomou tudo. Piora.
E ainda se mete a enxerido com as mulatas que vão fazer compras. Um
descarado... Qualquer hora dessa boto-lhe água quente nos ouvidos. Não merece
outra coisa.
- Pega o bicho quanto
estiver se assanhando com as mulatas. Pode ser que...
Já experimentei essa
tática. Sabes o que é um molambo velho molhado? É a mesma coisa. Tudo perdido.
Mas daqui a alguns dias te direi o resultado. Não tem mais jeito, senão
acunhar-lhe mesmo um par de chifres de boi do Piauí.
Achas com quem?
- Não é possível
minha comadre, que de graça, de mão beijada ainda sobre.
Sei lá. Eu mesmo se
fosse homem enjeitava.
E no dia seguinte
correu a notícia, o velho Pantaleão largou dona Sofia.
Largou uma ova. Foi à
velhota que o despachou. Estava fora de uso. Dizem que lhe deu um pontapé mesmo
na gema.Mas dizem também que foi o Pantaleão que a deixou. A veiota estava
chifrando o coitado e logo com o preto Xexéu. Uma desgraça. Nem a fome do
Sertão de 1915.
As três irmãs
voltaram às festas no ano seguinte, vestidas igualzinha às moças da terra.
Deixaram de ser moças da capital. E foi desapontamento, especialmente para o
padre Camilo que passa o ano todo pensando em ver mais coisas.
- Então, meninas, que
vira-volta foi essa. Voltaram a ser matutas da roça. Um retrocesso. Não
deveriam ter feito isso. Quem anda de costa é caranguejo.
- Não quisemos mais
ser confundidas com essa gente avançada de ponta de rua.
- Pois aí está. A
moda de vocês pegou. Decote e saia curta é que está na moda. Vocês estão
parecendo duas religiosas. Vão mudar isso. Com saia curta as moças andam mais
desembaraçadas e os decotes ventilam mais. Com esse calor de dezembro, quanto
menos roupa melhor.
- Mudamos de
orientação, padre. Da outra vez tiveram dúvidas a nosso respeito. Não
parecíamos moças decentes. Já estamos no ponto de arranjar casamento. E já
estamos trabalhando nesse sentido. E queremos mesmo rapazes da roça, desses que
desejam moças honestas e recatadas.
- E já tem alguém à vista?
- Já. Mas depende
deles. Rapazes que não vêm a gente despidas. Se pudéssemos casaríamos todas ao
mesmo tempo e moraríamos na mesma casa. Entretanto, isso não seria possível.
- Casamento, meninas,
é coisa seria. A pessoa se amarra para o resto da vida. Acaba-se a liberdade.
Chegam os filhos, a obediência ao marido, as noites indormidas, tanta coisa
estranha que até parece não ser mais negócio.
-
Há tanto casamento
desfeito. Seja lá como for, iremos para a água benta.
- Não queremos passar
o tempo. Se toda moça se casa é porque certamente a coisa é boa e vale à pena.
- É, mais devem
passar bem. Pode-se ter vida de casada sem casar, sem compromissos. Deveriam ir
se confessar comigo e receber orientação que só pode ser ministrada no segredo
da santa confissão.
- Entre nos três não
há segredos, padre. Pode falar aqui mesmo.
- Que nada meninas.
Só de uma em uma, para manter o verdadeiro sentido da confissão.
- Ah! O senhor pensa
que somos tolas e só por sermos da roça. Percebemos as coisas mais de longe do que
o senhor pensa. De boas intenções o inferno está cheio. Pode guardar as suas.
Dona Sofia nos falou muito a respeito do senhor. Só não fez elogios. E nos
recomendou para termos cuidado. Disse ainda que a presença do senhor junto à
gente já era uma péssima recomendação. Francamente não acreditamos, mas pelo
visto, a coisa se parece.
- Aquilo é uma
jararaca de tocaia, com uma carga de veneno de matar elefante.
- É, sim, mas de qualquer forma estamos de
sobreaviso. Seguro morreu de velho, diz o ditado.
- Que nada. Só faço
aconselhar para o bem.
-Está se vendo. Mas
nem afie as pontas. E para melhor dizer e melhor pensar, nos dê licença e até
logo, seu vigariata.
O padreca ficou
tonto. - Três matutas espertas e atrevidazinhas. Não me respeitaram. Também são
criadas como bicho do mato!
Horas depois estavam
acompanhas por um grupo de rapazes e travada no namoro. Namoro para casar.
E tempo depois se
casou a primeira, a do meio. As outras duas, estavam noivas.
No ato do casamento
padre Camilo, pensava casadinhas que é bom. E cravou-lhe os olhos cheios de
malícia. O bicho continuava reinando.
No ano seguinte casaram
as outras duas. Separaram-se, mas obrigatoriamente, aos domingos reuniam-se o dia
inteiro. Compareciam as festas e lá estavam numa mesa só, dando e vendendo
felicidade.
Padre Camilo nem se
atrevia a passar perto. Não era nem besta para enfrentar as três matutas
robustas, como touro de pé de serra. Mas, mesmo assim, rondava de longe, sem
perder totalmente a esperança. Se pudesse mataria de cólica a velha Sofia,
língua de trapo. Botara-lhe a caçada no mato. Vez por outra dava-lhe a veneta
de se aproximar, mas seria muita imprudência.
E numa das tardes deu
de cara com dona Sofia.
- Boa noite,
reverendo. Como vão as festividades deste ano? As tais meninas estão ali. Não
vai dar uma palestrinha com elas; passadinha já é mais fácil...
- Olha, dona Sofia,
quero mais respeito. Por que o diabo já não a levou? Faça-me o favor de não por
os pés na minha igreja e nem perto de mim. Corujão da má sorte. Só porque
ninguém a quer vive a atrapalhar a vida dos outros. Megera. Eu te amaldiçôo por
todos os séculos e séculos, amém.
- Some da minha vista
ou vou contar agora mesmo que estás rondando as mulheres daqueles três. E
conto-lhe o mais. Tiro-te o gosto da festa.
- Não estás nem doida.
Vou arranjar-te um novo casamento. Bem que mereces. Não te preocupes com minhas
brincadeiras. Pancada de amor não dói. Bem sabes que gosto de ti. Convido para
zeladora da igreja. E não recuses. Sempre tive esta intenção.
- Velhaco... Por que
não me convidastes quando eu era mais moça?
- Deixa de bobagem.
Não estás também assim fora de uso. Quem não tem cachorro caça com gato. Vamos
nos sentar ali e tomar uma cervejinha gelada ou uma bebida quente. Reatar nossa
velha amizade.
- Vamos, mas quero
respeito.
- Dizem que botastes
chifre no teu marido?
- Ele não merecia
outra coisa. Só fez assanhar. Então tinha que ser culpa dele. É como a história
que contam: Casei-me com um côrno. É assim que se faz.
- Quero ver-te amanha
cedo na igreja. És a zeladora que eu procurava.
- Mas já te disse. Com
todo respeito.
- Decreto, todo
respeito que mereces...
*O conto pertence ao
livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.