O RACHÃO DA PAREDE*
João Henriques
da Silva
(In Memoriam
20/09/1901 – 16/04/2003)
Ninguém poderia ser mais diligente e
pontual do que Zé Amaro. Acordava com os canários, bebia seu café e ia direto
para suas ocupações, dos quais retirava o sustento seu e da mulher. Não andava
atrás de luxo, mas não queria que lhe faltasse para o trivial. Viviam os dois
sozinhos para sua casa sem qualquer preocupação com a vida dos outros. Ajudar,
sim, ajudava quando podiam e sem esperar que lhes viessem pedir. E apesar de
pobres, mereciam a consideração e o respeito de seus circunstantes.
Mas, um dia Zé Amaro sumiu. Sumiu e uma vivalma sequer foi saber notícias
dele. Curtiu momentos difíceis, mas se aguentou com os seus minguados recursos.
O reumatismo endurecera-lhe um
joelho impossibilitando seus movimentos para o trabalho. Era somente o que lhe
faltava. Não adiantara ter sido bom até então. Que explicação lhe daria para
justificar tamanho infortúnio. Se fosse um homem mau, haveriam de dizer que era
castigo e que os maus por si só se destroem. Mas no seu caso, não haveria
cabimento. Mesmo assim Zé Amaro não desesperava. Em todo caso falou com o padre
da freguesia e ele lhe disse que o sofrimento era o caminho do céu, os
desígnios de Deus. Já um espírita, seu conhecido sentenciou que estava pagando
coisas de encarnações anteriores. Era ter paciência até purificar-se.
- Purificar-me de que e para que.
Quem vai me sustentar, e a minha mulher. Não creio nessas histórias. Isto é
conversa para boi dormir. Já sei o que vou fazer. Vou ao médico. E o médico lhe
deu uma receita. O tratamento dependeria de despesas, de dinheiro e era o que
ele não tinha. Sentiu-se só e abandonado. Mas não iria entregar-se assim à toa.
Procurou um curandeiro e prometeu-lhe a única cabrinha que possuía.
- Não há de ser nada. Umas duas boas
garrafadas vão amolecer-lhe as juntas. O que cura essas coisas é raiz de pau. O
mais é besteira. Padre não entende de nada. Só sabe rezar e isto mesmo, às
vezes nem entende o que reza. E nem acredita. Doutor sem dinheiro à frente, não
funciona. E espiritismo, nem se fala. Só serve para amolecer o espírito do
sujeito. Aliás, para acreditar nessas bobagens já é necessário ter o juízo
fraco. Vou preparar-lhe a meizinha e verá o resultado. Não esmoreça nem se
impressione. Volte amanhã.
- Mas, até me curar, como iremos
viver eu e a mulher?
- Venda a cabra e vá se
arremediando.
- E como lhe pagarei?
- Quando estiver curado e se quiser
pagar. O que vale é a sua cura, poder andar como antes e trabalhar.
A cura não foi fácil. A doença era
braba. Depois das duas garrafadas, o joelho de Zé Amaro começou amolecer e veio
a terceira já mais branda.
- É, como lhe dizia Zé Amaro, esses
remédios de farmácia custam caro e não valem o que dizem. As ervas do mato,
sim, quando se espalham pelo corpo as doenças se diluem e caem fora.
Zé Amaro ficou bom e ainda tomou a
quarta garrafada para consolidar. E comentava: - Tivesse eu esperado por
receita de padre, doutor e espiritismo de garrafa d’água, para ver se não
estaria aleijado para o resto da vida.
Voltou ao seu trabalho normal e fazia questão de se exibir para mostrar
que estava recuperado. Encontrou-se com o padre e não tocou na questão. Mas,
padre Boaventura aproveitou o ensejo para falar do milagre.
- Está vendo aí, seu Zé Amaro, está completamente curado. A fé, meu
filho, a fé em Deus. Deus quando tarda já vem no caminho.
- Nada disso não, seu vigário. Foram as garrafadas de seu Ambrósio. Se
eu tivesse esperado pelo milagre estaria por ai entrevado e roendo as unhas.
Ninguém apareceu lá em casa, nem para nos levar um punhado de farinha. O mundo
é assim mesmo. Só se existe quando se pode ser útil a alguém. Fora disso, o
diabo pode ir levando de um em um.
- Mas foi Deus que lhe inspirou a procurar o mestre Ambrósio.
- Quem me inspirou foi a minha própria infelicidade e medo da fome.
Havia de recorrer a tudo. Se fosse como o senhor diz, antes de ir ao
curandeiro, não teria ido ao doutor, nem ao espírita, nem ao senhor mesmo. Mas
não precisa se preocupar comigo não. Já estou bem e tenho forças para cuidar de
minha vida e de minha mulher. Quando vendi minha cabrinha de leite, para
comprar farinha para comer, minha mulher chegou a chorar e ninguém viu nada
disso. Somente seu Ambrósio ia nos ver. Mas irei readquirir a cabra e guardar
vintém por vintém para as eventualidades.
No entanto o major Bonaparte rico e politiqueiro tinha a casa cheia de
gente, dia e noite. Mesmo assim, nem remédio, nem reza o salvou. E eu me salvei
só, com os remédios de seu Ambrósio. E agora aprendi a viver. Ninguém suga mais
o meu trabalho. Nem um recado levo mais de graça.
Quando não se pode mais servir, os urubus que lhe arranquem o fígado.
Não se perde nada. Pobre é a água que lavou bexiguento. Não serve mais para
nada. Ninguém vai nos pegar mais sem dinheiro para as emergências. O grande
amigo dos pobres, e que, aliás, só trás uma coisa ruim, isto é, os falsos
amigos, amigos dos tempos da bonança. Na miséria somem-se tudo, emburaca tudo.
Uma cachorrada gafeirenta!
É bem certo que a dor é quem ensina a gemer. Faria o impossível para o
mestre Ambrósio. Para os demais, dinheiro à vista e nem para todos. Alguns
havia, que nem a dinheiro serviria.
Quando estava com o joelho emperrado, sentado ou espichado na rede, sem
ter com que matar a fome, ninguém lhe aparecera. Que fosse tudo para a casa do
diabo.
- Vai, menino, diz a seu Zé Amaro que me venha tirar uma goteira.
- Sim, já vou.
- Quanto me paga?
- O senhor nunca cobrou essas besteiras.
- É verdade, mas o reumatismo me ensinou a cobrar.
- E quanto é?
- Cinco mil reis.
- Isto tudo?
- E ainda é de graça. Chame outro.
- Mas seu Zé Amaro, sou um homem pobre.
- E eu também. Suba lá homem. Tirar uma goteira qualquer um tira.
- Mas posso cair.
- E eu também.
- Então suba, mas não facilite.
- Olhe, são duas goteiras e vai lhe custar mais três mil reis. Oito ao
todo. E não faço por menos. Como é paga ou deixo uma?
- O senhor não era assim.
- É, mas fiquei. Depois que o reumatismo me pegou e ninguém foi me
socorrer. Meu amigo hoje, é o meu dinheiro. Dinheiro que abre portas, janelas e
consciências. Se eu cair do telhado, ficarei só novamente. Mas, como é tiro ou
não a segunda goteira?
- Tire homem, tire... Mas será a última vez. Muito caro.
- E deste preço só esta vez. Das outras haverá aumento. Sei lá de que
tamanho o reumatismo pode vir.
Com os oito no bolso, Zé Amaro deu um até breve e se foi.
- Explorador. Cobrar oito mil por duas goteirinhas à toa.
Quando chegou a casa já havia outro chamado. Conserto numa parede
trincada na dependência da casa paroquial.
- Pronto, seu vigário.
- Serviçinho de nada.
- Onde é?
- Lá na dependência, (e mostrou o que era) é rápido.
Zé Amaro cortou reboco, preparou caliça, abriu parede para amarração,
fechou tudo, rebocou e quando desceu, apresentou o serviço.
- Está bom seu vigário?
- Está. Só mandei lhe chamar por que já conhecia o seu trabalho. Fica
seguro e garantido. E agora, quanto lhe devo?
- Apenas dezoito mil reis.
- Quan... Quanto!!!
- Somente dezoito, porque é para o reverendo.
- Que doidice é esta, Zé Amaro. Estás doido?
- Não, seu vigário. Estive. Antes do reumatismo. Agora estou lúcido.
- Não pode.
- Pode e não tiro um tostão. Quanto o senhor cobra por um batizado, um
casamento ou uma missa de defunto, sem cansar, sem suar, sem gastar material?
- Ah! Isto é outra coisa. Passei doze anos no Seminário queimando as
pestanas.
- É, e eu passei dois meses e meio entrevado, passando miséria e
sofrendo. Ninguém foi lá me ver...
- Pago não.
- Não paga! Só sairei daqui com o dinheiro contado.
E sentou-se no batente da porta.
- Dizem que padre quer tudo de graça, mas comigo não. Espiche os cobres
para cá. Do contrário cobrarei o tempo perdido.
O padre viu que não tinha jeito e pagou.
- Muito bem, reverendo. Quando precisar estarei às ordens.
- Nunca mais. Só sou furtado uma vez.
- Furtar é cobrar oito mil reis por um batizado, com quatro palavrinhas
e água de cacimba benta. Mas aproveite que a maré vai passar. E não faça
propaganda senão eu conto o seu paleio com a arrumadeira. Pensa que não percebi
seu gaiato. E, além disso, a bichinha está fazendo barriga. Até logo, para não
continuar falando dos seus segredos.
- Vem cá, Zé amaro. Toma mais estes cinco. Na verdade o serviço foi
barato. Arriscado até a cair da escada.
- Quero, não. O que eu sei vale muito mais. Onde já se viu um segredo
por cinco mil reis. Não vou falar nada não. Basta que continue meu amigo,
guarde sempre um serviçinho pra mim e pague o que eu cobrar.
- Brevemente irei fazer a pintura da igreja e já está convidado.
- Então, faça festa e junte dinheiro...
Zé Amaro deu no pé gozando o medo do padre. Na realidade não havia
notado nada. Botara uma verde, colheu madura. Como era fácil descobrir as
coisas...
- Vai-te safadório. Além de furtar, ainda me deixa preso. Mas, como, se
não fiz nada para se ver. O bicho botou um laço e eu caí na esparrela.
Descarado. Bem que o reumatismo podia o ter deixado entrevado para o resto da
vida. Caí feito um patinho. E a saída, agora, é fazer como ele quer. Quando se
anda errado é assim. Basta ser apanhado de surpresa para dar com os burros n’água.
E aquele espertalhão e manhoso, pegou-me de boca aberta, como um paspalhão. E
será capas de bater com a língua nos dentes. Filho de uma gata. Mas, é quando
as coisas têm que acontecer. A merda daquela parede estava rachada há tanto
tempo e fui me lembrar de consertá-la. Irá me tirar o couro na pintura da
igreja. O mais certo é arranjar uma transferência. Ir para outra paróquia,
levando minha arrumadeira.
E pleiteou e conseguiu. Preparou as malas em silencio para sair de
surpresa. Chamou Deolinda e participou-lhe a viagem.
- É uma pena seu padre, mas não irei com o senhor.
- Não pode ser menina.
- Pode. E não tem outro jeito. O senhor sabe que seu Zé Amaro enviuvou,
não sabe?
- Sei, por quê?
- Vou viver com ele. Está tudo certo.
- Certo, como?
- Não quero mais ser mulher de padre.
- Ah! Bandido. Foi o rachão da parede mais caro que já vi. Miserável...
Muda de idéia, Deolinda.
- Não tem mais jeito. Já estou buchuda dele.
- Como pode ser, menina?
- Padre. Foi no dia do conserto da parede. Quando pensei que não, já não
havia mais jeito. Pensei que o senhor não iria se importar.
- Então, some-te de minha vista. Mas antes disso, vem cá para uma
despedida.
- Não, que seu Zé Amaro me proibiu. E me disse que se eu o traísse iria
contar tudo às fofoqueiras da cidade. E todo mundo, lá fora, pensa que eu sou
uma moça.
- Mas quem irá saber?
- Minha consciência. Ficaria com remorso. Pague-me o que me deve que
quero ir. Mas não será aquele dinheirinho do mês, não. Bote dinheiro para fora.
- Também queres me explorar!
- Não senhor. Foi seu Zé Amaro que me ensinou. Ele falou que contaria
tudo se não me gratificasse bem.
- Puxa diabo! Nunca se pagou uma rachadura de parede tão cara!...
Em 9.9.1986
*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.