terça-feira, 28 de julho de 2015

IV CAVALGADA LAGOA SECA





LAGOA SECA/PB PROMOVE A IV CAVALGADA DOS AGRICULTORES


O município de Lagoa Seca promoverá neste próximo dia 2 de Agosto, a IV Cavalgada dos Agricultores. O município é destaque no setor agropecuário do Estado e no Nordeste e o evento tem fortalecido essa realidade na região.
O evento tem como objetivo principal homenagear o agricultor, cujo dia é comemorado no dia 28 deste mês de Julho.
A organização é da Associação de Desenvolvimento Econômico, Social e Comunitário da Chã do Marinho (ADESCCM), Associações da Cana e Associação da Vagem Pai Domingos do Município de Lagoa Seca, que com esforços aliados com outros parceiros e patrocinadores prometem fazer uma produção ainda maior do que as edições anteriores.
Em breve divulgaremos mais informações, a exemplo do local de saída e de chegada, as atrações e o aparato de segurança. Siga a Fan Page Oficial da Cavalgada dos Agricultores e fique por dentro das novidades.
https://m.facebook.com/cavalgadadosagricultores

Mais informação ligue: (83) 9 9999-8206

ALUNO NOVO OU NOVO ALUNO?








OLHA EU AÍ DE NOVO. MAIS UM DESAFIO. DESTA VEZ CURSANDO LETRAS NA UFPB (EAD).

quinta-feira, 23 de julho de 2015

GORGOLINO

GORGOLINO*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)


            Num casebre de taipa, à margem do Riacho da Cachoeirinha, nasceu Gorgolino numa sexta-feira de agosto, dia treze. E lhe deu tanto azar, que lhe botaram logo um nome estrambótico, saído da cabeça do pai que adorava coisas esquisitas. Ainda mais, nascera de sete meses, raquítico, a cabeça grande e chata, as pernas finas e tortas e olhos miúdos como olho de cafife, donde veio depois o apelido: Gorgolino Cafife. Cresceu desmantelado. Tinha, entretanto a seu favor, uma inteligência viva e uma memória admirável. Quem não o conhecia na intimidade, não dava nada por Gorgolino Cafife. Os pais pediram a Deus que não nascesse outro igual e a mãe se queixava de que o Gorgolino era assim por que havia sido gerado numa cama de varas, amarrada com embira de caroá e forrada com colchão de capim amargoso em estopa de sacos velhos de fardos de carne de Ceará. O pai, entretanto, discordava. Deveria ter sido mau jeito e afobação da mulher.
            - Se foi assim, a culpa foi tua, Cagaíto.
            - Minha, não, Torfina. A pressa era tua, o chamego era teu. E agora o que se vai fazer com o cotado assim tão desengonçado!
            - Cria-lo para ver em que dá.
            - Que bicho, Cagaíto. Ainda ficas com tuas brincadeiras.
            - Brincadeira, uma ova. E a culpa é mesmo tua. Foi defeito da forma. Não há peça que saia perfeita numa forma aleijada. E o coitadinho que sofra as conseqüências. Eu bem que desconfiava daquela tua barriga cheia de altos e baixos, diferente das outras mulheres buchudas.
            - Toma vergonha nessa cara e vamos cuidar direitinho do Gorgolino. Nascer feio não é pecado não.
            Gorgolino cresceu um pouco. Tinha que ser mesmo baixote e fraquinho de corpo. Mas era ágil como um gato do mato. Punham-lhe apelidos que ele levava na gozação e por isto não pegavam. No entanto tinha uma habilidade danada de apelidar os outros e o apelido ficava como uma cola que não desgruda. Tinham medo dele por isso e mais ainda pela galhofa que fazia com a cara mais cínica deste mundo. Ganhou fama na escola, graça à sua memória fantástica. Era como um gravador novinho em folha. O que ouvia ou lia, ficava para sempre na memória. Além disso, imitava a fala de qualquer um e por isto sempre ajudava os colegas nas perguntas que a professora fazia. Bastava perceber que o menino titubeava na resposta. Mas a professora admirava-se que alunos burros estavam se sobressaindo de um momento para outro e chegava a elogiá-los. E ficava convencida que seus métodos de ensino eram os melhores deste mundo.
            Gorgolino crescia na estima dos colegas, mas tinha receio de que a professora viesse a perceber a tramoia. E de fato, com algum tempo aconteceu o inesperado. O Sabino, vaidoso e safado procurava um meio de complicar Gorgolino que sempre estava à sua frente em conhecimento. Menino filho de gente rica e prestigiada, não se conformava em não ser o primeiro da escola. Sabia que Gorgolino ajudava os colegas e certo dia gritou de lá:
– Quem respondeu foi Gorgolino professora!
            - Não acredito, conheço a voz de todos e não era do Gorgolino.
            - Imitação, dona Chiquinha. Vem fazendo isto há muito tempo, enganando a senhora.
            Gorgolino ficou calado enquanto a classe se levantava em protesto.
            A professora pediu calma – esta bem, turma. Sei que Gorgolino seria incapaz disso, no entanto se o fizesse seria apenas para brincadeira e camaradagem. Sentem-se, sentem-se.
            E foi, então, que o Gorgolino abriu o bico.
            - Fiz para ajudar o colega, professora.
            - Mas a fala era a do Trigueiro!
            - Era senhora. E repetiu a voz do Trigueiro, fielmente.
            A professora riu e perguntou se ele era também capaz de imitá-la.
            - Sou, mas respeito à senhora.
Mas no dia seguinte, antes que a professora chegasse; Gorgolino imitando sua voz dava uma aula de coisas meio licenciosas, enfim, pornográficas. E a professora entrou de surpresa quando Gorgolino explicava a barulheira dos gatos no telhado, o namoro mais escandaloso deste mundo. E imitava os miados até o momento em que os dois gatos se chocavam e começavam a gemer no auge da safadeza. A escola havia virado um saco de gatos. E Gorgolino perguntava à turma:
- E vocês sabem por que os gatos gostam de namorar no telhado?
            - Não, não, não.
            - Ora, também vocês não sabem de nada, vou reprovar todo mundo. Procure aprender as coisas seus beócios.
            A professora, oculta, esperava ansiosa a explicação. O Gorgolino não tinha cura. Também feio como era, tinha que compensar de alguma forma aquele desmantelo físico.
            - Pois bem, rapaziada. É só por que gato na tem cama. E no telhado ninguém vai interrompê-los.
            - E por que fazem aquele arauzé dos diabos?
            - É por que gato não é igual à gente que faz tudo escondido, calado, com medo. Gato faz questão de fazer zoeira para saberem que está na melhor e deixar os outros enciumados.
             A professora entrou na classe e ainda apanhou Gorgolino no seu lugar.
            - Que estava fazendo aí, Gorgolino.
            - Dando aula de catecismo, ajudando à senhora. A turma é de uma ignorância de fazer pena. Mas hoje ficaram sabendo de um bocado de coisa.
            - E se eu te disser que ouvi tua aula.
            - Viu! Gostou? Ainda bem.
            Quando terminou a aula, a professora chamou Gorgolino à parte.
            - Espertinho, não é? Onde aprendesse tanta coisa, Gorgolino.
            - Á toa. Ninguém me ensinou. A gente vai crescendo, vai vendo, vai guardando na memória.
            - Mas não fiques metendo essas coisas na cabeça dos meninos.
            - E vai morrer tudo burro, sem saber o que se passa no mundo dos bichos.
            - E sabes muitas histórias de bichos?
            - Um bocado, mas...
            - Mas o quê? Depois quero que vá me contando.
            - Mas tem umas de arrepiar.
            - Arrepiar o que, Gorgolino.
            - Muita coisa... Em todo caso à senhora é que é a professora e sabe o que esta pedindo...
            E Gorgolino fez um dos seus caricaturistas. A professora achou graça e o mandou sair.
            Gorgolino saiu pensando. Será nota dez todos os dias. Peguei o fraco da dona e agora é só tocar os pauzinhos.
            - Gorgolino, para que foi que a professora te chamou?
            - Para corrigir minha aula de religião. Achou que eu estava ainda muito atrasado. E passou-me um pito. A mulherzinha é mais violenta do que eu pensava.
            Gorgolino completou o primário e a feiura não impediu que fosse o primeiro da turma. Ficou então, sem saber o que fizesse. Meios para estudar fora nem pensava nisso. A saída seria mesmo arranjar um trabalho numa casa comercial ou onde fosse. Já estava taludão, um rapazinho e não queria viver só a expensas dos pais. Estava nesse dilema, quando a professora o chamou para ajudá-lo no ensino. Ganharia alguma coisa e ela ficaria aliviada de tanto esforço. Gorgolino aceitou e passou a ser professor. Pediu livros emprestados à professora e não perdia tempo.
            Gorgolino lia, lia e ia guardando o que lhe cabia na memória. A professora aumentou as matrículas e por fim abriu uma escola particular que entregou a Gorgolino. Mas o jovem não se conformava em deter-se somente em ensinar. Aquela cabeçorra era um mundo de imaginação e criatividade. Começou a rabiscar seus primeiros escritos.
            Levou-os ao jornal – “A Lamparina”, e lá saiu seu nome subscritando historinhas engraçadas; que serviam de admiração. – “O Gorgolino é jornalista” – comentavam. E foi entrando num mundo diferente. Mas até aí Gorgolino criava nome, mas não entrava dinheiro. Em todo caso continuava a escrever coisas e a guardá-las. Ia treinando. Veio-lhe então uma ideia. Ir ao jornal semanário – “O Facão” e pedir um lugar que lhe rendesse qualquer coisa. Conseguiu trabalhar de revisor e com direito a publicar seus escritos.
Bicho esperto; resolveu fazer pequenos comentários focalizando o que se fazia de bom na cidade, citando nomes. Aqui e ali escrevia algumas críticas sobre erros e descasos cometidos, sem cometer injustiças. Ao mesmo tempo rebatia críticas e fofocas à administração e aos homens de bem. De um lado, agradava, de outro assustava. Era bom que gostassem dele e ao mesmo tempo o respeitassem. Não tocava, entretanto, na vida privada de ninguém. Só uma coisa Gorgolino não perdoava. Era comunista. Corja de ambiciosos e vagabundos sem patriotismo. Uma canalha que não deseja bem a ninguém e só pensa em se locupletar com as coisas alheia. Iludir o povo besta, para depois escravizá-lo. Mentirosos e safados.
            Dentre os livros que a professora lhe emprestava, caiu-lhe nas mãos - ”Discursos Para Todas As Ocasiões” – Gorgolino ficou empolgado. Decorara vários sobre aniversários, casamentos, enterros e festa de batizado. Foi aí que descobrira o seu fraco e ao mesmo tempo o seu forte.
            Falar em público; achava que era a coisa mais bela da vida. Só não gostava das pregações do padre Januário, que ameaçava com o purgatório e o inferno e só terminava falando em caridade e pedindo dinheiro. Era sermão comercial. Gorgolino estava doido para estrear. Foi quando chegou o aniversário de dona Chiquinha, sua professora. Teria que fazer-lhe uma saudação. Mas não seria o discurso do livro. Imaginou elogios, criou frases bonitas, andou pelo dicionário a verificar os verdadeiros sentidos das palavras e armou-se para o ato festivo. Iria ver quem era Gorgolino. E no momento exato, depois das falas do Promotor e do Prefeito, Gorgolino assustou a todo mundo, pedindo a palavra. Muita gente esfriou. Que Gorgolino escrevesse suas historinhas e seus comentários, nada mais. Falar de improviso e logo depois do promotor era uma temeridade.
            E Gorgolino, sem titubear, numa linguagem simples, adequada e colorida, foi o mais aplaudido. Não sabiam e não podia entender como podia sair daquela feiura humana, tanta coisa bonita. Foi uma consagração. Dentro daquela cabeça meio disforme, corria uma fonte de cristal.
            Os políticos ficaram logo de olho nele. As campanhas políticas se aproximavam. Gorgolino recebeu convites dos dois partidos para se filiar e colaborar na campanha.
            - Não, não era possível. Não lhe convinha desagradar alguém. Pobre como era e além de tudo professor, precisava da amizade de todos. Além de tudo o que precisava era ganhar mais para dar maior conforto à família e ninguém havia se lembrado disso para lhe oferecer um trabalho melhor remunerado. Também não possuía vocação política. Era apenas um eleitor que não votaria no chefe político, e sim no melhor candidato.
            - É verdade, chefe, nunca alguém se lembrou do Gorgolino. Imagine se, por acaso, aderir aos nossos adversários. O bicho fala para emocionar. E é capaz de conduzir o povo. E sua feiura chama atenção e ajuda. Talvez dinheiro dê um jeito...
            - Então me faça uma sondagem. Quem sabe mesmo. Pode até quebrar-lhe a resistência. Dinheiro é como água, amolece tudo.
            Gorgolino foi procurado em casa, após o jantar. Nesses momentos as pessoas estão mais tranquilas e mais razoáveis.
            - Olha Gorgolino, a vida está dura e difícil. O chefe está disposto a te ajudar. Mereces um padrão de vida melhor. És um moço inteligente e capaz. No entanto, sem o vil metal, não há inteligência que o substitua. Pensa calmamente e dá uma boa esperança, se não quiseres fazer logo um acerto.
            - Muito bem. Receberei algum dinheiro durante a campanha e depois o saldo será menos alunos no meu ganha pão e um bocado de inimigos para caírem em cima de mim, como um bando de carcarás. Será isto que me irá sobrar. Além de outras rebordosas que posam vir. Dou o meu voto. É o que posso fazer. Obrigado pela boa intenção         
            - Deu em nada patrão. O Gorgolino é muito esperto. Tem receio das conseqüências, posteriormente.
            - Não será pela colaboração daquele macaco, que iremos perder a eleição.
            Gorgolino não era nem besta para se meter com a oposição, sem uma situação definitivamente segura. O prefeito foi visitá-lo. Fez uma proposta idêntica, também recusada. Daria o seu voto.
            - E se lhe arranjar um emprego na Prefeitura ou no Estado?
            - Só se for a caráter de efetividade. Preciso ter casa e comida asseguradas. Coisas passageiras podem desarticular ainda mais minha vida.
            - Então, tem minha palavra e pode prepara-se para a campanha que está à porta. Ganharemos folgadamente a eleição e seu lugar estará nas mãos.
            - E se perder, como ficará. Promessa não enche saco vazio. Primeiro o emprego. Em seguida a campanha.
            - Será que não confias na palavra do Prefeito.
             Confio sim, mas quem é pobre como eu, não tem como esperar. Acontece um imprevisto e Gorgolino não terá para quem apelar. Com o prestígio que o senhor tem tudo será fácil. Vamos aguardar. Não posso me arriscar. O Deodato ainda hoje está aí sem o emprego prometido e atolado até as orelhas. Além disso, ridicularizado pela oposição. Ninguém lhe da nada, além de novas e fugidias promessas.
            - Mas isto foi um caso isolado.
            - E eu posso ser o segundo...
            Os cargos da Prefeitura não valiam uma titica era lógico que o Gorgolino não iria aceitar. Teria que tentar junto aos secretários de Estado ou o Governador.
            E a solução sugerida pelo Governador foi criar um novo cartório na cidade e nomear Gorgolino. Mas isto dependeria da política. Em todo caso faria uma tentativa. O cartório, entretanto não saiu. Poderia ser nomeado agente fiscal. Mas o homenzinho só aceita efetivo. Roda pra lá, roda pra cá, e a nomeação não apareceu. Gorgolino tinha toda razão. A coisa era sempre a mesma. Sempre a mesma enrolada política.
            Amarrou-se na escola e no jornalzinho. Não deixava, todavia, de fazer seus comentários sobre a vida da cidade. Elogiava o que estava certo e criticava, sem ofensas, o que estava errado. Sugeria o que lhe parecia indispensável fazer em favor da comunidade. Nada de bajulação nem cortejamento.
            A oposição vitoriou. E, inesperadamente, Gorgolino foi convidado para secretário da prefeitura. Mas deu-se ao luxo de não aceitar. Daria qualquer colaboração ao seu alcance, mas sem filiação política. Não havia porque se incompatibilizar com a outra ala.
            O Gorgolino é teimoso e intransigente. Precisavam de seu trabalho na Prefeitura. Nada havia de política, nisso. Era a pessoa ideal para a secretaria. Além de honesto, sabia ler, escrever e fazer discursos quando necessário. Coronel Sabino, chefe político da oposição foi falar com o vigário numa tentativa de convencer Gorgolino, já conhecido como o professor Gorgolino.
            - Vem cá meu rapaz, quero falar-te com toda isenção de ânimo. Por que não aceitas a secretaria da Prefeitura. Não quer com isto te envolver em política. Querem é utilizar tua capacidade e teus conhecimentos. E mesmo que não fosse como queres, melhorar teu padrão de vida se não aceitas cargos de um lado nem de outro. É necessário que colabores com as administrações. Conheces os problemas do município, como se deduz pelos teus escritos. Dessa tua participação poderão resultar duas coisas. Melhorar teu padrão de vida e uma preparação para assumirdes a Prefeitura no próximo período. Conquistarás a simpatia do povo e a admiração dos políticos. Daí à prefeitura é um salto, apenas. Sabes que o prefeito – o Malaquias - é pouco letrado e sem um secretário como tu, ficará extremamente embaraçado. Além disso, elegeu-se sem tua participação na campanha. Não vai, portanto, querer te envolver. Acaba com essa timidez e esses preconceitos. Não levam a nada. Tua origem modesta não será um empecilho. Pelo contrário, é motivo de admiração por parte de todos. Vai aceitar ou vás nos decepcionar com essa tua caturrice?
            - Vou aceitar. Afinal, o senhor me esclareceu e me convenceu.
            - Muito bem, meu rapaz. Pega na perna da onça e segura. Já falei com tua família e ela aprova totalmente. Os teus amigos também.
            - Mas e essa gente do governo não irá cair em cima de mim, me perseguir?
            - Perseguir como e em que. Tens uma vida limpa, sem implicações. Irá é precisar de teu prestigio dentro da prefeitura. Pois não é. És amigo de todos e um amigo, onde estiver, é coisa valiosa.
            Na semana seguinte, Gorgolino assumiu a secretaria geral da Prefeitura. Os comentários saíram:
– Com o Gorgolino, aquele bestalhão de prefeito vai findar fazendo uma boa administração. O menino é bom em tudo, até na feiura. Aliás, a feiura lhe é um dom. Chama atenção e por isto todos o conhecem. Toda vez que tiver de falar em nome do prefeito para gente de fora, servirá de admiração. É um atrativo, por causa do contraste. Feiura, inteligência e preparo. Irão ver, não custa que o convidem para coisa melhor na administração do Estado. O bicho é bom de verdade. E, afinal, é um filho de nossa terra, pobre, simplório, modesto e devemos ajudá-lo também e prestigia-lo. Se houvesse feito isto antes estaria ao nosso lado. Mas o deixamos aí esquecido, por causa dessa nossa infame mentalidade política. Gente que não tem votos, não valia nada!...
            - Vamos cuidar cedo e apresenta-lo candidato a prefeito ou a deputado na próxima renovação. Da-se um golpe.
            - Isto se o coronel Sabino não andar em nossa frente... Aquilo é macaco velho.
            - Mas também quem era que havia de pensar que aquele cafuçu desajeitado fosse dar para alguma coisa. E agora está aí, secretário da Prefeitura, montado em nossas costas. E ainda mais escrevendo para jornal, arriscado a meter o pau na administração passada.
            - E se fizer, vai ter muita sujeira a denunciar.
            - Esta aí, aposto como não fará isto. É um moço, direito, sem certos preconceitos. Vai lá apenas para servir a sua terra e a comunidade.
            - Então vai demorar pouco, com essa cambada suja da oposição.
            - É melhor não se falar de sujeira. Que mais do que fez o nosso partido na administração. Aqui para nós somente, mais uma lata de lixo e por isto mesmo lá se foi à prefeitura. E verás que irão primar para não perderem mais o poder.
            E foi mesmo. A primeira coisa foi varrer o lixo das ruas e tapar a buraqueira. Inesperadamente foi feito um aumento aos servidores municipais, sem elevação dos proventos do prefeito que, aliás, doou os seus vencimentos ao abrigo dos velhinhos.
            - Outra sujeira. É só para fazer demagogia. Vai tirar muito mais dos cofres da Prefeitura. Era bom que se pudessem ver as folhas de pagamento e os recibos de compras e prestação de serviços.
            - Não creio, coronel. O prefeito sempre foi um homem honesto e bem intencionado, apesar de ser nosso opositor.
            - E por que não te mudas logo para o partido deles, se são essas jóias que dizes.
            - Jóias ou não, vamos aguardar. De mim, estou bem onde estou e bem sabe que nunca usufrui benefícios diretos nem indiretos da Prefeitura. Mesmo porque deles não necessitei. A rua onde moro não tem calçamento e vai ver que são capazes de pavimentá-la. Não te admires.
            - Ah! Se fizerem será de propósito para enganarem os trouxas. Gastaram dinheiro nas eleições e vai buscá-lo com um rodo. Esse negócio de obras para aqui e para ali, é para justificar os furtos. Sempre foi assim.
            - Foi, mas pode deixar de ser. Sabem que estamos de olho neles.
            - Bobagem, meu compadre. Tem certeza que não abriremos o bico. Devemos é pedir às onze mil virgens, que não revolvam o monturo da administração do nosso tempo. Francamente, ando de nariz no ar com receio de mau cheiro da lixeira que o teu dileto amigo acumulou em sua administração.
            - E por culpa tua. Alias fostes muito beneficiados. A rua de tua casa, bem pavimentada, estrada para tua fazenda, parentela empregada e o desvio dos lanches das escolas para tua criação de porcos. Imagina se tudo isto vem a furo. Será mesma coisa que espremer um tumor maligno. O prefeito que se foi; não tinha um pau para dar num gato. Hoje, fazenda, gados. Nem tem escrúpulos de tanta baboseira. E repara uma coisa. O atual prefeito não demitiu nem os teus parentes nem os dele. Do jeito que a coisa anda, vamos ficar sozinhos e adeus votos. Não elegeremos nem um vereador.
            - Já de disse que tudo isto é pura demagogia de politiqueiro sem vergonha.
            - Olha, estão falando que o prefeito vai publicar um boletim mensal. Isto me parece um tanto perigoso.
            - O medo que faz é o Gorgolino. O bicho é inteligente e preparado. Além disso, é metido a gaiato. Ridiculariza um com a maior facilidade, sem ofensa propriamente.
            - A boa política é calar o bico e quando possível demonstrar boa vontade com a nova administração. Esse tal de boletim mensal cuidará somente das realizações. Não se deve acordar quem está dormindo, nem cutucar o cão com vara curta.
            O boletim saiu e não fez qualquer referencia ao passado. Foi um consolo. O tempo passou como se tivesse asas ligeiras. Fim de governo e a ala governamental manifestou, por antecipação, o desejo de fazer o Gorgolino seu candidato. E alias não falava outra coisa. A oposição oficializou a candidatura de Gorgolino. Seria candidato sem opositores. Os governistas tinham de apoiá-lo, mesmo porque seria inútil apresentar outro.
            Eleito, Gorgolino assumia a Prefeitura com a presença dos dois partidos, coisa inédita em Casa Velha. Tomou conta da cidade e governou sem interferência dos políticos, agremiando uma maioria que liquidou os dois existentes, cujas sobras reuniam apenas, alguns reacionários, casco de burro. No período seguinte, elegeu os dois ex-chefes políticos, um para a Prefeitura outro para a Câmara Estadual. E os dois juntos, criaram um cartório para Gorgolino, o seu sonho, isso é um lugar efetivo, estável e rendoso.
             Ausentou-se da política em definitivo, casou-se, o que a todos parecia quase impossível. Almina apaixonara-se pelos versos que Gorgolino publicava e mais ainda pela sua feiura. E tornava-se certo o ditado: quem ama o feio, bonito lhe parece.
            Almina já andava lá pelos seus trinta e era uma moça vistosa e bem educada. Enamorara-se pela inteligência e desambição de Gorgolino. Aqueles versos publicados semanalmente eram como se fosse o seu missal. Esperava-os com ansiedade e sua paixão chegou ao auge quando leu as seguintes quadras:

            Tens um sorriso de flor
            Tem tudo quanto desejo.
            Se tu me matas de amor,
            Vou te matar com um beijo.

            Estou morrendo de sede,
            Sede de afago e carinho
            Da-me no embalo da rede
            O que não tenho sozinho.

            Por que Deus me fez assim,
            Tu não sabes, mas eu sei,
            Vem para perto de mim
            E só então te direi.

            Mas ninguém vem, quando chamo,
            Quando chamo ninguém vem,
            Despreza-me quem eu amo,
            Só minha mãe me quer bem.

            Sou triste quando amanhece,
            Quando o mundo todo desperta,
            E mais triste quando anoitece
            Sem uma janela aberta.

            Sei que nasci sem sorte,
            Sem estrelas, sem luar,
            Mas não é possível que a morte
            Me leve sem me casar...

            Gorgolino, com o seu cartório e uma mulher que não se assustara com o seu físico desengonçado, Sentia-se como criado asas para voar. Nada mais lhe apetecia.
            Com o casamento alcançara o impossível, com o cartório à estabilidade econômica. Quiseram fazê-lo candidato a um lugar na Câmara dos Deputados e recusou. Ajudaria a eleger um amigo, isto sim. A política não o atraia. Sentia nojo dos aproveitadores da coisa pública.
            A mulher concordava com ele. E o pior era impunidade. Não adiantavam denúncias. Ficava tudo no mesmo, mesmo quando comprovados os alcances.
            Nasceu o primeiro filho. Felizmente não se parecia com o Gorgolino. Diziam até que não podia ser filho dele...

*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.












quarta-feira, 22 de julho de 2015

LACIR

LACIR*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)  

Jurema, cidadezinha de poucas ruas, perdida lá nos confins do sertão da Paraíba, não perdoava amores que não fossem honestos e para casar na igreja. Casamento apenas no juiz era amigação, indecência, imoralidade, falta de vergonha. E o padre Santiago fazia questão de advertir seus fiéis contra qualquer liberalidade.        
Os namoros eram rigorosamente fiscalizados e o simples fato de uma moça mudar de namorado já era pecaminoso.
- Está vendo ai, a Mariana. Acabou o namoro e está se pegando com outro. Podem esperar pelo desmantelo. É uma doidinha. Como pode. O vigário se cansa de pregar, mas é a mesma coisa que falar no deserto.
- É isto mesmo, minha comadre. Os tempos estão mudados. Falta de respeito.
Lacir ouvia todos os dias aquela catilinária, inclusive, aos domingos, o sermão do padre Santiago, um puritano por conveniência profissional. Tinha que acompanhar as tendências do povo que dava água, pão, boas conversas e casa para morar.
Moça estudada na capital, não se acomodava com aquele puritanismo exagerado. Não era que pretendesse subverter a ordem normal da cidade, mas havia zelo demais e o convencionalismo asfixiava a população mais nova.
Algumas dúzias de velhuscas azinhavradas e carolas andavam de olho na rua e nas camarinhas e de nariz aceso sentindo cheiro de pecado por toda parte. Jurema deveria ser canonizada, cidade Santa. Uma moça que olhasse duas vezes para um rapaz já estaria se comprometendo e caminhava para a indecência.
E o padre Santiago era capaz até de citar os nomes lá de cima da escadaria do altar. Lacir estudava um meio de quebrar o rigorismo e libertar a cidade do bafio de santidade, antes que fosse tarde demais. Teria que juntar a mocidade e atirá-la contra o regimento do puritanismo fanático.
Deveria ser sigilo total no início, para evitar o amortecimento do impacto. Percebia-se que havia movimentos desusados em Jurema, mas desconheciam-se as causas e os objetivos.
As velhotas do comando tentavam descobrir qualquer coisa, mas nem ao menos sabiam de onde vinha o cheiro do xarope que estava sendo preparado. Rapazes e moças afiavam os cutelos para cortar até as raízes das velhinhas sociais de Jurema.
Acabar de uma vez com o puritanismo exagerado que pretendia manter a cidade na mais pura castidade. Enquanto Lacir prepara as moças e o ambiente para o desfecho do plano, Hortêncio cuidava da rapaziada e de um golpe que sacudiria Jurema como um terremoto.
A quarta-feira estava um dia esplêndido de sol e claridade. Às duas horas da tarde não se via um jovem pelas ruas. Nem moças, nem rapazes. As velhotas reunidas faziam comentários, os mais variados, com hipóteses, que, afinal, andavam bem longe da realidade. A líder da vigilância ia da sala de reunião á porta da rua, de nariz no ar a ver se sentia o cheiro de alguma coisa. E foi numa dessas idas e vindas que a bomba estourou. Apontava na entrada da rua principal uma passeata trepidante.
O ruído enchia o espaço. Não ficou viva alma dentro das casas. Moças, rapazes, numa algazarra infernal e de braços dados, na maior intimidade, avançavam rua adentro, rindo, cantando gritando como se estivessem fora de si.
As velhotas correram á casa do vigário, alarmadas.
- Corre seu padre, vá ver Jurema mergulhada na devassidão. Foi-se pelos ares todo o nosso trabalho. Do senhor também.
- Meu, meu, como?
-Tudo quanto o senhor pregava foi inútil. Vá, vá a rua ver a bandalheira, o deboche e tudo que há de pecaminoso. Parece até um bacanal. E o pior, Padre Santiago, é que o povo está assistindo e aplaudindo. Uma reviravolta na vida de Jurema.
- Acuda Padre, senão perderemos todo o nosso latim.
- Chame as autoridades, o delegado, para dissolver essa passeata imoral.
- Só se vendo. Marcham agarrados, abraçados e a canalha da rua engrossando a patifaria. Já fecharam até as casas comerciais para assistir o desfile cretino.
- Ora, dona Querumbina, quem pode com o povo, com a juventude. Deixem à turma dar expansão as suas alegrias.
- Mas estão mudando tudo, subvertendo a ordem religiosa. Só o senhor poderá dar jeito de conservar os princípios cristãos e agradar a Deus e as onze mil virgens.
- Não sei como não caiu pedaço de céu. E era bom que desabasse para esmagar a cambada que está zombando da moral religiosa e social.        
- Estarei com o povo e a juventude. Jurema estava carecendo de uma transformação radical. Isto aqui estava cheirando a mofo. A cidade parada, tudo proibido e somente reza e fofoca. O melhor é que caiam também no frevo, misturem-se com a mocidade para sacudirem a poeira e a teia de aranha. Olhem ali que coisa bela, a mocidade vibrando de braços dados. Agora sim, Jurema começa a viver. E sabem de uma coisa curta e certa, não me venham mais aqui com chateação.
Neste exato momento entra de casa adentro uma das fofoqueiras que havia faltado. As ventas acesas, as carótidas puladas, os olhos esbugalhados.
- Acudam! Que a cidade está perdida. Não se salvará mais e todo o nosso trabalho se foi na enxurrada.
- As mulheres da vida em Jurema! Seu Floriano acaba de me dizer. E foi obra dos rapazes. Quatro mulheres estão instaladas lá na ponta da rua. Quatro meninas que não se sabe de onde vieram, diz seu Floriano que novas e bonitas. Uma perdição. E estão agora mesmo lá atrás da passeata.
- Deus nos acuda e salve. Mande abrir a igreja seu vigário e vamos orar para ver se salva alguma coisa.
- Corra Padre!
- Correr para onde. Sumam-se daqui. Já estou cansado de viver no monturo que vocês criaram. Que se divirta a mocidade e a cidade se renove. Mulheres da vida, hein! Era disto que jurema estava se ressentindo. Vou é rezar uma missa solene de ação de graças. Entenderam! E já lhe disse, junte-se à turma renovadora se querem sobreviver. Uma cidade sem meninas livres é um perigo. A falta de relacionamento amoroso é contra a moral social. Vão ver sinhas peruas, como jurema vai crescer e florescer. Vocês não permitiam nem o namoro dos rapazes e moças.
- E não é pecado, seu vigário?
- Pecado coisa nenhuma. Quanto mais namoro, mais casamento, mais menino para batizar e crismar. A cidade está cheia de preconceitos bolorentos criados por vosmecês, pensando talvez que com isto, ganhariam o reino do céu. Pois perderam o tempo. Vão ver como a cidade vai ser visitada e como se tornará alegre. Quantas mulheres?
- Quatro! Está vossa reverendíssima achando pouco.
- Pouquíssimo, ora esta. A atração de uma cidade é o mulherio alegre. Quatro mulherzinhas não chegam para provar. E para fim de papo, vão a igreja ouvir meu sermão de domingo. Falarei sobre Jurema de ontem e de hoje. E é bom que abram bem as ouças.
- Vamos embora, e não poremos mais os pés nem no adro da igreja. Perdido já está, perdido fique.
E saíram resmungando e o assunto era o descaramento do padre Santiago. Era por isto que sempre mantinha em casa, arrumadeiras sapecas. Aquele não entra nas portas do céu nem feito rapé num corrimboque.
- Cala tua boca, comadre. Estás falando assim porque não tens mais farinha ou estás com inveja. A pessoa frustrada fica como um doente mental que vê tudo pelo avesso. Jurema foi até hoje uma cidade fechada para o progresso e só por culpa dessa turma de velhas que só esperam do mundo as tabuas do caixão e um buraco no cemitério. Além disso, empenhadas a fazer dos jovens um poço de água estagnada que não serve nem para reprodução de muriçocas. E o Padre Santiago deixou se envolver pela fofoca e dava asas à falsa santidade de todas vocês. Vocês sempre foram uns demônios.
- O que! Verás daqui pra frente em que vai se tornar Jurema. Vai apodrecer na libidinagem, na safadeza, na corrupção. Isto aqui que é o santuário da Paraíba, passará a ser o inferno. A cidade vai se encher de prostitutas e as famílias não terão mais sossego. Vai apodrecer com essas rameiras e os casados sem-vergonhas vão chifrar as mulheres. O diabo está solto em Jurema.
- O padre não é o que se pensava. Um fingido. Estás vendo. Saiu dizendo que iria observar a passeata, mas na certa está é metido no meio, farejando alguma coisa. É bem certo o ditado: quem não te conhecer que te compre.
- Quem era Jurema, e, o que vai ser. Um antro de perdição. Creio em Deus Padre todo poderoso...
- Que nada. Agora é que a cidade vai viver. Aberta e arejada. Já viram por ventura as quatro moças que chegaram para diverti à turma. Pois olha, são quatro coisinhas de causar inveja. Três moreninhas e uma aloirada.
- Francamente, se eu fosse um bicho macho já teria me enfiado lá.        
- Tesconjuro, velhota degenerada.
- Aqui só havia simulação e mentira.
O desfile vinha de volta, cada vez mais estridente e mais fogos. Era como se o açude secasse de repente, quando todo mundo estava morrendo afogado.
Padre Santiago, não aparecia e ai estava à coincidência. Das quatro mariposas passaram apenas duas morenas e a aloirada. A outra moreninha havia sumido. Onde andariam os dois?
No dia seguinte, jurema era outra cidade. As velhotas desapareceram do mapa. E não se falava noutra coisa senão nas quatro meninas e em namoro aberto. Padre Santiago fez um Sermão memorável, enaltecendo a ação da juventude sua visão em favor do bem estar de Jurema, dentro de uma nova filosofia de vida. Jurema não era mais do que um curral, onde se passava uma terrível sede de amor e procurava fazer uma escada para o céu, desprezando as leis da natureza.
Deus não queria ninguém no seu reino, conduzido pelas mãos e a vontade dos outros. Queria que se elegessem com liberdade e por si próprios. Venha à igreja quem queira vir. Vá para o céu quem entender que é melhor, contando que não seja pressionado, como se fazia com a boa gente de jurema.
Um grupo de puritanas, já fora de uso, querendo impor santidade, privando a juventude e a todos dos prazeres com as coisas agradáveis da vida. Jurema é hoje uma cidade renovada, liberta e aprazível.
Aqui se esperava o bem, vivendo no inferno das restrições e da violência contra os prazeres do amor, a coisa mais bela que Deus criou no seu momento de maior inspiração. Quem não quiser viver num mundo cor-de-rosa, que se tranque a quatro chaves dentro de sua burrice e incapacidade de amar.
Quando Nosso Senhor fez as mulheres belas e graciosas, não foi à toa. Criou Eva, uma perfeição de mulher e entregou-a a Adão, despertando-lhe a cobiça, quando lhe disse: não me toque na maçã. E como a maçã era fruta mais apetitosa do Éden, Adão preferiu arriscar-se e trincou-lhe o dente. Mas, quem já passou do tempo, amola-se, irrita-se e combatem-se aqueles que começaram a viver os seus sonhos de felicidade.
Tudo andou em Jurema. As velhas fofoqueiras e moralistas tiveram que aderir ao movimento renovador e uma delas montou uma pensão de mulheres, começando das quatro pioneiras nas varandas do amor livre.
- Mas Gargolina, assim também é demais.
- Ora, Januária, este é o melhor e mais fácil negócio de Jurema. Já te esquecestes de quando éramos novas! Casa cheia, e se enchendo mais. Qual é o ramo em que se ganha dinheiro deitada, enganando os bestas. As meninas bebem e fuma de graça, o dinheiro corre solto e estou vivendo folgada. Toda a questão é ter habilidade de arranjar meninas espertas e atraentes. Então, os casados abrem à bolsa.
- Quanto mais maduro o freguês, mais liberal. E por isto as meninas os preferem. E para solteirões e noutros casos especiais, trabalha-se a domicilio...
- E é pena que já não sirvo mais para dar de beber a quem tem sede. Imaginar somente é muito pouco...
- Por culpa de imbecis, perdi meu tempo e pelo que ouvi do vigário, o céu é aqui mesmo. O outro é conversa fiada...
- Se o céu fosse tão bom assim, cristo teria nascido lá...


Em, 11/09/1986

*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.

MARIANA

MARIANA*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

Mariana apareceu na cidadezinha de Serra Alta a procura de emprego. Ninguém sabia de onde viera e nem ela dizia. Morena de corpo esbelto e rosto perfeito, sempre com um sorriso na boquinha pequena e corada, que guardava duas carreirinhas de dentes sem falha e sem manchas. Uma tentação. Mas possuía um grave defeito; não dava liberdade a ninguém. Facilmente arranjava emprego em casa de família e lá se internou, saindo somente quando a mandavam fazer alguma coisa na rua. Casal sem filhos, já a considerava uma pessoa da família. Era inútil perguntar quem era e donde havia saído. A qualquer tentativa, ficava sempre calada como se tivesse um grande segredo em sua vida.
- Olha Mariana, a gente quer te ajudar. E por que não falas?
- Faz de conta que nasci aqui. Vocês são: meu pai e minha mãe. Quando eu der algum desgosto, podem me mandar embora. Sairei triste, mas sem me maldizer. Cada pessoa tem o seu destino.
E o curioso é que Mariana aparentava-se alegre, certamente para disfarçar suas angustias passadas e presentes. E o tempo corria sem esperar por ninguém. Já mais de um ano se fora e Mariana era mesma criatura, guardando fielmente os segredos de sua vida. Mas, pelo mundo existem muitos caminhos. Caminhos paralelos, caminhos cruzados, por onde circulam os destinos das pessoas. Ninguém sabia e ela nunca deixou transparecer, que muita e muita noite chorava em silencio a sua desdita. Mas, afinal de contas, quem era mesmo Mariana? Filha de pobre, filha de gente abastada ou rica? Era segredo seu. Andaria alguém à sua procura ou havia sido abandonada, expulsa de casa ou fugira como outras tantas meninas incompreendidas. A sua conduta correta não deixava transparecer quem realmente era ela. Mas certa vez, quando voltava das compras foi vista por alguém que a conhecia e a procurava.
Mariana não pressentiu. Acompanhada de longe, foi localizada onde vivia. Sem nada suspeitar, Mariana cuidava do arranjo da casa como habitualmente o fazia, quando bateram à porta. Despreocupada foi ver quem era. E por muito pouco não teve um desmaio. Era Cirilo, o seu único irmão.
- Mariana, Mariana, sou eu Mariana. Vem cá Mariana.
 E ela caiu nos seus braços, rindo e chorando, como uma criança que estava perdida. Foi um alvoroço na casa. O casal queria saber de tudo.
- Olhe, como é mesmo o nome do senhor?
- Cirilo, irmão de Mariana. Sempre a procurá-la e a mamãe a esperá-la.
- Mariana está aqui comigo como se fosse minha filha. Uma criatura adorável. Não desejamos que saia daqui. A casa ficaria vazia e triste nós iríamos ficar. Não sabemos nada a respeito dela. Nunca nos quis falar. Guarda a sua história como um segredo misterioso. O que houve, então, com Mariana?
- Um casamento infeliz de minha mãe. Um segundo casamento. Um padrasto viciado, violento e detestável. Eu quase menino não podia defender minha irmã e minha mãe. E por isto, sofri também de mais.
Agora estamos livres dele. Morreu inesperadamente, isto é, mataram-no. Não respeitava os outros e foi o fim de tudo. Alguns tiros de revolver numa briga, e ali mesmo ficou de olhos fechados e o coração parado. Procurava isso há muito tempo.
-E quem foi que fez isso Cirilo?
- Depois saberás. O importante é que estamos livres dele, sem medo, sem preocupações.
- Mas quem foi mesmo, Cirilo?
- Não irás acreditar, se eu te disser. É melhor não saberes. Não tem importância.
- Conta logo mano.
- Pois fui eu mesmo. Brigamos os dois, quando quis bater em mamãe. Ameaçou-me e eu me defendi. Foi só. Um monstro. Enquanto apanhava tu e eu, ainda me controlava. Depois era apenas um garoto. Mas puxou a faca e ainda cortou-me.
– Olha aqui. Atirei bem na cara do bicho. Depois bem em cima do peito esquerdo. Caiu, chamando-me de miserável. Não me importei e fiz outro disparo bem na boca. Queria, no meu ódio reprimido até então, que ele engolisse o palavrão. E creio que engoliu. Minha mãe não chorou. E apenas disse:
- Acabou-se.
E voltaram os dois. Mariana chorou ao sair. Chorou ao chegar e ao abraçar a mãe. Não havia mais medo.
Na casa de Mariana a tranqüilidade abriu um sorriso no rosto dos tristes.

*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.