segunda-feira, 27 de outubro de 2014

AS VOLTAS QUE A VIDA DÁ


AS VOLTAS QUE A VIDA DÁ*

João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)


            O mundo seria muito cruel se a vida da gente fosse uma coisa transparente e que se pudesse ver tudo que o coração sente, sem ter como esconder alegrias íntimas, mágoa e segredos.
            Seria assim como uma nudez completa do corpo e do espírito. Uma vida despida de fantasias, e segredos e a realidade esmagando as pessoas. Uma existência sem disfarces, sem mentiras, sem a doçura de sonhos e prazeres irreveláveis.
            Alzira pensava precocemente, ainda uma mocinha, como seria então a vida. E nem sabia bem porque lhe ocorriam essas visões aterradoras. Se Deus fizera o mundo como estava é porque assim é que deveria ser.
Mandaram-na para um internato em colégio de freiras. A mudança do ambiente, afinal, aos poucos, tranqüilizou-a. Tinha era que viver a vida igual às outras moças, sem receio que os seus segredos, as suas dúvidas e os seus desejos não estivessem bem guardados.
            Ansiava, então, que chegassem as férias, voltasse á sua cidade para rever o seu mundo anterior. Talvez fosse bem diferente daquela que a assustava, com a sua impressão de nudez.
            Pura criancice. Mas, por que lhe vieram àquelas idéias malucas, de uma vida sem segredos. Mal sabia que aquelas impressões provinham de suas inclinações secretas. Tinha medo porque já alguma coisa a empurrava para o inconfessável.
            E tornou-se uma moça com desejo ardente de se tornar mulher. E na realidade não tardou sua doação, quando, então, afogou-se sem esperar, numa realidade tão violenta que se sentiu por terra.
            Como lhe havia acontecido o desastre, só poderia ter sido por uma força estranha. E agora que se oferecera, abrira os olhos como quem estava caindo num abismo de onde não poderia sair. E o meio seria esperar o que aconteceria. Humilhada e triste, assustada e trêmula, passou a esperar. Que os poderes do destino a livrasse do pior. Dia após dia esperava os sinais acusadores. E esconderia até quando, se eles esperassem. No meio de tantas duvidas, sobressaltava-se com qualquer vestígio de mal estar. Poderia perder o apetite, ter enjôos e daí pra frente estaria inteiramente aniquilada. Teve sorte, porém. Os meses se foram sem anormalidade. Procurada outras vezes, negara-se de corpo e alma.
            Ninguém mais tocaria no seu corpo. Os meses que passara cheio de apreensões, e o medo apagaram-lhe todos os seus desejos. Poderiam reaparecer maias tarde com esquecimentos de suas desventuras.
            E quando pensava que havia se entregue a quem não poderia ampará-la, dava-lhe calafrios. Só poderia ter sido arte do capeta. Que só se comprazia com a desgraça dos outros. Havia sido criado só, e só para tentar as criaturas e com o poder misterioso de colorir suas artimanhas. Levava as pessoas para o lodo e para lama, como se estivesse esvoaçando entre roseiras e borboletas de asas douradas. E quando satisfazia o seu sadismo de moleque vadio e perverso, largava a vítima com um sorriso cínico. O diabo foi uma criação diabólica. Bichinho envenenado e azougado. Chega sem a gente sentir e nos leva para onde quer.
            Foi assim que levou Alzira para os braços de um marido malandro, sem ela perceber que mergulhava numa aventura. Suas primeiras idéias de nudez espiritual só poderiam ter sido insinuação do capeta.
            E aquela insegurança em que havia vivido, quem poderia ter sido, senão ele. Não era possível que ainda voltasse a segui-la.
            Resolveu, então, defender-se, protegendo-se contra qualquer tentação. E o certo seria internar-se num convento, onde as portas deveriam estar sempre fechadas, para o bichote descarado...
            Por segurança maior, poria uma medalha de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. E Alzira, entrou no convento, numa segunda feira de maio. E no primeiro domingo foi se confessar, caindo na inocência de contar o que lhe havia acontecido. Viera para o convento por desilusão, como uma criatura arrependida e que desejava penitenciar-se. Foi a sua perdição. O padreca fez-lhe mil perguntas indiscretas, até certificar-se da viabilidade de fazer algumas incursões pelas terras proibidas.
            - Não te esqueça, minha menina, de voltares á confissão. Quero deixar-te livre de pecados e santificada. Não pressentia que o diabo ainda a andava rodando novamente.
            E confiava nas auras sagradas do convento. A cada confissão a que se submetia, o confessor fazia nova perguntas sobre seu passado oculto.
            - Ora, Alzira, irmã Alzira, fazer o que fizestes involuntariamente ou não, jamais foi pecado. Isso é uma lei natural. Deus havia dito: “Crescei e multiplicai-vos” È isto que toda pessoa sensata deve fazer, mesmo que não chegue a se multiplicar. Seria um pecado maior, fugir aos preceitos da religião. Não te assustes, pois, com essas tolices. Pecado é outra coisa muito diferente. Pecado por exemplo, era contrariar as leis naturais e os mandamentos da igreja. E a igreja não proibia certas relações, tanto assim que fazia casamentos, permitindo a união entre corpos. Vai tranqüila, minha filha, pois não mereces nem a mais teve penitência.
            E Alzira ficou convencida que não havia feito nada de mau. Era uma noviça, sem compromissos religiosos sérios.
            Simulou-se doente e bateu asas do convento. Iria se casar o mais depressa possível, embora temesse essa resolução logo no início. E saía com a convicção que o padre Abdias queria era lanchá-la.
            Isto sim, seria um pecado contra o natural. Padre não tinha responsabilidade de família e poderia muito bem deixá-la sobrando para o resto da vida. Escapara do primeiro assalto, mas o segundo era duvidoso.
            Padre Abdias quando soube da fuga, teve um estremeção. Pois não era, já se considerava com a maçã nos dentes. “Bichinha esperta”. Também demorei muito na pregação. Da próxima darei logo o bote. E não esquecia o rosto e os gestos da noviça Alzira. A insatisfação o transtornava como se fosse marinheiro de primeira viagem. O certo é que notou que não era mais assim. Era, sim, uma paixão brutal. Certificara-se de que Alzira não voltaria mais. Noites de insônia e dias sem entender o breviário, atormentavam-no.
            Era o diabo daquela batina e a burrice de quem proibia padre de se casar. A menina percebera com certeza os seus avanços e nem era uma inexperiente. Preparou a bolsa de viagem e deu no pé para Serrote Alto.
            Alzira não poderia mais sair de sua vida, mesmo que arrancasse os botões da batina e atasse fogo de baixo para cima. Isto no último caso de não conseguir convencê-la a voltar para o convento. Desejava pelo menos vê-la sempre e empregar toda sua arte confessionária. Chegou a Serrote Alto e hospedou-se em casa do vigário. Seu velho amigo e ex-professor de teologia. Tinha dúvidas se deveria pedir-lhe conselhos. Pareci-lhe que não deveria ocultar o seu desapontamento e sua paixão por Alzira. E terminou confessando o seu estado de espírito, sua resolução.
            - Muito bem. Compreendo a tua situação. Não serias o primeiro a correr atrás de uma mulher e mandar urtigas a batina. No entanto, deves neste caso recuar, se é que se trata da menina Alzira Serra, que acaba de deixar o convento. Em primeiro lugar, se ela fugiu do convento é porque não se interessa por ti. Segundo, a família Serra não daria consentimento. Não podes imaginar o zelo que tem pela moça, única mulher do casal. Alem disso, tanto o pai como os irmãos, não são flores que se cheire. É muito mais fácil íris para o cemitério do que para o altar. E não serias o primeiro, nem segundo, nem o terceiro por motivos banais. Todavia a decisão é tua. Somente tua. Mesmo deixando a batina. Basta saberem que um padre está enamorado dela. E mais nada. Caso pretendas insistir, muda-te logo da casa paroquial. Não pretendo envolver-me com aquela gente.
            - Mais a minha paixão por Alzira é maior do que o medo. Creio que irei me arriscar.
            - Antes, porém, encomendas o caixão e contrata o enterro. E não contes com o meu acompanhamento. Aqui em Serrote Alto, foi onde o diabo perdeu as esporas e não encontrou mais. E sabes de uma coisa curta e certa, muda-te logo da minha casa. Talvez baste que a menina Alzira te veja e conte a família. Certamente já fugiu do convento por tua causa. Inclusive, já estou sentindo o cheiro de defunto e não tolero nem cheiro de vela acesa.
            Padre Abdias teve que se mudar. Havia, pelo menos que ver Alzira. Iria a todas as missas, que ela deveria assistir. E logo no segundo dia, domingo, lá estava perto do altar. Padre Abdias mudou de posição, procurando oportunidade de ser visto.
            E Alzira, surpreendentemente o avistou com um sorriso apaixonado. Foi o bastante. Alzira deixou repentinamente a igreja, um mau sinal.
            Padre Abdias a seguiu. Ela andava apressada na direção de sua casa. Padre Abdias sentiu cheiro de velório e mal teve tempo de enfiar as roupas na mala e pagar o hotel.
            - Mas, para onde vai o senhor? Hoje não é dia de transporte e aqui não tem carro de aluguel.
            - Não, vou atender um convite do vigário. Censurou-me por estar em hotel.
            A verdade é que o padre Abdias viajou a pé, esticando os passos, com a maleta na mão. Quando avistava ao longe, alguém que vinha na mesma direção, desviava caminho.
            Afinal, desapareceu da vida de Alzira. Alzira apenas não queria vê-lo.
            Não dissera a família. Não tinha dúvida, entretanto, que o capeta não largava de pregar-lhe susto. Para uma moça bonita e quase rica como era não faltava pretendente. Mas acontecia que muitos tinham medo da família Serra, o que dificultava a aproximação. A iniciativa deveria partir dela, pelo menos em facilitar os entendimentos com a família.
            Todavia, Alzira que não desejava iludir ninguém. Tivera o seu caso secreto, do qual escapara e não seria justo deixar de revelá-lo ao escolhido. E ai estava o problema. Sempre o diabo estava metido com sua vida. Deus a livrasse de ter o seu segredo desvendado. Conhecia a família que possuía. Pensara até em esperar para ver se o Almiro enviuvava e então lhe cobraria a dívida. Mas ao mesmo tempo refletia que o havia enganado e, por tanto não poderia prestar para uma união definitiva.
            A solução seria mesmo o convento, mas excluía essa alternativa por causa dos padres Abdias. Para onde fosse deveria ter um á sua espreita. Havia criado ojeriza. Ficar sem se casar seria a sua maior frustração. Somente o santo de sua devoção poderia dar um jeito. E apegou-se a São Mateus, sem deixar de lado Santo Antônio a quem agradava com fitas e velas. O meio seria esperar o milagre. Não seria possível que apegada com dois santos fortes, o diabo viesse ainda meter-se no meio.
            Suas agonias começavam a apertá-la. Foi quando então, apareceu o Ambrósio, viúvo ainda enxuto e sem filhos. Para viver com certo conforto, não necessitava da família Serra.
            Conceituado e merecendo o respeito de todos, Ambrósio seguiu em frente e era dos poucos que não temiam os Serra. Alzira aderiu e quando a coisa já estava bem avançada, chamou as falas. Casaria, mas havia uma condição que era aceitá-la como ela era.
            - Olha menina, eu preferia até que já fosse viúva, mesmo porque uma moça tem pouca experiência do que seja um casamento, e uma vida a dois.
            - Mas não é nada disso. Eu nasci diferente das outras moças. Uma anormalidade anatômica. Não tenho aquele sinal de virgindade, devo confessar-lhe para evitar futura dúvidas.
            - Ora, Alzira, aquilo é uma insignificância. Tanto faz, como tanto fez. A pureza de uma mulher não pode ser colocada, onde colocam. É uma estupidez social. O que importa é o respeito mútuo do casal. A boa compreensão, o bom viver. Não quero continuar só. A minha solidão é muito maior do que qualquer sinal de virgindade. Se me aceitas e tens certeza de que serás feliz comigo, vamos falar com teus pais.
            - Conhece bem meu pai e meus dois manos.
            - Eles também me conhecem. Não sabe o ditado, que balas trocadas não doem...
            - Pois é. Só tenho medo é de uma coisa. Um arrependimento teu, posteriormente.
            - Nunca e nunca. Acho que o senhor é o esposo que eu sempre sonhava.
            - Prepara o espírito de tua família. Ouve a reação e me digas. Se não favorável, casaremos fugidos, caso te decidas.
            - Mas lá em casa só tem feras. Qualquer desagrado vão logo aos extremos.
            - Isto para mim é boato. Formiga sabe que roça corta.
 Alzira conversou em casa com sua mãe.
            - Mas queres te casar com um viúvo e logo aquele, metido a brabo. Irá querer te manobrar e o resultado já podes sabe qual é.
            - Resultado nenhum. Serão eles por eles.
            - Serra. Alzira resolveu se casar e já escolheu o pretendente.
            - E quem é o meu desafeto?
            - É o viúvo Ambrósio. A menina que ser casar e a escolha será dela e foi bem feita. Se fosse um cafajeste, então, a coisa mudaria de figura. Só porque o homem também é macho, isto não. Será mais um durão na família. E por acaso, tua filha é também uma flor que se cheire, neste particular. Braba e decidida como é. Quem conhece bem Alzira sou eu. Caso não concordarmos é capaz de casar fugida. Muito pior, portanto!
            - Fugida!
            - E por que não? Não conheces a força que uma mulher tem quando gosta de alguém.
            - Torceria a orelha dos dois.
            - De quem, do Ambrósio? Que engano esse teu. Bem sabes de uma coisa, deixa a menina casar. É melhor que ficar encalhada, nervosa, desiludida e amuada. E queres um genro melhor do que o Ambrósio? Essa não: homem de bem, honesto e não tem medo de tua família. Alzira já poderia ter casado com outro se não fosse o medo que tem de ti e teus filhos. Ninguém teve coragem até hoje de se aproximar da gente.
            - Digas a ela que pode trazer o Ambrósio aqui. Mas não me venha com farrabambas... Darei o consentimento se bem entender e não com medo daquele porréia...
            - Fala baixo, senão irá, perder a fama.
- Lá me vens com tolices. Vamos casar a menina. Chama-a aqui.
            E no dia seguinte já estavam noivos. Alzira havia escapado do cerco do capeta.
            Casou sob as vistas dos curiosos, que achava, que somente uma moça desiludida poderia casar-se com um viúvo daquele, já acima dos quarenta e metido a cavalo do cão. No entanto, tornou-se o casal mais feliz da cidade. Inseparáveis nos passeios, nas festas religiosas e em casa num mar de rosas.
            Mas não faltaram outros comentários. A cidade estava cada vez mais cercada, com a junção das duas famílias terríveis, cada uma com um rosário de crimes e atentados.
            Mas, aconteceu justamente o contrário. Aumentou o respeito da população. E de certa forma o medo de represálias e nada mais aconteceu de grave no Serrote Alto. Alzira não teve filhos. Era estéril. Tinha porém, uma diferença a cobrar do patife que lhe causara tantas tribulações, que ela antes atribuía ao pobre e inocente capeta. Estudava uma saída sigilosa, quando o destino encarregou-se da tarefa. Zeferino, que lhe havia enganado, entrevou de reumatismo articular e sem cura. Paralítico, arrasado, ficou a pagar-lhe com juros dobrados, o mal que lhe havia causado.
            E certo dia foi com o marido visitá-lo, só para certificar que não era mais de nada.
            - É isto mesmo seu Zeferino. Conforme-se com as artes do capeta. Isto passa. Passa logo. Enquanto há vida, há esperança. Talvez esteja pagando pelo que tenha feito antes. Mais é bom que se cuide. Conheci um que morreu de fome. A paralisia atacou a garganta e a língua. Nem água bebia. O senhor pelo menos ainda se mexe, o que é uma grande sorte.
            - Ah! Antes tivesse morrido logo.
Ao saírem, a mulher de Zeferino fez suas queixas. - Era bem melhor mesmo que houvesse morrido. Tem dado trabalhão dos diabos. Também não se perdia grande coisa. Aquilo sempre foi um ordinário. Não parava em casa. A mulher era para cuidar da casa. As outras eram que tinham valor. Se morresse seria um grande alivio.
- Concordo, disse Alzira. Mais vaso ruim custa a quebrar.
- Tem nada não. Dou um jeito nele. Não agüento mais aquele aleijado, devorador de mulheres. Sempre foi um patife. Fez-me sofrer muito e agora fica a dar-me essa trabalheira dos diabos. Pensa que não sei o que aconteceu contigo? Sei criatura. O bicho falava dormindo e mesmo acompanhava os passos dele. Tive muita vontade de contar a teu pai. Não o fiz para não estragar tua vida.
- Então, por favor, continuas a guardar segredo para não me fazeres infeliz.
- Fica sem cuidado. Minha questão é com ele. Precisa sofrer mais. No tempo certo, convido-te para o enterro. O chaõzinho dele está preparado. Um chãozinho ótimo para entrevado...
E vinte e oito dias depois, Alzira foi convidada.                          
14-03-1986
*Este conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.


            

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

APOLINÁRIO

APOLINÁRIO


João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)


            O sitio Dois Riachos, era uma bola do ouro. Terras férteis, muita água, um trecho de mata com madeiras de lei, poucas declividades e com um clima agradável.          A família de Apolinário vivia ali há muitos anos e não pensava em sair. As colheitas propiciavam-lhe uma vida tranqüila e para quem não era ambicioso bastava. No entanto, Apolinário não havia nascido para a vida do campo e muito menos para o trabalho.
            Sua propensão era viver na cidade ocupando-se em qualquer coisa que não lhe marcasse as mãos de calo ou lhe aferventasse o juízo. Era uma boa vida. E como não encontrava uma saída para justificar-se, preferiu fugir e deixar um bilhete lacônico dizendo para onde ia e que não se preocupassem com ele. Iria procurar trabalho e viver de acordo com sua inclinação. Não se acostumava com a rotina da roça.
            - É isto mesmo, mulher, deixa o rapazinho seguir sua vocação.
            - Mas tenho medo que passe fome, não tenha onde dormir ou venha a se tornar um marginal.
            - Ora, Zélia, pensa pelo lado bom, mulher. Poderá ter tudo isso, melhor do que aqui. Pelo menos é o que ele julga, a vontade foi dele e se não encontrar o que deseja e sonha, brevemente estará de volta, arrependido e humilhado. Já te falei mulher, deixa o Apolinário pra lá. Aposto como não irá se perder. Não quer continuar agarrado na barra da tua saia.
            - Nem de tuas calças, também. Mas tenho saudades e aqueles receios de que falei.
            Apolinário bateu ceca e meca para encontrar o que queria. Um lugar onde pudesse viver sem fazer força. Logicamente não seria fácil viver como ele desejava. No entanto, a persistência abriu-lhe uma porta. Porta da casa de D. Albertina da Conceição, senhora já de muita idade e sem uma pessoa que lhe fizesse os mandados e ajudasse no arranjo diário da casa. Mulher franzina, nem alta nem baixa, com muita saúde e bastante dinheiro para ter uma vida folgada. Enjoava-se, todavia, de ter que fazer compras e de ter que andar sozinha, inclusive para a igreja. Apolinário parecia-lhe a pessoa que ela procurava. Menino simpático, de cor trigueira e olhos vivos. Havia-se cansado de dar empregos a mocinhas que frequentemente a deixavam sós pelos namorados. Explicou seriamente a Apolinário que o queria como companhia. Se não gostasse deste jeito, poderia desistir. Só sairás com o meu conhecimento; pago tanto por mês e terás comida e dormida a vontade. Era isto, exatamente o que Apolinário queria. Pequenos serviços, sem canseira, cama macia e alimentação farta. Agora a boa vida dependeria dele. Andar certinho, chegando a tempo, sem desculpas. Procurava adivinhar os pensamentos de D. Albertina, acompanha-la com dignidade, guardando o devido respeito.
            A intimidade poderia causar excessiva liberdade e originar problemas. O certo mesmo era guardar a necessária distância. Que os gestos, as manifestações de agrado partissem dela! Mesmo assim não se aproveitaria para ir além dos limites de sua condição de empregado ou serviçal. E dava-se muito bem com essa conduta.
            Mas certo dia D. Albertina chamou-o para pertinho de si.
            - Senta-te aqui, Apolinário. Quero falar-te. Sabes que vivo só e te dei emprego para me fazeres companhia. No entanto, percebo que vives um tanto distanciado. Quero que seja uma pessoa da família. Não um filho, mas um amigo fiel. E vou dizer-te: Sou sozinha, uma mulher nesta idade, sem filhos, sem irmãos, sem parentes próximos. Tenho minhas amizades, mas falta-me quem se aproxime mais de mim, ouça minhas confidencias, e, além disso, tenha para quem deixar o pouco que tenho. Portanto, se me fores sempre leal e amigo, deres-me a assistência que necessito, serás o herdeiro dos meus bens. Farei testamento no qual ficarão especificados as condições e pelas quais tudo te pertencerá. Não verás o testamento e, assim, terás que te guiares por ti mesmo. Certamente que não terás nenhuma obrigação de continuares comigo. Talvez estejas cansado de mim. De um jovem para uma velha como eu há uma distancia muito grande. E não quero exigir de ti qualquer sacrifício. Vejas bem. A decisão será tua.
            - Ah! Meu Deus, jamais poderia ser tão feliz de outra forma. É pena que não queira ser minha segunda mãe. Nunca poderia me queixar do destino ou do meu anjo da guarda. Sempre fui menino pobre e sem ambição. É certo que em casa, apesar disso, não me faltava o essencial, mas fervilhava dentro de mim o desejo de sair, conhecer outro mundo, tentar a vida de outra forma. Enquanto meus irmãos trabalhavam ajudando meu pai, pensava que aquele não era meu ambiente. Quem me chamava eu não sabia. Mas agora sei. Era a Senhora que me buscava sem me conhecer. Era uma coisa que tinha de ser. É Pena que talvez não seja a pessoa certa que procurava.
            - Por que, então. Desde que te conheci e estás em minha companhia parece que nunca mais me faltou nada. Teria muito desgosto se me deixastes. O que pretendo é que não te enjoes de mim. Isto encurtaria meus dias de vida e me sentiria perdida. Não te quero pelos trabalhos que fazes para mim. É pela tua presença e pela confiança que tenho em ti. Só o saber que não estou sozinha e que tenho por quem chamar com quem conversar e a quem contar confiantemente as coisas de minha vida, enche-me de conforto moral. Nunca soubeste o que é estar só, ouvindo apenas ruído do mundo lá fora. Parece tudo tão estranho tão distante que nos assusta. Não tive filhos. Durante vários e vários anos considerava isto uma dádiva do céu. Algumas amigas pareciam até ter inveja de mim. Filhos davam muitas preocupações. Tinha meu marido, o Gaspar que me dava tudo e isto me bastava. Mas, que ilusão, a minha. Gaspar Deus levou sem me dizer nada. Pegou-me de surpresa. Quando abri os olhos estava só, como uma criatura no meio de um deserto, sem ter a menor noção dos pontos cardeais da vida. Olhava para um lado, olhava para outro e tudo era mesmo um deserto. Não tinha ninguém a meu lado para me ver, ou me amparar. E continuei assim. E por que. Porque não me deram um filho apesar de tanto tempo de casada. Aquilo que me parecia um prêmio enquanto era uma moça e estava ao lado de meu marido, passa a ser o meu desalento. E certamente chorei porque nunca tive que me chamasse de “mamãe”. Quando se é moça, o mundo é um marido, cheio de ilusões, de vaidades, de doces esperanças, mais vai mudando inteiramente com a idade. São etapas da vida. Mudam os sentimentos, os desejos são outros, as ilusões vão se apagando e, principalmente, as vaidades desaparecem. Pequeninas coisas eram bastante para nos mudar de conduta, e só e só pela vaidade de moço. Hoje, isto é, com o tempo, a gente vai perdendo esses pruridos de mocidade e se identificando com a realidade, enxergando o mundo como ele realmente é. Não há quem possa com a ação do tempo. E, alias, geralmente não se lhe dá o valor que tem. Imagina se as pessoas tivessem de morrer com as mesmas ilusões da mocidade. Mas o tempo vai adaptando a gente para o final. Vai amortecendo-nos aos poucos, como se nós fossemos, aos poucos, nos desprendendo da vida. E muitos chegam até á caduquice, ao esquecimento desejando até ir-se o mais breve possível. Há pessoas jovens, que se suicidam, mas não é nem por loucura, nem por coragem. É por uma profunda depressão mental. A pessoa sente-se desiludido, abandonado, vencido e vai caindo, caindo até tentar contra sua própria vida. Doido não se mata. É corajoso, enfrenta qualquer situação. A humilhação ou o desespero também podem conduzir ao desatino.
            A humilhação é anticristã e anti-humana. Nunca humilhe ninguém Apolinário, especialmente às pessoas pobres e desvalidas. Não há nada que possa doer mais. Quando não se pode dar uma esmola a quem nos pede, fala-se com humildade, com doçura, como que fala a um bom amigo. Pedir já é uma humilhação e sabe lá o que é um velhinho, uma criança pedir por que está com fome. Nem sabe e espero que jamais venhas, a saber. Quem tem e nega uma esmola a quem realmente precisa Apolinário, não tem coração ou não tem medo do tempo, do amanhã, do que nos aguarda nesta vida de incertezas, com o tempo nos seguindo, sem esperar por ninguém. Quando eu era uma mocinha e me casei, não tinha a menor noção dessas coisas parecia que minha felicidade era eterna. Tudo um sonho dourado. Mas o tempo que não perdoa ninguém foi indo, indo, carregando em cima da gente, perdi meu marido, meus parentes mais próximos e terminei só como me encontrastes. E pensas que o tempo se satisfaz com isso! Vai caminhando, me alquebrando dia a dia, me consumindo. E faz com todas as mesmíssimas coisas. Não quero te assustar. Quero é advertir-te. Podes confiar em todo mundo, mas não confies neste monstro, mudo impassível e incansável e que não quer saber de quem vai, nem de quem fica. A marcha é a mesma em cima de novos e velhos. Muitos param no caminho mesmo sem que estejam cansados. E o tempo nem olha para traz para ver quem caiu quem ficou.
            Inventaram o relógio para marcar o tempo e a vida da gente. Mas o tempo não quer saber disso. E continua, dia e noite devorando tudo. Felizes os que conseguem envelhecer. Se as pessoas nascem e crescem e as sementes germinam pouco, nada lhe interessa. Não para nem nos dias de enterro:
            Esconjuro-te, safadório!
            Pois é, Apolinário ficará comigo se quiseres. Gostaria que sim. Mas talvez não te agrade a companhia de uma criatura que o tempo tem se encarregado de envelhecer e tem medo da solidão.
            Mas vamos deixar o tempo para lá, que ninguém pode com ele. Ficarás comigo se quiseres, é certo, mas gostaria disso, foi uma fortuna encontrar-te.
            - Bem. E aonde iria eu se encontrei tudo quanto desejava. Seria um ingrato e um tolo ao mesmo tempo. O que tem feito por mim, jamais poderei saldar. Quanto à oferta que me faz, é coisa a parte. De mim mesmo a recusarei. Nem tenho merecimento e seria um pobre de espírito se tivesse de ficar ao seu lado visando qualquer recompensa maior do que essa que tenho recebido. Tudo o mais será generosidade de quem me tem feito tanto bem. No entanto, a senhora mesma falou que a gente vai mudando com o tempo. Certamente mudarei também. Não para deixá-la, mas por outras razões naturais. Já estou ficando um homem e começo a sentir que algo está acontecendo comigo. E se amanhã pretendesse me casar. Tenho guardado quase tudo que recebi até hoje. Além disso, começo a gostar de uma mocinha que me parece gostar também de mim.
            - Para, para aí. Não deve dizer mais nada. Sempre pensei também nessa possibilidade. Se não te havia falado é porque te via ainda tão moço. Mas, isto seria o complemento de minha vida. Ter também ao meu lado uma mulher que tivesse filhos para alegrar a vida de uma velha que não teve a sorte de tê-los. Casar-te-ás quando quiseres e eu passarei a ser tua hospede nesta casa. Não digo que te apresses, mas qualquer dia é dia para realizares este teu belo sonho. Quero apenas que seja uma moça que me compreenda e se torne para mim, uma boa filha. Só isto. Decerto não lhes faltará nada, inclusive minha maior afeição.
            Apolinário completara sua felicidade. Tinha que se derreter para corresponder a tanta generosidade. Teria que ir visitar a família, mostrar-se dos pés á cabeça, ser abençoado pelos pais e abraçar os irmãos. Bem que alguma coisa lhe dizia que o seu futuro estava mais adiante. Se houvesse permanecido estaria igualzinho aos outros, trabalhando na roça, de mãos calejadas e sem perspectiva.
Contou tudo de sua vida e começou a ajudar a família, mandando-lhe mensalmente um pouco de seus rendimentos.
- É muito pouco, minha gente, mas um tostão em cima do outro vai formando uma pilha de moedas. Quem sabe se mais cedo ou mais tarde terei mais para somar é boa vontade de ajudá-los. Quem tem pouco, não pode dar muito. Mas a boa vontade faz do pouco muito. Era bom que fossem um dia conhecer minha segunda mãe. Dá-me muito mais do que posso dar-lhe em trabalho e carinho. Sabem o que é uma santa. Pois bem é ela. Mesmo assim morro de saudades daqui. Não há nada mais doce do que a família. Pais, mãe, irmãos. Fazem faltas em todo lugar onde não estão. Todos os dias, fico absorto olhando pros lados de cá, com vontade de beijar, abraçar, ouvi-los falar, gesticular. E antevejo tudo isto na imaginação. Mas, agora, tenho uma surpresa para dizer-lhes. Estou me preparando para casar.
            - Já, tão mocinho ainda, Apolinário.
            - É sim. Minha segunda mãe falou-me disso. Adoraria ter uma mulher em sua companhia. E não posso deixar de atender o seu desejo. Dar-me-á tudo.
            - E a moça?
            - Ah! Faz muito tempo que nos gostamos. Miudinha engraçada e viva. Por isto estou muito feliz. E quero que me dêem licença para noivar e casar. E aí então, Apolinário terá alcançado um de seus maiores desejos, fazendo exatamente o que minha protetora quer: uma moça em sua companhia e, sobretudo um filho para alegrar a casa e sua existência.
            - Ora, casa-te quando desejares. Só temos um receio, é que essa moça venha a perturbar o teu sossego e de tua segunda mãe.
            - Vai não, vai não. É uma pessoa tão simples, tão desambiciosa que dá gosto. Imaginem que não é uma moça pobre como eu e me quer tanto quanto eu a ela. Os pais possuem uma farmaciazinha e vivem bem. E além disso lá em casa não lhe faltará nada. Mas, se houver qualquer desentendimento ou desagrado, tomo casa e passarei o dia com a minha benfeitora. Mas isto não irá acontecer. Uma e outra se harmonizarão muito bem.
            Apolinário já ia voltar. Fazia os preparativos quando o pai o chamou.
            - Olha, terás que levar alguma coisa para tua segunda mãe. Laranjas mimo-do-céu, um cacho de bananas e inhames. Uma pessoa assim merece agrado.
            - Lá não falta nada.
            - Não é que falte Apolinário. O que vale é a lembrança, o presente. Estas pequenas coisas cativam as pessoas.
            - É mesmo. Não me ocorria este sentido das coisas. É vivendo e aprendendo.
            - Veras como ela vai adorar. Não se deve somente receber. Ás vezes um punhado que se dá vale muito mais do que um celeiro cheio.
            Apolinário entrou em casa como se estivesse enfiando as mãos vazias num tesouro. Levava as bênçãos dos pais e os abraços dos manos e recolhia-se á mais prazenteira sombra do teto que o acolhera nas suas horas de receios e dúvidas. Dona felicidade entrara abraçada com ele. Ninguém poderia ser mais feliz. Duas mães carinhosas, uma noiva á sua espera e mais tarde os sorrisos de uma criança a chamá-lo papai. Que bom.

Em 30.07.86


*Este conto pertence ao livro Vidas Nordestinas, no prelo.

domingo, 19 de outubro de 2014

ANINHA

ANINHA*


João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)




                A porta ia se abrindo como se estivesse sendo empurrada por uma sombra. E era como se fosse um sonho de Aninha esperando alguém. Dias e dias, ia na pontinha dos pés, na solidão da casa, sondar um e outro lado da rua na esperança de ver Marêncio voltando.
                E nessa ansiedade ia se consumindo lentamente, empalidecendo como uma pétala que se desprendera e se descoloria. Qualquer ruído lá fora, eram os passos de Marêncio chegando, mas tudo não passava de ilusão.
                Quando fugira de casa, Aninha estava certa de que sua felicidade estava unicamente nos braços de Marêncio. Era ele, em sua cega paixão, aquele príncipe encantado dos malvados romances de amor. Não sabia Aninha que a desgraça antes de ser desgraça, tem as asas douradas. E abandonou a casa, a família, para ir-se sem deixar ao menos um bilhete de despedida.
                E agora estava só, com medo da luz, das sombras e da solidão. Por fim desiludiu-se. O abandono dói muito mais do que todas as dores reunidas. Envergonha-se de ter de voltar, de olhar para o rosto do pai, da mãe, dos irmãos. Sim, era melhor sofrer morrer, cometer qualquer desatino.
                Mas dentro dela Marêncio deixara uma semente em formação. Um filho que não tinha culpa de não ter mais um pai. O miserável não queria outra coisa senão beber a água cristalina dos seus encantos. Naturalmente já andaria a enganar uma outra para depois deixa-la sem ao menos despedir-se, como fizera com ela.
                Começou então a odiar Marêncio. Estava certa de que não mais voltaria e a única saída era humilhar-se e tentar uma reconciliação com a família. Mas aí estava a dúvida. E se não mais a quisessem, naquele estado, sob os olhos da sociedade.
                Mas, de uma coisa tinha certeza. Jamais seria uma decaída. Teria que conseguir um trabalho honesto, em casa de família ou em alguma organização comercial. Optou por uma casa de família. Pelo menos teria alguém para condoer-se dela e dar-lhe assistência nos dias em que tivesse de rir e chorar quando chagasse o fruto, de suas ilusões perdidas.
                Ninguém a quis. Era, na opinião de todos, uma moça perdida. Em minha casa, não! Os mesmos preconceitos sociais, a mesma exclusão por fato natural. Aninha desesperou-se e não havia outra opção além daquela de enfrentar a família. Se não fosse aquele filho crescendo lá dentro, já teria tomado uma decisão corajosa.
                Para ela seria um remédio, mas nunca para o filhinho que além de tudo ia nascer sem pai. E tomou o primeiro transporte, enquanto lhe restava alguns níqueis na bolsa. E em sua cidade hospedou-se em casa de uma ex-colega.
                Foi um espanto de alegria. - Aninha, és mesmo tu, Aninha! Tua família está desesperada. Tua mãe não para de lamentar-se. Todos, enfim. E onde está Marêncio? Separastes dele?
                - Nada, menina. Deixou-me sem dizer uma palavra, sem uma razão por mais simples que fosse. Não andou por aqui, por um acaso?
                - Não. Pelo menos não se teve notícia.
                - Pois é. Abandonou-me tão logo lhe disse que estava grávida. Saiu sem dizer para onde, como se fosse ali, por alguns instantes. E vai para mais de um mês. Nem deu uma noticia, sequer. Vi-me só, abandonada, não consegui emprego e antes que não pudesse voltar, destinei-me a vir.
                Agora tenho medo. Fugi como uma louca, dominada por uma paixão doentia. Antes tivesse morrido naquele dia de infelicidade. Hoje só penso em vingança, com minhas próprias mãos. O Marêncio foi a pior criatura que tive sob os meus olhos. Nenhum canalha compara-se a ele. Fingia querer bem. Ia comigo para passeios curtos, não me faltava com seus carinhos, mas tudo fingido. Enjoou do corpo deve ter tido nojo do filho. Pelo menos poderia ter me trazido de volta ou dado uma explicação. Meu ódio é ainda maior por isso. E foram terríveis os dias e as noites de espera. Fui uma ingênua como tantas outras. Desconhecia que os cretinos são os maiores simuladores. São os morcegos da sociedade. Sopram para beber o sangue de suas vitimas. Estou louca para rever a família, mas não tenho coragem. E não sei o que fazer Maria José.
                - Ficarás comigo o tempo que quiseres. Somos somente eu e mamãe. Não temos problemas financeiros, bem sabes. E sempre foi minha boa amiga. Chorei muito quando sobe de tua fuga com aquele irresponsável. Não acreditava que fostes tão ingênua para te enganares com ele. Mas tudo aconteceu. Tua família sofreu demais e ainda sofre. Eras a única filha e o tesouro de tua casa. Tua falta foi como se houvesse caído à única rosa da roseira. Darei um jeito de avisar a tua família, se assim o quiseres. Não direi que estás comigo, mas sim, que tive noticias tuas. Verei a reação então te orientarás. Direi qual é o teu estado.
                - Sim minha querida amiga. Mas antes de tudo, vou me esforçar para arranjar um trabalho. Hás de me ajudar nisso. Não quero que me reencontrem na penúria em que vivo. Poderá ser que não me aceitem de volta e minha decepção será maior. Alias, é o que mereço. Saí de casa sem deixar um bilhete sequer, me despedindo. Parecia que não tinha pai, nem mãe, nem irmãos. Estava completamente cega.
                E por que fugi. Não havia razão. Foi um estado de loucura. O infame do Marêncio me convenceu facilmente. Atrai-me como uma voragem. Ateou fogo dentro de mim. Dominou-me e nem sei o que teria feito a mais se me exigisse. Queimava-me o corpo com os seus olhos e arrastava-me para o abismo.
                Meu anjo da guarda abandonou-me. Tornei-me simplesmente um poço de desejos. A mente não funciona. Deveria estar hipnotizada. Casaríamos-nos e diante de nós abrir-se-ia um mundo cor de rosa, caminhos floridos e o amor seria a palavra mágica. Eu estava na idade dos sonhos. Depois do idílio, retornaríamos a casa para festejar nossa felicidade. E aqui estou eu, minha doce amiga, presa numa cruel realidade. Trago de volta somente ódio e desejo de vingança. E terei de me vingar. Para te ser sincera, só não odeio este filho porque não é possível odiar aquilo que se gerou dentro da gente, num momento de amor. Mas gostaria de esquecer a herança daquele monstro. Muita gente ainda pensa que cada um tem o domínio de si próprio. Puro engano. Fui subjugada, dominada como uma criança que se engana com um brinquedinho colorido e barato. Cada um peça a Deus para não ser ludibriado. Uma força maior contra a menor. Mas nem adianta estar me maldizendo. Fui apenas uma criança infeliz. Nem sequer procurei aconselhar-me com os amigos. Todas estariam erradas. O cego não sabe onde pisa. Pode ser numa alcatifa e pode ser num atoleiro, uma lama podre.
                Maria José, depois de muito esforço, obteve um emprego para Aninha. Escritório de uma empresa comercial. Já era uma solução. Daí para diante dependeria dela. Aninha queria ver a mãe, em primeiro lugar. Seria mais compreensiva. Preocupava-a o que poderia acontecer. E, nesta dúvida, ia protelando.
                Mas aconteceu o inesperado. Dona Fulgência, amiga da família de Aninha, tinha certeza que a tinha visto. Não poderia ser outra. E procurou a sua família. Queria falar com dona Francisquinha. E conversa vai, conversa vem, até que, pedindo desculpas, perguntou por Aninha, se tivera dela alguma noticia.
                - Nada, dona Fulgência. Abriu-se o chão. Nem gosto de lembrar. Cá em casa não se fala. É sempre um motivo de mágua. O miserável iludiu a coitada e quem sabe onde está e como vive. Esta dúvida nos martiriza. Queríamos saber mesmo que ela não se lembre da gente. Sabe. É filha. Supões-se que vive bem. Só suposição que vive bem. Poderá também está sofrendo e a gente sem poder ajudá-la. O destino é, às vezes, cruel demais. Que Deus a ampare. Não perdemos, entretanto, a esperança de reencontrá-la. Não nos chega a menor informação. Todas as tentativas são em vão. O que nos consola é que um dia vem sempre depois de outro.
                - Pois ouça dona Francisquinha! E se eu lhe disser que vi a Aninha hoje.
                - A senhora deve esta brincando e o assunto é muito sério. Com essas coisas não se brinca.
                - Poderei estar equivocada. Não me aproximei dela, mas poderia até jurar que é ela mesma, a menos que existam duas pessoas totalmente iguais.
                - Onde, criatura de Nosso Senhor?
                - Fala, fala logo. Estou ansiosa. E como está ela?
                - De boa aparência. Vi-a na rua. Sei onde ela entrou. Deve trabalhar lá. Entrou na Empresa Cordeiro & Cordeiro. Apenas a segui de longe.
                - Esperei e ela não retornou.
                - Vamos lá agora mesmo dona Fulgência. Vou chamar meu marido. Deve ser um engano.
                - É difícil haver me equivocado. Isto é impossível, Francisquinha. Não iremos lá. Mandaremos uma pessoa que possa reconhecê-la. Vou eu mesma, se confiarem.
                - Está bem, vá. Informe-se primeiro do Senhor Cordeiro, procure falar com ele, caso seja ela mesma, traga todas as informações.
                - Bom dia Sr. Cordeiro. Desculpe-me, mas desejo saber se trabalha aqui uma moça, a Aninha Santiago.
                - Parece que sim. Está aqui há pouco tempo. Uma ótima empregada. Deseja falar-lhe? Vou mandar chamá-la.
                - É a senhora, dona Fulgência?
                - Eu em carne e osso.
                - Como soube que eu estava aqui?
                - Vi-a na rua, entrando nesta casa.
                - Falou alguma coisa com minha família?
                - Nada. Por enquanto, nada e só falarei se me autorizar.
                - E como estão papai e mamãe, e os manos?
                - Todos bem e todos tristes desde que você saiu.
                Aninha começou a chorar.
                - Porque não me procurou?
                - Tenho vergonha de aparecer neste estado e depois que fugi sem deixar noticias do meu destino. O ordinário do Marêncio abandonou-me logo. Só aproveitou de mim. Um canalha. Estou em casa de uma amiga e ansiosa para ver os meus. Tenho medo de que não me queiram ver. Mereço isto, pelo que fiz.
                Fui uma tonta e uma ingrata. E isto é que mais me dói. Vi-me desamparada e tive que voltar. Arranjei este trabalho e estou me mantendo e esperando um filho: cinco meses, já. Não sei o que será de mim.
                Dona Fulgência, depois de se certificar de tudo, inclusive dos desejos de Aninha, voltou a falar com dona Francisquinha.
                - É ela mesma. Trabalha em Cordeiro e Cordeiro. Está louca para vê-los, mas está envergonhada. Não sabe como irão recebê-la. Faz pena. Chorou como uma garotinha perdida. Não sabe o que faça. Está morando com a Maria José. Faz mais de um mês. É a mesma criatura. Apenas com o olhar de uma pessoa espantada, assim como quem anoitece no meio de um caminho desconhecido.
                Diz que foi enganada pelo Marêncio que a levou prometendo voltar logo para casar. Está grávida. O bicho sumiu logo que soube disso. Um canalha. Ela quer encontrá-la para vingar-se. Diz que o matará seja quando for.
                Não pelo que ela sofreu, mas pela ingratidão com a família. Ele a cegou e a enlouqueceu. Ficou fora de si, completamente dominada e fugiu.
Não sabe como poderá vê-los depois de tudo que aconteceu. Pede que a perdoem, mesmo que não queiram mais vê-la. Fiquei de voltar para dizer-lhe alguma coisa. Á noite em casa de Maria José.
                - Ora! Vou para lá espera-la. Iremos todos. Não lhe diga nada. É uma surpresa. Quem é que pode esquecer uma filha, Dona Fulgência. Muito obrigado. Queremos que nos acompanhe, mesmo para levar-nos até lá e amenizar o impacto.
                Antes das seis e meia, Aninha empurrou a porta. Entrou pensando no encontro com Dona Fulgência. O que iria acontecer. Àquelas horas já deviam saber onde ela estava. Entrou pela saleta e parou embevecida. Não era possível. Toda família ali a sua espera. Não teve outra emoção maior em toda a sua vida. Valeu-se dos olhos e, parada, começou a chorar. E foi então aquela revoada. Cada um que a quisesse abraçar primeiro. E por fim, choravam todos.
                - Bem, minha gente. Sei que choram de alegria, mas vamos parar, disse Maria José. Fique ai e conversem à vontade. Matem as saudades e enxuguem os olhos. E depois do longo colóquio, Aninha acompanhava, para casa, aqueles que jamais a haviam esquecido.
                Aninha reencontrou com a felicidade. E, intimamente, jurava vingar-se. Ninguém havia de saber, mas o ordinário do Marêncio, não enganaria mais ninguém. E meses depois correu a notícia: O Marêncio, que já andava com outra, inocente, aparecera, com três tiros e de olho virado. O irmão de Aninha contara-lhe, em segredo, como havia sido. Ouvi-te que teria de ti vingar.
                - A tarefa era minha. Acovardou-se e chorou. Aumentou o meu ódio. Dei-lhe um passaporte para o inferno.
                - Obrigado, mano. Merecia mais do que isso. Outras estão livres daquele canalha. Meus parabéns. Abraçou o mano e olhou-o com um sorriso feliz.


*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.