sábado, 27 de setembro de 2014

RETALHOS DE UMA VIDA

RETALHOS DE UMA VIDA*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 - 16/04/2003)

                Adílio, caboclo da roça levou toda sua juventude a sonhar com Jacinta, menina de olhos verdes que estivera na escola com ele. Havia de crescer, ficar moça bonita como ele imaginava. Não tinha como esquecê-la. Tudo quanto fazia era em benefício próprio e pensando no futuro dos dois. Não a perdia de vista, procurando encontrar-se sempre que podia. E não era em vão, pois Jacinta era alegre sempre que o via. Denunciava-se pelo olhar caído, o sorriso brejeiro e a fala macia como pétalas de rosas desabrochadas.
                Adílio não sabia como cabia dentro de si, tanta felicidade. No entanto, tinha medo de perdê-la mais tarde quando se enfeitasse de moça, não faltaria quem a ambicionasse com aqueles olhos cor de esperança verde como as águas do mar e as matas verdes da serra.
                E ele não tinha nada a oferecer-lhes; e as perspectivas não surgiam para ele já rapazinho; passa o tempo a imaginar no que poderia fazer para merecê-la. Dos trabalhos da roça, pouco, muito pouco, poderia esperar. Saído do primário, com um pouco de leitura, um pouco de tabuada e uma escrita só para o consumo; pensou em mil e umas coisas. Finalmente decidiu-se ir para a cidade vizinha tentar um emprego que lhe propiciasse alguma economia. E foi de casa comercial a casas de diversões, sem êxito. Enveredou para as casas particulares, nas quais alguém poderia querer um rapazinho para serviços diversos.
- Não, não, não, - eram as respostas que lhe vinham como se atirassem pedras no alto da cabeça ou ferissem o coração. Iria fazer a última tentativa e, então voltaria desenganado, procuraria esquecer Jacinta para sempre e daí por diante era conformasse com a sua falta de sorte. Bateu palmas a porta de um casarão e ninguém, parecia ouvi-lo. Insistiu mais um pouco. A porta abriu-se como se suspeitasse de qualquer coisa.
                - Bom dia minha dona. Eu sou Adílio e estou à procura de um trabalho qualquer. Preciso ganhar para viver. Saí lá da roça com o consentimento de meus pais e voltarei ainda hoje se nada conseguir. Tenho tanta vontade de ser gente e poder ajudar em casa. Há tanta necessidade e os trabalhos da roça não dão para comer e vestir!
                - E o que afinal, você sabe fazer?
                - De serviços grosseiros, quase tudo. Saí da escola primária e até agora nada arranjei.
                - Pois, olha, se queres mesmo trabalhar, poderemos dar-te serviço. Somos um casal de velhos e queremos quem cuide do jardim, quintal e faça as coisas miúdas: mandados, limpezas da casa. Não se pagará muito, mas em compensação, terás dormida, comida e roupa.
                Adílio aceitou correndo. Estava melhor do que esperava. Dona Alvina o mandou entrar, mostrou-lhe o quarto onde iria ficar nas dependências da casa e apresentou-o ao marido, tenente reformado da policia.  Homem simpático com cara de manso e risonho.
                - Então rapazinho irá morar com a gente, muito bem. Sou bom com quem anda direito e péssimo com aqueles que desobedecem ou fazem coisas erradas propositalmente. Vê logo se ti serve assim?
                - Serve sim senhor.  Não sei fazer o que não presta. Ando procurando trabalho, porque não desejo ser um vagabundo, um mau feitor!
                - Então obedece as ordens da dona Alvina. Eu nesta casa só faço comer, dormir e roncar. E ainda acho que estou fazendo demais. Fui militar e levei muito tempo a persegui muita gente ruim. E tenho ódio a quem não presta. Cansei de tudo isto e mesmo a dona Alvina, mais moça, mais descansada, gosta de mandar. Às vezes quer mandar até em mim, já pensou...
                Adílio agradeceu e foi se apresentar a dona Alvina e receber ordens. E dona Alvina mostrou-lhe o que tinha a fazer, sem necessidade de mostrar novamente.
                Já uma semana depois comentavam a satisfação de ter aquele auxiliar tão agradável e útil companhia. Como era bom ter uma companhia jovem e respeitosa, que além do mais realizava as tarefas mais pesadas da casa. Com o passar do tempo, Adílio confessou a sua protetora o verdadeiro motivo de sua saída de casa. Tinha quase certeza de quando pudesse voltar em condições de tomar compromisso, não a encontraria mais solteira. E sofria com isto. Jacinta já uma moça não iria esperá-lo. E nem tinha razão para isto. Não a culpava por isso. A culpa era de sua falta de sorte, de haver nascido pobre e de haver se apegado a ela com tanto ardor. Mas também não sabia por que o destino era tão caprichoso. Preferia nunca a ter visto para depois ter que perdê-la.
                Dona Alvina apercebeu-se do drama de Adílio. Sabia muito bem o que era um amor nascido desde a infância, numa criatura sensível. Amor que desesperava pela impossibilidade de uma realização. E teve pena de Adílio. Amar assim era uma consumição. Pior ainda, diante da expectativa de nem tão cedo chegar a uma decisão. Certeza ou desilusão.
                - Quando vais à casa de teus pais, não observas se há alguma ligação da menina com alguém, se ela está disposta a esperar?
                - Sei apenas que me recebe da mesma forma, com a mesma alegria comunicativa. Mas, na verdade não tenho ânimo de lhe dizer nada, medo de que se declare alheia as minhas intenções. Medo de dizer-me que está comprometida com alguém.
                - Pois olha Adílio, vamos te ajudar como pudermos. É natural que te queiras casar, especialmente com quem amas desde menina. Vai lá, pois, e fala seriamente com ela. Decide de uma vez. E não te aflijas. Caso ela não pretenda casar-se contigo, meu rapaz, não haverá nada demais. Há tanta moça neste mundão de meu Deus que não será difícil, escolher uma outra. Tens boa aparência e nossa proteção. Já te consideramos um filho e, francamente, não gostaria que nos deixassem. Tua presença nesta casa e na nossa velhice é assim como um raio de sol, alegrando a vida de dois velhos, sem sorte de ter tido filhos, e que vivia numa solidão terrível. Parece que chegaste aqui enviado pelo nosso anjo da guarda.
                Com a solidão nasce o tédio, cresce as desilusões e a vida vai-se apagando tristemente. Não nos lembramos antes que faltava alguém nesta casa. Veja como é à força do destino. É que havíamos de esperar por ti, a pessoa que nos faltava. Além do mais não tendo filhos, nem parentes nesta cidade, vivemos num isolamento de doer. Quando batesses à nossa porta, mal poderíamos supor que era a felicidade quem batia. Já deves ter notado que nesta casa muita coisa mudou. Dois velhos cada um num cantinho, olhando um para a velhice do outro, sozinhos, parece que se está olhando um fim de caminho, sem ter chegado onde queria. Pois é vai a tua terra e me trás a decisão. Faremos teu casamento e virão morar aqui com a gente. O que temos dá pra mais um e, mais dois outros.
                - Assim é demais. Não mereço tamanha felicidade. A senhora já falou nisto com o tenente?
                - Deus me livre de contrariá-lo! Bem, é muito fácil. Vamos lá.
                - Ora Alvina, caro rapaz. Teremos mais uma companhia. Teremos os filhos que não me destes. Eu tive a má sorte de casar com uma mulher maninha.
                - Você não é besta não. A incapacidade foi tua. A má sorte foi minha. Se tivesse me casado com outro, estaria com a casa cheia de filhos e netos...
                - Quem não sabe que a esterilidade foi tua. Mas foi bom assim, senão, não teríamos o Adílio aqui. Não te vou mais culpar por não teres filhos, ao menos um...
                Adílio botou-se para casa logo no domingo seguinte. Ia como se fosse levado pelas mãos de uma santa, confiante em que Jacinta não pertenceria ainda a ninguém. Entrou em casa de assas abertas, como um passarinho que vai ensaiar o primeiro vôo.
                Contou tudo aos pais. Pediu-lhes conselhos. Fez sondagens sobre a vida de jacinta, se sabiam que ela possuía algum namorado ou como estava          
                - Não, não sabiam de nada.
                E foi ter-se com ela. Recebeu-o com a mesma amizade do tempo de menina.
                Adílio, perguntou quando ela pretendia casar-se. Já estava uma moça bonita, no tempo de noivar e casar-se.
                - Que nada. Com quem, moça pobre como eu, ninguém quer assim facilmente. Também nunca me interessei.
                - Mas se encontrasse alguém que te quisesse e fosse do teu agrado?
                - Talvez sim, talvez não. Nunca pensei nisto. Pois é. Sempre andei contigo na lembrança. Nunca te disse nada com receio de me recusares.
                - Estou aqui justamente para saber se terias coragem de casar-te comigo. Temos onde viver e não nos faltará nada.
                - E se depois te arrependeres. Sabes que não tenho onde cair morta. Continuo sendo aquela Jacinta de nosso tempo de escola. Pobre e feia. Mal vestida e mal-amanhada. Tem muita coragem, não achas?
                Adílio contou-lhe o desejo que sempre teve de casar-se com ela. Sua saída para a cidade havia sido justamente com a intenção de obter mais para isso. Narrou como estava vivendo em casa de dona Alvina e do tenente. As promessas que lhe haviam feito, obrigando-o até a vir pedi-la. Iriam morara lá onde não lhe faltaria nada. E agora, se ela quisesse, considerava-se a criatura mais venturosa deste mundo.
                - Bem Odílio, para isso só falta mesmo fazeres o pedido a papai e a mamãe. É claro que aceito. Sempre sonhei contigo desde menina. E por isto nunca me preocupei com outros. Nunca tive namorado. Uma coisa me dizia que eu havia de ser sempre tua.
                - Então vamos até lá. Tenho pressa em voltar e contar em casa o resultado. Lá onde vivo, porém não serás empregada. Tomarás conta da casa comigo, mas não receberás nada. Devo tanto aquele casal que desdobrado em muitos nunca pagaria. Sou uma espécie de filho. Ave Maria, faço o impossível para não desagradá-los. Viviam sozinhos no casarão e depois que me aceitaram, mudaram completamente. Mas pensa bem em duas coisas principais, isto é, se queres mesmo casar comigo e se gostarás de morar assim em casa de família.
                Lá teremos o nosso quarto separado, na dependência, onde já vivo. Pode-se sair a qualquer hora, sem incomodar o casal. Praticamente tudo quanto recebi até hoje está guardado, com o pensamento em ti. Mas confesso-te que tinha receio de que poderias não me querer e já ter compromisso com alguém. Eram as únicas coisas que me martirizavam. Sofria, por isto, como um passarinho engaiolado e que levava o tempo batendo nos ponteiros da gaiola. Nem gosto de estar me lembrando dessas coisas. Confiava no destino, somente, pois nunca havia falado nisso contigo. Mas, felizmente Santo Antonio me protegeu.
                - Boa noite seu Canuto e dona Zeneide. Bem, vim aqui pedir Jacinta em casamento, já conversei com ela. Está de acordo. É para casar logo, logo. Papai e mamãe já sabem também. Acharam graça da minha coragem e riram como duas crianças. Gostam da Jacinta e estão de pleno acordo também.
                - Ora, meu rapaz, não temos nada a opor. Também gostamos de ti e só desejamos que sejam bem felizes.
                - Então vou voltar para o meu emprego e logo que puder e arranjar as coisas por lá, voltarei já para casar. É só ir à igreja e correr os banhos. Como é bom quando um sonho se realiza assim.
                No mesmo dia Adílio está contando o resultado de seus amores.
                - Está muito certo, mas tem uma coisa, o casamento será aqui em casa. Não se fará festa, mas teremos o maior gosto em fazer um casamento nesta casa, prazer que não pudemos ter por causa desta minha mulher, maninha!
                - Culpa tua, só tua, que não tivestes força pra isso...
                - Eu, hem!
                - Mas a moça é pobre e eu não tenho meios para ajudá-la a comprar o vestido, os sapatos e outras coisas que ela precisa. Assim, a gente se casa mesmo na igreja, caladinhos e com qualquer roupa. Até de chinelos.
                - Nem pense nisto. O enxoval de um e de outro será oferecimento nosso. Aliás, vamos preparar o quarto. Cama de casal, espelho, e umas destas cômodas que estão sobrando aqui. Deves ir buscar a Jacinta para levá-la a costureira. Não se casa um filho de outra forma.
                - Mas, tudo isso? Se adivinhasse nem teria falado em casamento. Dar tanto trabalho e tanta despesa.
                - Olha, temos de sobra para isto, e a satisfação é muito maior. Vamos comprar também as alianças. Queremos tudo certinho, Adílio!
                Adílio chegou no dia seguinte com a mãe de Jacinta e ela. E foi uma admiração. Jacinta era uma jóia de menina.
                - Ah! É assim seu espertinho. Quem não queria juntar as cobertas com um petisco desses, seu cara de anjo, - divertiu-se o tenente. – Alvina toma conta da menina e prepare-lhe o enxoval. O noivo vou cuidar eu. Os bolos também serão com você. Não haverá festa, mas como vão vir convidados, prepare um jantar, As bebidas serão comigo.
                O casamento seria quinze dias depois.
                Em casa de dona Alvina, o casal não tinha mais nada a fazer. Jacinta e Adílio não deixavam tarefa nenhuma sem cumprir. A casa, o jardim, o quintal, eram zelados como um altar de igreja.
                - Tem uma coisa sinha dona Jacinta. Queremos um neto, ou antes, um casal. Não tive a sorte com a mulher e a casa ficou vazia.
                - Adílio não me faça como o tenente que falhou completamente. Com toda a arrogância de militar brioso, faltou pólvora no fuzil. Aliás, deveria ser uma espingarda de suvaqueira...
                O casal decidiu reservadamente que, com o desaparecimento dos dois, os bens seriam passados para Adílio. Fariam testamento e as transferências legais. Seria uma surpresa futura.
Em, 23.07.1986

*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”. No prelo.


quinta-feira, 18 de setembro de 2014

MAÇARICO



MAÇARICO*

João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

Antonio Marçal, menino filho de engomadeira, criado numa pobreza de fazer dó, ao lado da irmãzinha Jatí, teve muitas vezes vontade de haver nascido morto ou de não ter nascido. Além da vida de penúria que levava, e de ver a mãe naquele sacrifício tremendo dia e noite, a lavar e engomar para poder sustentarem-se; a natureza havia sido ingrata com ele. Braços e pernas exageradamente compridos e a cabeça também disforme, chata e volumosa. E não tardou que lhe pusessem o apelido de Maçarico. As canelinhas finas, à falta de alimento davam-lhe mesmo o aspecto daquele esquisito pássaro das lagoas e margens dos rios. Tinha desgosto de tudo isso. Mas na verdade o que mais lhe doía era ver a mãe e a maninha, desconfiadas, de olhos compridos como quem espera alguma coisa que não chega. E não era outra coisa senão a falta de tudo em casa. Medo de ter que dormir com fome e acordar sem ter o que comer.
 Maçarico saia pelo arruado a procurar pequenos trabalhos, fazer mandados, limpar quintais, contanto que voltasse para casa com alguma coisa.
O que ninguém via, ninguém sabia, nem antevia era que naquele corpo franzino e na naquela cabeça chata, estava uma inteligência privilegiada. Facilidade de aprender, vocação para a música e dotado de uma voz agradável. Sem roupa par ir à escola, ficava muitas vezes à janela da escola, pensativo e invejoso. Mas um dia, pensava, teria que ir.
Observava o mundo dos outros meninos, as casas onde viviam, as roupas bonitas, muitas delas que sua mamãe engomava e aquilo lhe dava coragem e ânimo pra chegar até lá. Foi crescendo mais, sempre magricela, até que conseguiu um modesto emprego de serviçal numa casa de família. Esforçava-se como um desesperado para não perder aquele rico emprego. Fazia os mandados correndo e cuidava de suas tarefas com o maior zelo. À noite, depois do jantar, davam-lhe as sobras para sua mamãe e a irmãzinha. Às vezes um pouco mais do que as sobras. No final das semanas recebia o salário e corria para entregar à mãe.
-Toma mamãe, compra alguma coisa para as duas. Estou comendo bem. E na hora das refeições fico a me lembrar que talvez não tenham comida. E o que como, me amarga como fel. Mas um dia, mãe, essa pobreza vai se acabar.
Já familiarizado com as palavras, pediu a dona Maria das Graças para lhe ensinar a ler e escrever. E logo em seguida, ficou imaginando e voltou a falar com dona Gracinha.
- Não tem jeito não, nem me lembrei que não tinha dinheiro para comprar a cartilha, caderno e lápis. O dinheiro que recebo é para mamãe e maninha. E foi saindo desconsolado.
- Vem aqui, maçarico. Não fiques triste. Vou comprar tudo e te ensinar alguma coisa.
Maçarico começou a chorar, chorar de alegria. O seu sonho começava a realizar-se. Apressava o desempenho de suas tarefas para apegar-se à cartilha e a desenhar letras na lousa, onde havia, na parte de cima, o ABC escrito e bem legível. Procurava imitar corretamente a bonita letra de dona Gracinha. À noite levava para casa o seu material de estudo e não perdia tempo. Não” andava” na aprendizagem. Voava como se quisesse percorrer o mundo num vôo só. O progresso era tão rápido que resolveram mandá-lo à escola. Trabalhos pela manhã e aulas à tarde. Inteligência e boa vontade lhe sobravam. Tornara-se o melhor aluno de sua classe. Chegou o Natal e ganhou um presente dos patrões. Um realejo de boca. A esta altura já não era mais o Maçarico. Passou a ser Antonio Marçal. Mas até gostava de seu apelido.
- Chamem-me mesmo de Maçarico. Estou tão habituado, que o apelido chega a me fazer falta. Antonio Marçal nem parece que sou eu.
O realejo de boca tinha sido uma dádiva da providência. Tinha facilidade em aprender músicas e não tardaria em aprender várias coisas. E foi mesmo. Parecia até que as músicas saiam do instrumento como por encanto.
- Vem cá Marçal. Como aprendes com tamanha facilidade?
- Sei não. Trago as músicas na cabeça e é só ir soprando no realejo. Acho que é assim, sabe dona Gracinha, vou juntar dinheiro para comprar uma sanfona. Ora que bobagem esta minha. Comprar uma sanfona. Morro de velho e não chego lá. Mas talvez arranje uma emprestada. Nem isto. Com uma bichinha dessa iria ganhar dinheiro para comprar mais o que comer.
E Maçarico, nestas ocasiões, olhava distantes, absorto, como se aquilo fosse um sonho inatingível. E dizia de si para si: - Quem nasce pobre, nasce marcado pelo destino. Com uma sanfona, tocaria nas festas, nos bailes, nos forrós e poderia chegar a casa com a bolada. Era bem certo o ditado. Deus só dá toucinho a quem não tem cambito. Sabia que aprenderia logo. As músicas estavam na cabeça e as notas estavam nas pontas dos dedos. Dona Gracinha e seu Anízio ficaram se olhando, pensando na família de Maçarico e naquela preocupação de Marçal. Não se esquecia da mãe e da irmãzinha, que em casa talvez estivessem esperando pelo pouco que ele levava. Quando Maçarico despertou daquele sonho de menino pobre, procuraram incentivá-lo e aumentar-lhe as esperanças.
- Quem sabe se antes do que pensas, poderás comprar tua sanfona. Deus ajuda as pessoas boas.
- Uma sanfona daquelas pequeninas. Nem queria mais pensar. “Maçarico, o sanfoneiro e cantador de baião e de bonitas canções sertanejas”. Nem é bom ficar falando nessas coisas impossíveis.
Maçarico desdobrava-se nos estudos e no realejo de boca. Ao mesmo tempo procurava aprender canções e tudo que chegasse aos ouvidos. A cabeça tinha espaço suficiente. Para isto Deus a fizera daquele tamanho. Pouco mais de um mês depois, Maçarico teve a grande surpresa. Uma sanfona das menores estava em suas mãos. Teve vontade de pular com aqueles pernões finos, cantar, gritar, endoidecer de uma vez. Mas por instantes, Maçarico ficou pensativo e meio tonto: - E se não tivesse jeito para tocar sanfona. Realejo de boca ia bem, pois soprava as músicas e o bichinho repetia. Com os dedos era outra coisa. Poderia ser um fiasco dos diabos e Deus que o livrasse de acontecer um desastre. Com a sanfona não mão, estava com medo de começar. Poderia ser um fracasso. E foi para longe, enfiou-se por baixo do velho cajueiro, de onde ninguém ouvisse o som da bicha. Abrira-a, apreensivo, meio abobalhado. Como seria o som da bichinha. E antes de começar abraçou-se com ela, deu-lhe uma beijoca, olhou-a por todos os lados, examinou os teclados, firmou-a em cima da perna e puxou o fole. Quase cai de costas. Não, não era possível que aquilo estivesse acontecendo. Bem que a mãe e a irmã poderiam estar ali assistindo tamanha felicidade. Fez alguns ensaios e notou que não era tão difícil como supunha. A coisa dependia de acertar as notas. O certo é que oito dias depois já solava qualquer coisa. Foi ao sanfoneiro Idalino tomar algumas lições.
– Isso, menino é pra quem tem bons dedos e bom ouvido. Mas vale a pena tentar. Tem uma coisa a teu favor, a feiúra. É difícil ver um bom músico bonitão. Todos são de minha marca e da tua. Começa como estou de ensinando e irás longe. Tens que ter bom ouvido. Tocar por música não tem graça. A melodia sai do ouvido da gente.
Maçarico botou a sanfona de lado e se foi. Meses depois já tocava o que queria. Deu uns ensaios gratuitos para ser conhecido e começou a cobrar. Festas, bailes de casamento e batizados, aniversários e mais o que aparecesse, lá estava Maçarico, tocando e cantando.
- O bicho é feio, mas é um cobra... Dizem que já arranjou até namorada.
- É isto mesmo, Abdias, mulher é bicho arreado por canto e música...
Em casa de Maçarico não faltava mais nada. Quem visse a mãe e a irmã não acreditaria que fossem as mesmas: Sadias e coradas, tranqüilas. Maçarico era cuidado como se fosse um santo, aliás, muito mais, pois enquanto apelara para a santada, à fome era a mesma ou pior. Nem feijão, nem farinha... Com Maçarico, a mesa era cheia do essencial.
- Reza meu irmão, mas cuida na tua vida. Toma o exemplo da casa do Maçarico. Quanto mais rezavam, mais o pão encolhia...

Em 1987.

*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.

sábado, 13 de setembro de 2014

SECAS DO BRASIL




CONHEÇA OS DEZ MAIORES PERÍODOS DE SECA DO BRASIL


O ano de 2014 está sendo um dos piores nesse quesito. Contudo, já houve secas piores que a deste ano

24 de Agosto, 2014

Grandes secas são comuns de acontecerem no Brasil, ainda mais na região conhecida como Polígono das Secas, que abrange Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia e parte de Minas Gerais. Além do imenso e vasto território que permite diferentes tipos de clima, essa condição climática é agravada pelo aquecimento global e o El Niño. Esses fenômenos aumentam as áreas de seca por todo o mundo.
O ano de 2014 está sendo um dos piores nesse quesito. A capital de São Paulo, bem como alguns municípios paulistas, enfrentam o pior período de seca desde 1964. Os habitantes da região Nordeste já estão no segundo ano de uma seca intermitente, que afeta 1.400 municípios, sendo a pior em 50 anos. Contudo, já houve secas piores que a deste ano.

1) Entre os anos de 1723 e 1727 aconteceu umas das primeiras grandes secas já registradas, atingindo a região nordeste, onde ficava localizada a Capitania de Pernambuco. E, além da seca, uma peste assolou a localidade, o que causou uma enorme mortalidade entre os habitantes, principalmente os escravos.

2) A segunda maior seca foi registrada entre 1776 e 1778 e, como a anterior, ocorreu uma combinação entre período forte de estiagem e doença, neste caso, a varíola. Nesse período, a mistura entre seca e doença registrou um altíssimo índice de mortalidade, não só entre pessoas, mas também entre os animais. Para enfrentar a crise, a Coroa Portuguesa repartiu as terras adjacentes aos rios entre os povos flagelados.

3) Quase 100 anos depois, outra forte seca atingiu o Nordeste. Entre os anos de 1877 e 1879, 500 mil pessoas morreram por conta do longo período de estiagem. Por conta disso, 168 mil nordestinos migraram para outras regiões do país: 120 mil foram para a Amazônia e 68 mil para outros estados brasileiros. Na época, o então Imperador Pedro II visitou a região e prometeu vender até a última joia da Coroa para combater a seca, o que nunca aconteceu.

4) O sertão de Pernambuco foi o mais atingido com a seca de 1919 a 1921. Os dois anos com falta d’água ocasionou um enorme êxodo rural. Essa situação fez com que imprensa e opinião pública pressionassem o governo para resolver o drama das famílias atingidas. Em resposta, o governo criou, em 1920, a Caixa Especial de Obras de Irrigação de Terras Cultiváveis do Nordeste Brasileiro. Ela seria financiada com 2% da receita tributária anual da União, porém nada foi feito efetivamente para resolver o problema.

5) Nos anos de 1934 e 1936, ocorreu uma das maiores secas já registradas no país. Dessa vez, a seca atingiu não só o Nordeste, onde nove estados sofreram com a estiagem, mas cidades em Minas Gerais e São Paulo. O problema da seca no sertão nordestino, depois dessa seca, passou a ser encarada como problema nacional.

6) Outra seca gravíssima aconteceu em 1963/1964. Nesse ano, estados como Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Paraná e Distrito Federal sofreram com a forte estiagem. Até a Floresta Amazônica ficou sem chuvas. Para completar, uma forte onda de calor atingiu o país nessa época.

7) Uma das secas mais prolongadas do Nordeste durou sete anos. Entre 1979 e 1985, 3,5 milhões de pessoas morreram, sendo a maioria crianças vítimas de desnutrição. Durante esse período, lavouras foram perdidas, animais morreram, e ocorreram saques a feiras e armazéns e deixando um rastro de miséria e fome. O auge do problema foi em 1981, quando o presidente João Figueiredo declarou que só restava rezar para chover.

8 ) A década de 90 (1997 a 1999) chegou ao fim com uma forte seca. Agravada pelo El Niño – fenômeno metereológico que aumenta a temperatura da água do Oceano Pacífico – a seca vitimou 5 milhões de pessoas. Em Recife, os cidadãos só recebiam água encanada uma vez por semana.

9) A seca de 2001 foi o prolongamento da de 1997/1999. Nesse ano, o rio São Francisco teve o pior período sem chuvas da história, o que casou uma drástica diminuição de seu volume. Essa falta de chuvas ocasionou o racionamento de energia que afetou todo o país.

10) O último grande período de seca no país foi em 2007 e 2008, quando o norte de Minas Gerais sofreu com a falta d’água. Entre março e novembro de 2007 não choveu na região e as precipitações abaixo da média continuaram no ano seguinte. Durante os 15 meses de seca, 54 mil focos de incêndio e mais de 190 mil mortes de gado foram registrados.


Fontes: Superinteressante - Os dez maiores períodos de seca do Brasil

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

CINIRA

CINIRA*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)


            Cinira, menina de cidade do litoral, não conhecia o sertão; terra que não lhe saia da memória. Moça de 18 anos completos, educada em colégio de freira; saiu dali com uma visão mística das coisas.
            Ouvia falar nas grandes secas, nas retiradas, em gente com fome, andando pelos caminhos com rostos murchos, as mãos descarnadas, fugindo de uma desgraça maior. Por mais que procurasse se distrair e esquecer, a imagem daquelas coisas tristes que não saía do pensamento.
            E como gostaria de ajudar, de fazer alguma coisa pelas crianças, pelos velhinhos que não tinham o que comer nem onde ficar.
            Perguntava a si mesma porque morava gente numa terra assim tão ingrata, porque saiam de lá e
Voltavam sempre. Que destino era aquele, que atração era aquela. E achava que não poderia haver tristeza maior do que aquela de uma mãozinha magra, estendida pedindo o que comer. Sentia abaladas as suas convicções religiosas e tudo sobre os poderes divinos aprendidos no colégio.
            Como poderia ser, gente morrendo de fome só e só por falta de chuvas, chuvas que caiam demais na sua cidade, chuvas que sobravam, como se não tivesse outro lugar para cair.
            Queria conhecer o sertão, ver de perto para poder entender.
            Talvez o Deus de lá fosse outro, ou se fosse o mesmo tivesse suas razões para castigar duramente a gente do sertão. A gente e os bichos também. E que culpa poderiam ter as plantas, para que as deixassem também morrer de fome e sede.
            Tudo lhe parecia muito confuso. A sua crença, a sua fé havia se dependurado por um fio que poderia se partir a qualquer momento.
            Bastava-lhe essa má repartição das chuvas que gerava tanta desgraça, para não entender as coisas da criação. Sob o mesmo céu, com o mesmo sol a iluminar a terra; havia tais disparates.
            Porque, então, zonas sem chuvas, sem rios perenes, quando a produção de alimentos dependia disso? Alguma coisa estava errada. O seu Deus, segundo aprendera, nunca teve intenção de castigar ninguém.
            E via que existiam muitas coisas erradas e contraditórias, como o mundo tivesse sido feito por um boboca, qualquer.
            Que Nosso Senhor a perdoasse daquelas heresias, mas lhe doía demais saber que alguém sofria; se desesperava; muitas vezes apenas, por falta de uma chuva na floração das lavouras sertanejas. Enquanto isso vinha notícia de chuvas arrasadoras noutras regiões.
            Cinira ficava pensando noutras coisa injustificável, no seu entender. Por que não eram doces as águas do mar, por que todas as mulheres não eram bonitas, por que essa necessidade horrível de comer, por que havia cobras venenosas ou de qualquer espécie, por que o amor se tornava assassino, por que o egoísmo, por que as terras não eram de todos.
            E iria muito longe se quisesse rever o rol das coisas tortas.
            Cinira sonhava com o sertão. Desejava conhecê-lo. Saber como era mesmo. Sentir o calor do sol e da sua gente.
            Dr. Agrício e sua esposa Maria José, antes das festas do padroeiro de Santo Antônio, de sua cidade na Paraíba, sempre iam ao Recife fazer compras e desparecer um pouco.
Cinira casualmente encontrou-os. Irmã de uma ex-colega do Sr. Agrício, quando fazia faculdade em Pernambuco; conhecera-o quando era ainda uma menina-moça.
            Aquele encontro dava-lhe a oportunidade de tornar o seu desejo uma realidade. Pois sabia que eram do Sertãozão brabo, onde Judas tinha perdidos as botas. Não perdeu tempo. Entrou logo no assunto como alguém que estava perdido e encontrou o caminho. Contou de sua vontade louca de conhecer terras assoladas pelas secas e não se fez de rogada, quase se convidando ou forçando um convite.
Maria José por simples deferência, fez-lhe o convite. Não estava gostando da intimidade, dos gostos e daquela alegria toda de Cinira.
            Aquilo lhe cheirava às coisas passadas. Moça da cidade, andando sozinha, quem sabe se não era uma doidinha; e não tinha marido para aquele tipo de convivência. Mas, Cinira aceitou o convite e segurou longamente a mão do Dr. Agrício, num agradecimento que parecia mais uma entrega.
            Maria José sentiu-se perdida. Gentileza às vezes dá nisso. Quis ser educada, boazinha e agora estava assustada.
            - Cinira, você não conhece o sertão. É uma terra triste sem atrativos, onde se vive porque não há outro jeito. Cuidado para não se arrepender amargamente. Sair de uma cidade como esta para embarafustar pelo sertão brabo, é uma temeridade.
            - Ora, dona Maria José, já estou cansada disso aqui. Festas, passeios, cinema, praia, namorados sem perspectiva de casamento, só para passar o tempo, já enjoa. Preciso conhecer outros ambientes, outras pessoas, outros tipos de diversões ou como já lhe disse: pretendo contemporizar com gente sofrida dos Sertões e tentar ajudá-los ou sofrer com eles.
 O balanço do corpo, aquela boca vermelha, aqueles olhos buliçosos, aquela maneira de acompanhar as palavras dando palmadinhas no Dr. Agrício, engasgava Maria José. Via que o seu adorável marido estava gostando daquele gingado e da idéia do convite.
            - É um prazer, Cinira, levá-la. Mais não para passar apenas uns diazinhos de nada. Prepare-se para uma boa temporada. Além do mais é uma companhia para Maria José. Viu como ela gostou? Foi logo a convidando. Apenas está receosa de que poderá não gostar.
            - É sim!  “Mas não fique sonhando demais”. Maria José tinha cutucado o cão com vara curta. “Essa espevitada vai me dar trabalho”. Mas tiro-lhe o sarro. Pelo jeito parece uma dessas mocinhas soltas e que gosta de bons passatempos. E o Agrício está todo cheio de vida. Parece que nem mais me vê... Está botando as unhas de fora. Imagino quando vem sozinho o que não pinta. Com essas sirigaitas.
 Está certo, Cinira. Daqui a dois dias. Não pense que vai voltar logo. Muito prazer.
            Maria José forçou uma despedida alegre.
            Três dias depois estavam nas Aroeiras. Maria José acompanhava a conversa, os gestos, os requebros de Cinira. A festa começou. Dos sítios, das fazendas, de todos os cantos chegavam gente.
            Um novenário em homenagem a Santo Antonio, por sinal o Santo casamenteiro a quem Maria José tinha especial devoção. A sua felicidade matrimonial, devia-se a ele. E todo o dia levava dinheiro e flores que colocava aos pés do santo milagroso e protetor das vitalinas, sobretudo. E merecia. Não era brincadeira tirar uma moça velha do barricão. Precisava ter muita força. Mas, foi não foi, desencalhava uma, a troco de muita vela, muita fita, uns cobrezinhos e reza forte.
            Santo Antonio não queria nada daquilo. Fazia para se divertir e por comprazer.
            Cinira não era nada daquilo que Maria José pensava. Era uma moça de muito juízo. Divertia-se era verdade, mas não era de se entregar como uma doidivana. Namorava sem malícia e ninguém que se metesse a cavalo do cão.
            Adorou o sertão, na sua simplicidade; extasiava-se com o céu estrelado, com as noites de luar, com os campos, o canto dos pássaros, o gado solto tocando chocalho, os rebanhos de cabras e de ovelhas, e o povo sadio, franco, sempre risonho, como se a vida lhe fosse sempre um dia de festa.
            Era a penúltima noite de novenário, dedicado ao santo protetor das moças que se atrasava no casamento, e para quem comprava mais fitas e se acendiam mais velas.
            Cinira, apesar de impressão que causava a Maria José, era uma menina inteiramente diferente, a menos que estivesse fingindo.
            Talvez fosse o ambiente novo, onde estava com aquela gente simples e sincera do sertão. Conservava apenas o riso constante, a alegria de quem se sente bem. Assistia as festas de rua e da igreja em companhia de Maria José e algumas moças a quem ia sendo apresentada.
            Conhecia o sertão num período do qual não podia ter ao menos noção ligeira das situações anormais, dos anos de seca.
            E via, então, que o sertanejo tinha razão sobrada de voltar a sua terra, depois dos rebentões secos que martirizavam a região.
            Não se via ninguém triste, nem com sinal de pobreza. Dançava nos olhos de todo mundo uma alegria que Cinira desconhecia. E ficava cada vez mais admirada daquela gente animada e corajosa que não tinha medo de desgraça. Convencia-se de que o sertão não era aquela miséria que trazia desenhada na sua memória.
            As coisas tinham um sabor diferente. O ar que respirava tinha um cheiro gostoso de virgindade, um cheiro bom de uma natureza virgem. A cidade não cheirava a fuligem que envenenava o ambiente. Aquilo sim, era vida ao natural.
            Olhava o semblante saudável das velhinhas quase centenária, que o tempo não conseguia amarrotar. Ali não havia falsificação. Não necessitavam de rebocar a cara e dar-lhe diariamente uma pintura nova para esconder a buraqueira e a palidez das coisas mal conservadas.
            E imagina como seria o amor daquela gente. Deveria ser como uma fruta rara que se conserva entre verde e madura, que só será colhida com o mesmo sabor e o mesmo perfume.
            Paulo Sarmento, com mais alguns passos transpunha a casa dos trinta. Por muito considerado o mais requintado pelas meninas de sua terra. Namorava por passatempo.
            Metido a rico, com um físico atraente, ia sempre enganando a todas. Depois, nem as mulatas da ponta da rua, confiava nele.
            Era-lhe inútil tentar. Sentiu-se só e triste. Durante a festa, sentiu-se perdido. Festa sem namoro é como a gaiola sem passarinho. Dá idéia de solidão de abandono. Paulo Sarmento não se conformava. Qualquer cafuçu, com a sua namorada, misturando risos, alegrias, promessas de amor, misturando festas, e ele em estado de desgraça. Não adiantava espichar os olhos pra ninguém. Aquilo supunha era uma conspiração já pensava em largar-se para a fazenda, enterrar a cara por lá. Sumir-se, enfim. Ia a igreja assistir o novenário.
            Olhava pra Santo Antonio, ornado de fitas e quase tinha raiva da sua impassividade.
            Devia estar medito no “coloio”. Mas, findou reconhecendo que havia andando mal. A culpa era sua e Santo Antonio fazia muito bem em proteger as suas devotas.
            Pediu perdão ao Santo. Bem que podia, aliás, ajudá-lo naquele descompasso, naquela fossa em que estava.
            Devia mesmo haver safadeza. Os pensamentos tumultuavam. Que se danasse tudo. E não fazia mal que o mundo pegasse fogo e só deixasse as cinzas. Lembrou-se que estava na igreja. Podia receber um castigo maior.
            Perdoa Santo Antonio. Mas coloque-se no meu lugar. Fiz bobagem, mas a culpa não foi minha. Bem que me podiam ter dado melhor compreensão. Fazem as coisas erradas e o pobre diabo é quem paga.
            Paulo Sarmento viu Maria José do outro lado da igreja. Estava acompanhada. Era Cinira. Um raio de esperança começou a passar dentro dele. Moça de fora certamente não sabia do seu passado idiota.
            O diabo é que podia ser casada. Sentiu um frio na espinha. Antes que a novena terminasse colou-se no adro da igreja. Cumprimentaria Maria José. Perguntaria pelo Dr. Agrício. Esperaria uma apresentação. Agora era pra valer. Trinta anos nas constas de um sujeito já começa a ser uma brincadeira de mau gosto.
            O tempo é um vagabundo safado. Não espera por seu ninguém. Dana-se pela estrada do infinito, deixando o sujeito com os seus problemas, com as suas angustias, com os dias diminuindo, envelhecendo feito um idiota.
            Paulo, inquieto, numa expectativa mortificante, esperava. Poderia ser um coice na sua sorte. Os pares de namorados iam passando juntinho dele e cada um, o deixando cada vez mais revoltado contra essa porcaria que se chama destino.
            Maria José não aparecia. Seria uma coisa proposital? Poderia ter saído pela lateral. O diabo não perde tempo para fazer uma das suas. Anda de olho nos infelizes para torná-los mais infelizes ainda. Quem o inventou já foi com essa intenção. Aliás, ele também não tinha culpa. O que não se podia entender era alguém ter tido a maldade de criar o diabo e só para com o fim de fazer o mal, meter o bedelho na vida de todo mundo. E ainda tem quem acha que a criação do universo foi à maravilha das maravilhas. Afinal, o diabo desta feita não havia se metido. Foi até bonzinho. Maria José apareceu.
            - Boa noite dona Maria José, Dr. Agrício vai bem?
            - Ficou atendendo clientes. Apresentou-lhe a amiguinha. Cinira. Do Recife. Veio passar uma temporada em Aroeiras. Queria conhecer o sertão...
            - Com muito prazer, senhorita. Está em ótima companhia. Espero que não tenha ficado desapontada com a nossa terra.
            - Lugar pequeno, com pouca coisa para ver. Era o meu maior desejo. Estou encantada. Gente boa, alegre, corajosa, animada. E a beleza dos campos, do céu estrelado, do luar.
            - Aqui se vive e se respira o que há de mais puro e saudável. E essa festa com tanta moça bonita, rapazes comunicativos, cada um com a sua namorada, como se fosse às vésperas de uma grande noite de núpcias.
            - Para os que têm sorte. E, francamente, tenho inveja da felicidade dos outros. Ando até com desgosto de viver. Pode ser falta de jeito ou burrice minha.
            - Talvez apenas, falta de oportunidade ou desinteresse. A menos que haja coisa fora de minha percepção.
            Maria José interferiu:
            - Paulo é uma ótima criatura. Pode ser que se considere acima do nível das moças da terra. Moço ainda, com boa fortuna nas mãos, não acredito que a culpa seja das moças.
            Pararam na casa do Dr. Agrício. Cinira também não tinha compromisso. Mas não desejava namoro passa tempo. O que pretendia, enfastiada da vida fútil da cidade, era simplesmente, casar-se. Ter o seu lar, o seu companheiro e se pudesse, morar no sertão, com aquela tranqüilidade que até então desconhecia.
            Poderiam dar umas voltinhas pela festa.
- Paulo Sarmento! Cinira é uma moça honesta, de confiança. Um belo par, aliás.
            Caiu a mosca no mel. Era justamente isso que desejam os dois. Embora não fosse usual. Cinira tomou o braço de Paulo e os dois enfrentaram os comentários.
            - Olha aí, menina. O Sarmento com quem anda. Aquela mocinha do Recife. De certo ela não o sabe quem é. Vai enganar a coitada.
            - Enganar coisa nenhuma. Aquilo deve ser escolada. Quando anda por aqui já é para ver se pega algum besta, um idiota qualquer. Aquilo já se perdeu por lá, quem sabe. Olha aí, já anda de braço entrançado.
            - É bom até que seja assim. Ele só queria enrolar as moças daqui. Enganou a todas. É fazendeiro, sabe tapar buracos. Deixa pra lá. Um safadório. Chupa-lhe o dinheiro, bota-lhe uns galhos e está feita a festa.
            Era a Pureza que fazia esses comentários. Velhota, desenganada, em sua vida amorosa, frustrada, encostada, criando teia de aranha como uma casa abandonada. Sempre que podia desandava a lenha em Santo Antonio. O dinheiro, as fitas, as velas votivas, não foram levadas na menor consideração.
            - Pifeza, pura pifeza.
Disso resultou-lhe mais uma lição. Não se deve confiar em todo mundo. Mesmo canonizado.
            Menos de trinta dias depois da festa, Cinira estava noiva e de casamento marcado, Paulo Sarmento não queria mais conversa. Não passaria outro novenário sozinho. Era negócio pra doido.
            As moças do lugar iam ver como ia viver Cinira. Boa casa, vestidos e jóias para fazer inveja. E amor para esbanjar.
            - Estão vendo aí? O traste vai mesmo casar com a lambisgóia de Recife. O bicho está reformando e pintando a casa. Se tivesse noivado com uma moça daqui, iria morar na casa velha, sem reformar e sem pintar.
            Dona Pureza se encarregava, desapontada, tocava fogo na canjica e se lamentava também. A vida é pior do que sovaco de aleijado. Com um tipão daquele não fazia questão nenhuma de me juntar. O resto ficava por conta de Santo Antonio, que não deu sorte. Mais não tem nada não. O diabo há de me ajudar a botar chifre naquela bichota. Estou por tudo. Não pense ninguém que vou morrer de pernas cruzadas. Um dia ele se enjoa da farinha de casa e vai me encontrar pela frete. Vou me cuidar e a sabidinha que se cuide. Se for pecado ou não, isso não é comigo. Não me permitiram o caminho certo, pois, então, tomo qualquer vereda. Qualquer caminho dá da venda.
Apesar da ciumada a festa do casamento rolou animada até o amanhecer.
            Cinira fez questão de casar-se ali mesmo. Dizia que queria casar-se também com o sertão de quem há tempo já era noiva. A família compareceu. Gente fina e cheia das granas.
            A inveja aumentou. Dona Pureza sentiu-se tonta. Teve vontade de desistir de seus planos. “Essa gente não merece isso”. Mas o diabo já andava rondando. Era sua profissão. E o tempo foi passando, passando.
            Dona Pureza observava o casal. Já não andavam tão agarradinhos. “É. A coisa está esfriando”. E começou a se chegar. Animava as visitas. Queria intimidade, para disfarçar seus intentos. Não era feia de cara, nem de corpo. Paulo Sarmento começava a perceber os olhares quentes, furtivos e convidativos de Dona Pureza.
            Cinira caiu na besteira de ir a Recife passar uns dias. Dona Pureza não perdeu tempo. Pouco se incomodava que as más línguas falassem. Estava por conta do diabo. E tudo terminou como ela queria. O difícil, agora, era só controlar quando a Cinira chegasse. Se pelo menos o fogo se apagasse. Mas não contava com isso. Levara a vida toda juntando lenha. Lenha do sertão, de alta caloria. Tinha que dar um jeito. O difícil era começar. Ela sustentou-se um pouco, embora noites inteiras sem um sumaço de sono.
            Inesperadamente a coisa tornou-se mais difícil do que ela pensava. As suas rondas não rendiam. Notava também que Sarmento não se interessava mais. Começou a raciocinar. Tinha soltado o passarinho na seara alheia. Cinira lhe parecia uma menina decente. Tinha sido tentação do diabo. Sujeito safado. Em todo caso estava realizada. Só era pura no nome. Bastava esta satisfação íntima. E findou dando graça ao diabo. Bem que o bicho preto tinha suas boas artimanhas. E quem sabe se mais adiante não lhe faria nova surpresa. Não lhe acendeu uma vela porque sabia que o diabo não tolera cheiro de vela e laço de fitas, muito menos. Procurou controlar-se. Deixava a sua sorte por conta do tempo. Mas inesperadamente começou a agoniar-se. Sentia coceiras estranha. Devia ser o capiroto atiçando o fogo. Tomou uma resolução. Suicidar-se. Acabar de uma vez com aquela inquietação.
            Arsênico, sim, arsênico. Coisa ligeira. Foi ao comércio pediu formicida. Matar as formigas, que estavam cortando o seu pé de Mangerona. Mas logo de volta jogou-o fora. Burrada, pura burrada. Vendeu o que tinha e caiu fora. Terra pequena é um pinícula. Não se pode nem ao menos cumprir sagrados mandamentos.
            Dona Pureza teve sorte. Casou-se. É verdade que foi com um pedreiro. Soube escolher, ou antes, teve sorte, Sabia usar argamassa para os retoques. Perito em tapar a buraqueira... Nunca teve filho. Melhor assim. Cuidava apenas da casa e das ferramentas do pedreiro. O dinheiro que levava emprestou à juros. Não mais se queixou da vida. Quando lhe deu saudades voltou a Aroeiras. Apresentou o marido. Homem rústico, mas de boas conversas.
            Aproveitou o ensejo e foi com o marido à igreja. Queria que Santo Antonio a visse. O santo estava coberto de fitas. De fora só aparecia a carinha do Zé Promessa. A bandeja, a seus pés, com algumas moedas. Teve pena de seu vigário. O padroeiro não estava colaborando. Colocou algumas moedas na bandeja e comentou: - Pobres moças. Tanto laços de fita sem nenhum enlace. Vai, Santo Antonio ser bonzinho com as meninas. Elas estão envelhecendo. Tu não sabes o que é uma mulher depois dos trintas. Os desenganos, as ansiedades, as doidices quer pode fazer. Conversa comigo que te conto. Fui pura até quando pude. Não fui eu quem caminhou para entrega. Foram as forças incontroláveis dos desejos e das insatisfações que me arrastaram. Se isso é pecado perdoa-me. Minha alma e meu coração continuam puros. E assim são todas as mulheres que se sentiram frustradas. Olha Santo Antonio, cada fitinha que te oferecem ou cada vela que te acendem, já é um incêndio de que a vida da gente começa a doer, que o corpo começa a pedir e a inquietar-se. E foi Deus que fez a gente assim. Não há nada de imoral. Apenas a sociedade exige, antes da doação, um pouco de água benta ou um compromisso oficial.
            E será que quem os celebra tem mesmo moral?
            Dona Pureza não olhou para traz. Santo Antonio não entendeu nada. E lá se ficou todo coberto de fitas como se fosse uma pastorinha.
            - Velha idiota. Fez do que fez e vem com essa longo-longa pra cima de mim. Não sei quem enfiou no quengo dessas bestas que sou Santo casamenteiro. Uma ova! Quem quiser se vire ou faça como a santinha da Dona Pureza. Não quero fitas nem velas. Um dinheirinho vá lá. Empresto a seu vigário, sem juros e sem prazo.
            Cinira e Sarmento tomaram uma resolução. Aumentar o ciclo de amizades, visitando os fazendeiros das vizinhanças. O primeiro contato seria em sua casa. Cinira tinha jeito para os arranjos. Paulo Sarmento fez os convites. Seria um domingo de congraçamento. E nesse dia a casa encheu-se. Coronel Justiniano e a família chegaram cedo.
            Cinira ficou encantada com os olhos verdes da filha única, na moldura daquele rosto bonito e alegre; apagara-se diante dela. Só mesmo o clima sertanejo poderia conservar aquelas feições de santa. O brilho de seus olhos devia ser uma mistura de raios de sol e raios de luar ou uma gota de orvalho numa manhã luminosa. O corpo, decerto teria sido delineado para modelo de expressão corporal. Desejaria, por isso, ter nascida no sertão, à terra das mulheres incomparáveis, onde mesmo as que não são bonitas são atraentes.
            Em casa de Paulo Sarmento, foi um dia inesquecível para Cinira e os convidados. Daí por diante, as visitas, as reuniões, se sucederam, as amizades cresceram e já havia ansiedade na espera. Era uma forma de conviver, com aquela franqueza sertaneja, onde se contava os fatos pitorescos da região ou da vida de cada um.

*Este conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.