ADRIANO*
João Henriques da
Silva
(In Memoriam 20/09/1901
– 16/04/2003)
O pai de Adriano era tão pobre que não tinha
condição de mandá-lo para a escola. Farda, sapatos das cores exigidas,
cartilhas, cadernos e lápis; não tinha como adquiri-los.
Mas Adriano pedia todos os dias, quando via a
meninada passar fardada e com a bolsinha a tiracolo.
- Por que não vou, pai? Todo menino vai.
Acho tão bonito e queria aprender também!
Completava nove anos, a pobreza não
passava. E Adriano insistia. E o preto Ambrósio já ficava triste e desolado
quando via o filho se aproximar com aqueles olhos compridos de quem quer alguma
coisa. Pensava em pedir, mas, lhe faltava coragem. Falou com a mulher, a Generosa.
Mulher sempre tem jeito para essas coisas.
- Também tenho acanhamento. E
depois pode te julgar um vagabundo que nem ganha para comprar o necessário para
mandar o filho à escola.
- Ora, mulher. Todos sabem que sou doente
sem força para nada. Esse cansaço, essa fraqueza danada. O doutor já disse que
era o coração grandão e descompassado. Que eu não podia fazer serviços pesados.
Ainda compro a farinha da semana com essa caixa de engraxate. Se não fosse as
tuas lavagens de roupa já se andava nu e faminto. O pobre de Adriano, bem vês
como anda. Magrinho, descorado de causar dó. Tentei aumentar o preço do
engraxado e quase perco a freguesia. “Era pura exploração”. Dar até vontade de
largar a “caixa” e ir pedir esmolas. Talvez até rendesse mais. O diabo é que eu
morreria de vergonha. Vou falar com o prefeito. Tu falas com a professora. Vamos
tentar. O bichinho não pede outra coisa. “Quero ir para escola”. Já não agüento
mais.
E Ambrósio largou-se para a
prefeitura com Adriano de lado. Há muito custo conseguiu chegar ao gabinete do
prefeito.
- Está ocupado, não tem tempo, está
tratando de assuntos sérios. É melhor vir outra hora ou outro dia.
- Não posso meu senhor. Deixei de ir trabalhar hoje e
não posso faltar outra vez, se não, lá em casa se passa fome.
- A prefeitura não está dando nada a
ninguém!
Após muito custo e insistência, o
homem resolveu deixar entrar o engraxate. O Ambrósio contou toda a história sua
e de seu filho ao prefeito.
- Ora meu amigo, não tem verbas pra
essas coisas. Afinal de contas, quem não pode ir á escola fica mesmo sem
estudar. E não será apenas o seu filho. Quando crescer mais, poderá vir
trabalhar na limpeza da cidade ou ir para o trabalho da roça.
Escola tem vantagens e desvantagens.
Vantagens para os meninos inteligentes e de boa memória. Desvantagens para os
gregos e tapados. Esse tem pelo menos o que se vê. Magro desse jeito e amorrinhado
não promete nada. Às vezes é melhor não tentar para não ter desengano cedo.
- Está certo. O senhor não quer ajudar vou
bater noutras portas.
E Ambrósio saiu como se estivesse
sido empurrado num abismo. E foi direto á casa paroquial, falar com o padre
Acrísio. O filho queria estudar e não tinha meio. Estava voltando da
prefeitura, aonde saíra envergonhado.
- Pobre, seu vigário parece que
fede aonde chega. O Adriano só fala em ir á escola e nunca tive com que lhe
compra a fardinha, os sapatos e os livros. Minha mulher foi falar com a
professora. Mas ela também é uma moça pobre. Será que o senhor poderia dar o
fardamento ao menino?
- Espere um pouco.
E padre Acrísio deu-lhe dinheiro
para a farda, os sapatos e as meias. E ainda adiantou que se não conseguisse o
material escolar, voltasse a sua casa. Ambrósio e Adriano saíram com se
estivesse voando num colchão de nuvens.
Em casa, encontraram a mulher com
um sorriso que mostrava os dentes brancos.
Adriano já estava matriculado e
até poderia comparecer sem farda até que pudesse fazê-la. O material seria
presente da professora e dos alunos. Faltava conseguir o alfaiate para preparar
a farda. E foi fácil. O Apolinário trabalhou pelo dia e pela noite para estar
pronta no dia seguinte a fardinha do menino.
Adriano era naqueles dias, o menino mais
feliz da escola. Entonado na farda novinha e nos sapatos saídos da loja, o
primeiro que enfiava nos pés, não parava de se olhar. Nem podia acreditar que
fosse ele mesmo. E foi ao pote com a maior sede do mundo. Se pudesse engolia as
cartilhas. Havia de aprender de pressa. Não era nenhum menino prodígio e também
não era tão burro. Pelo menos Deus ajudara com uma boa memória.
Havia de valer-se do seu esforço.
Tornou-se um dos alunos mais dedicados de sua classe. Padre Acrísio acompanhava
o seu desenvolvimento. Propôs aos pais leva-lo mais tarde para o seminário, por
intermédio das “Vocações Sacerdotais”. E inclusive passaria logo a coroinha.
Ajudar na missa e batizados.
O cheiro de incenso inebriou
Adriano. Sabia que depois do primário não podia continuar. E terminou morando
com o vigário. Bem, na reza, fez logo progresso. Um ano depois estava no
Seminário Diocesano da Paraíba, recomendado pelo padre Acrísio.
Era como se caísse um manjar do céu. A
pobreza tinha tal valor. Se não tivesse que pedir, o filho não teria embisacado
numa batina; Papa, não, porque era de cor e não Italiano.
Padre Acrísio admirava a
aplicação do afilhado, seminarista e o trazia de férias todos os anos. Com a
alimentação regular e os novos hábitos, Adriano mudara admiravelmente de
aspecto físico. Ninguém reconheceria nele o Adriano magricela e desnutrido dos
tempos do primário e antes, nunca exigia nada de seu protetor e nem sabia como
poderia pagar-lhe todo o bem que lhe fazia.
O que podia fazer era ter um
comportamento exemplar e queimar as pestanas no estudo. Talvez, no futuro,
tivesse oportunidade de ir compensando tamanho beneficio.
Pedia a Deus que sim. Concluindo o
curso não sabia para onde teria de ir. Mas padre Acrísio sabia. Seria por algum
tempo seu coadjutor. Ficaria na casa paroquial. Era uma compensação pelo o
esforço e pela boa conduta.
Na volta a sua terra Acauã teve a
boa nova. Aquela dedicação do padre Acrísio o comovia e aumentava-lhe a
responsabilidade e a gratidão.
Teria de celebrar a sua primeira
missa em sua cidade. Padre Acrísio prepara tudo. Não esquecera de vestir
decentemente os seus pais. Teriam que estar junto do altar, na primeira fila.
Sabia que o padre Adriano não possuía meios. Era o mesmo menino pobre que não
podia ir á escola porque não tinha farda. E, por sua vez padre Adriano curtia
mais uma provação.
Os pais não tinham roupa
apropriada para assistir a cerimônia. E não havia alternativa senão socorre-se
mais uma vez do seu protetor. Pagaria depois.
- Não se preocupe. Padre Acrísio
já cuidou disso. Fique tranqüilo. Nunca fui um menino pobre, mas sei muito bem
o que é ser pobre. Tua vida há de mudar. Tens uma profissão e a proteção de
Nosso Senhor.
Padre Adriano celebrou sua primeira missa.
Disse o seu sermão. Os pais estavam ali a ouvi-lo. Choravam os dois, como –
“Meu irmão em Cristo”. Estou aqui trazido pelas mãos piedosas do padre Acrísio,
a quem beijou agradecido as suas mãos generosas. Esta santa revelação de amor
ao próximo. Foi ele quem me deu a primeira farda com quem fui á escola e
sustentou-me no seminário até minha ordenação.
Meus pais que estão aqui
presentes assistem a minha primeira missa, pediram-me para dizer de público o
seu agradecimento. Dizer-lhe que mais longa que lhe seja a vida, será
infinitamente curta para o reconhecimento que ele merece.
Houve quem negasse ao menino
pobre que fui; uma modesta ajuda para freqüentar á escola. Mas também houve
mãos generosas que deram a primeira farda e as cartilhas com que me iniciei.
Comove-me ainda o gesto da professora e de seus alunos que me deram livros,
cadernos e lápis. E ainda hoje guardo até o pedacinho último do primeiro lápis
com que cobria as letras que a professora Amélia traçava.
Padre Acrísio tomou conta de mim
até hoje e serei o seu servo pelo resto da minha vida.
E peço a todos os fieis que me
ajudam a agradecer a essas duas santas criaturas e aos alunos que contribuíram
para o meu aprendizado inicial.
E Deus perdoe os pobres de
espírito. Quando eu era aquele menino pobre desnutrido, que dormia com fome e
acordava sem pão, não desesperei. Quando eu e meu pai batemos à porta do padre
Acrísio, minha fome naquela hora era da escola. Tinha pecado da inveja, que
Deus me perdoe. Invejava os alunos que passavam fardados para á escola com a
bolsinha a tiracolo. Não maldigo os que não me puderam ajudar ou não quiseram.
Afinal de contas ninguém tinha obrigação.
Para alguns eu era pobre demais
para ainda querer ser gente.
E ainda hoje me doem aquelas
palavras arrasadoras – “Estuda quem pode”. Quem não pode, vai varrer rua ou
para trabalhos da roça.
O que aliais, não seria desdouro
nenhum. O que magoava era a intenção e o desprezo. E ai está. Enquanto uma
porta se fechava, e outras se abriam com chave do coração. Nunca se pergunta
por que as pessoas são pobres. E por isso, muitas vezes se cometem duras
injustiças.
Mas Deus abençoa as mãos que se
entendem para dar e para confortar os que não tem sorte. No meu ministério
estarei voltado para os infelizes, os que se arrastam pela vida levados por um
destino cruel.
Deus abençoe para sempre aqueles
que me ajudaram e ajudaram os necessitados e perdoe aqueles que negam o pão do
corpo e o pão do espírito, quando tudo lhe sobra.
Adriano alugou uma casinha
modesta e foi morar com os pais. Padre Acrísio dividia com ele os rendimentos
da paróquia. Não Precisa de mais. Comprou maquina de costurar para a mãe e
ferro novo de engomar. O pai, com deficiências circulatórias, leva o tempo em
serviços leves e sem cansaço.
Fundou uma escola na qual se
ensinavas a ler e a executar coisas de artesanato. Leitura e profissão. Era
disso que o pobre necessitava. Trabalho de madeira, de couro, moldagens, artes
doméstica.
Aboliu fardas e sapatos
padronizados. Pedia a Deus a ao mundo inteiro para dar a quem não tinha. E na
cidade foi surgindo uma geração que não precisava se humilhar para viver.
Não quero para mim, quero para
quem não tem e amanhã será útil a toda a sociedade. Vinte por cento do que
obtinha do seu paroquiato eram destinadas às obras sociais.
Do restante a mãe e o pai eram os
tesoureiros. E não era pouco. Com o tempo possuíam uma chácara onde se dedicava
à horticultura que tinham consumidores certos. Flores para vender e para os
altares. Não se perdia um palmo de terra. Tudo era verde e produtivo. Fazia
gosto de ver e ali alunos recebiam treinamento.
Inesperadamente veio uma grande
surpresa. O ex-prefeito do seu tempo de menino pobre lhe apareceu.
Olha padre Adriano, não venho me
penitenciar por não lhe haver dado a mão, mesmo porque há coisas que não podem
ser perdoadas.
Quero ajudar a sua escola. Doar
um terreno para construção de uma sede nova, que ajudarei a construir.
Área com campos para hortas,
pomares e avicultura. Não me farão falta. Apenas não quero que meu nome figure
em qualquer coisa.
Aliás, já estão aqui as
escrituras. O resto virá depois. A gente comete muitos erros, padre. Obrigado
por aceitar. Boa sorte. Não aperte minha mão porque não o mereço. Não estou
fazendo isso como uma reparação. Absolutamente, não.
É simplesmente porque mudei
depois do gesto do padre Acrísio.
São fases da vida de cada um.
Deus me conduzia aquele jeito. Hoje serei capaz de dar o lençol com que me
cobri nas noites de frio. Não por que não tenha valor material o que dou, mas
por temperamento e convicção. E quem há de saber se com algum tempo voltarei
ser o que era.
Enquanto é tempo, vamos construir
o abrigo de menores abandonados e a escola profissional. O ex-prefeito Cristóbulo esboçou uma risadinha e se foi. Padre
Acrísio e padre Adriano foram ao dia seguinte à casa do senhor Cristóbulo.
Estavam impressionados com o cepticismo do homem.
Parecia-lhes que um dia estava com Deus e
outro com satã. Considerava-se governado por coisas estranhas. Sofria
influências que mudavam subitamente sua conduta. E pelo visto a culpa era de
Nosso Senhor. Bom ou mal dependia de quem governava as coisas do mundo. O sabor
da comida dependia do apetite.
- Boa tarde! Senhor Cristóbulo.
Estamos aqui para fazer-lhe uma visita de cortesia. Conversar um pouco...
- Muito bem! A satisfação é minha
em receber dois ministros de Cristo. É uma honra. Queiram sentar-se.
E conversa iniciou-se bem
distanciada das verdadeiras intenções. Passo a passo entraram nos motivos.
- Sim, viemos agradecer-lhe a
doação preciosa, a sua benemerência. A escola e o abrigo necessitavam
imensamente de um local como aquele. Amplo e otimamente localizado. Foi uma
dádiva do céu.
- Perdão. Do céu não, foi minha.
Estava e ainda estou na faze boa de ajudar os necessitados. E ainda quero
contribuir para a construção. Salvo senão quiserem.
- Pois não. O senhor é um santo.
- Não tenho nada de santo. É que
estou na veia boa. Se passar, adeus contribuição. Quero dar todo o tijolo e as
telhas. E digam quando as querem. Mas é como já disse. Não deixem passar a
oportunidade.
Os dois padres olharam um para o
outro, desconfiados e apreensivos.
- Sim, pode mandar já e já. Amanhã mesmo
estaremos cavando os alicerces.
- Mas Senhor Cristóbulo, não
entendemos esses períodos de sua vida. Fases dadivosas e fases de retraimento.
Está se vendo que o senhor é homem generoso...
- Não sei. Deve ser coisas do
destino. Por exemplo, quando aqui o padre Adriano foi me pedir ajuda lá na
prefeitura, estava eu na fase negativa. De mim não sairia um gesto bom e amigo.
Negue-lhe tudo. E não tenho porque pedir desculpas e perdão. Estava sob aquele
domínio. E quem sabe se de hoje para amanhã estarei mudado.
Os dois padres entreolharam-se
novamente e não tiveram dúvida.
- Se o senhor nos der uma ordem
mandaremos apanhar o material.
- Nada disso. Não desconfiem de mim.
Desconfiem da sorte de vocês dois. A propósito que é que governa as coisas
deste mundo, inclusiva à vontade das pessoas.
- Deus!
- Deus?
Devem estar certos. Pois é. É ele
quem muda o meu estado de espírito. Bem agora, péssimo mais tarde. Peguem-se
com ele. E olhem, sinto-me bem em qualquer uma dessas fases. E quem sabe se não
estou completamente errado, doando o que tenho. Em todo o caso não pretendo
mudar como os pobres. Não me levem a mal. Não sou eu propriamente. É o destino.
Despediram-se saíram voando.
- Vamos contratar a construção. Cava-se
amanhã mesmo o alicerce. Esse negócio do destino tem muita força. Se o homem
muda de um momento para o outro, estaremos de tanga. Corra para um lado que eu
corro para o outro. E vamos nos pegar com Deus. Afinal de contas à coisa
acontece. E sabe de uma coisa curta e certa, padre Adriano: será que o nosso
Deus é o próprio destino. Vamos correr. O homem avisou...
Felizmente o ex-prefeito
Cristóbulo não mudou logo e a escola foi erguida. Terminou oferecendo mais as
portas. Mas faltava o mobiliário.
- Vamos lá padre Acrísio?
- E se o homem já estiver mudado?
- Padre não perde nada. Vale
apenas tentar.
E botaram-se para lá com o credo na
boca. Seria uma desgraça se a boca da mina estivesse fechada. Contaram a
choradeira. São mestres em pedir.
- Tudo não. Mas vou doar uma
parte. Do contrário vosmicês vão me deixar de esmola. E, digam-me umas coisas,
não tiveram receio que eu tivesse mudado?
- Alguma dúvida?
- Vocês são um bestas. Desculpem-me
as maneiras de dizer. Na verdade nunca mudei coisa nenhuma. Quando neguei ajuda
ao menino, hoje padre Adriano, foi simplesmente para que não pensassem que eu
estava dando coisas da prefeitura, se tivessem ido a minha casa, teria dado
tudo. E agora, meti medo só para ver a obra construída e funcionando. Sabem
como são as coisas. Não queria que os tijolos e as telhas se derretessem no
local da obra.
Os dois saíram da casa do Sr. Cristóbulo
com a cara mexendo.
- Somos mesmo dois mama-na-égua.
Onde estava a nossa crença e a nossa fé em Deus, padre Adriano. Ao primeiro
problemazinho ficamos perdidos no mar das dúvidas. E ainda nos chamou de dois
bestas.
- O senhor padre Acrísio, não
sei, mais eu não passo disso. O homem nos enrolou direitinho. O que me parece é
que não se tem a necessária segurança quanto a verdade religiosa.
- Baseia-se na fé, padre Adriano.
A nossa religião é baseada na fé. Não se deve analisar nada. Ela é feita de
mistérios. A coisa é ter fé. Acreditar cegamente sem discussão. Alias isso é
mais cômodo. Vamos seguir as tradições e os ensinamentos que recebemos. E aqui
para nós dois, a religião vem se desgastando como sola do sapato velho. Estão
tentando botar uma meia sola, mas o material é muito fraco.
- Então é bom cuidarmos na vida
enquanto é tempo.
- Eu já tive tempo de cuidar da
minha. Cuida da tua antes que se acabe a ignorância do povo e o medo do
desconhecimento que pregamos. Do momento em diante, os que chegarem à evidência
dos que até hoje não temos feito outra coisa senão iludir à boa fé dos tímidos
e covardes, o nosso ganha pão vai pelos ares e temos quer ir para o pesado.
Criar calos na mão para sobreviver. Essas coisas de obras sociais com o nosso
dinheiro. Faça você. Eu nunca. E a respeito de dinheiro cadê que o homem nos
deu. Desconfiado, comprou e forneceu os materiais. O bicho é passado na cerca e
na corda. Deve ter pensado: - dinheiro na mão de padre vira lobisomem nunca
mais se vê.
Vamos dar 10 por cento dos teus
lucros para as obras sociais e não acha muito?
Poucos agradecem. Quem sabe se amanhã pensarás como hoje. A própria vida
ensina a viver. Só se é alguma coisa enquanto se pode ser útil a alguém. Não te
esqueças dessa verdade, nua e crua. Pode ser útil a alguém. E quando se
envelhece a gente vai se tornar inútil e até um incomodo. Um traste.
Prepara-te para enfrentar a
velhice! Senão ira comer o pão que o diabo amassou, sem manteiga e sem
margarina. Seco e duro. E verás que os pobres padres e estes principalmente, só
irão saber que existias no dia do teu enterro e isto mesmo para se certificaram
se de fato morreu mais um burro velho. Um imbecil que atirou pela janela o que
deveria ter trancafiado debaixo de sete chaves. Não caia na estupidez de
envelhecer pobre. Irás passar fome ou comendo de esmola, coisa que padre não
dá. Pelo menos nunca se viu. Quando padre pede que dêem aos pobres, estão
implícitos que os pobres, são eles mesmos.
- E se não foi o senhor que me
amparou e me educou, padre Acrísio.
- Sim, com as sobras do que possuía. Tudo
depende das circunstancias pegaste-me numa fase boa, como disse Cristóbulo. Do
contrário estaria quebrando pedra por ai. Não me deu arrependimento porque tens
sido uma boa criatura, mas poderia muito bem ter cometido um grave erro.
Ninguém conhece verdadeiramente a natureza humana. E não será que já pensaste
alguma vez em me tomar a paróquia. “Bem que este padre velho poderia morrer logo
e abrir uma vaga”. Essas coisas chegam à
cabeça da gente, sem a gente querer. A ambição mora dentro da gente. Quando
menos se esperava dá uma cutucada, esporeia o sujeito. E quando não acontece
vem o desespero, e culpa-se a sorte.
- Deus me livre de tamanha miséria.
Naturalmente se o senhor se aposentasse, gostaria de ser o substituto. Só isso.
- Começa assim, exatamente. Mas é melhor não
esperares. Sou sertanejo da gema e os meus bisavós para cá ninguém morreu com
menos de setenta e seis anos. Além disso, estou perfeitamente lúcido e gosto da
profissão de mão fina. Jamais me aposentaria! ... Vai cuidar doutra freguesia
onde haja mais carola do que católico. São os melhores.
- E o meu colégio e o abrigo?
- Alguém
se encarregará. Não te preocupes, ouve, sim, o que te digo. Cuida da vida
enquanto é cedo. Em todo caso o problema é teu, exclusivamente teu.
- Prefiro continuar aqui,
cuidando dos pobres.
- Contanto que não penses em me
substituir ainda por longos anos.
Seja feita a tua vontade. Queria
apenas medir a tua fé e tua inclinação. Cuida dos pobres – É uma piedosa
missão. Todavia, já estou cansado e não contes comigo para essas coisas.
Ademais preciso juntar mais alguns cobres. Não sei quando será meu fim e nem
como. Dos meus haveres, isto é, das sobras, dois terço será para minha família
e o outro terço para minha arrumadeira, uma criatura a quem devo os momentos
mais agradáveis do meu paroquiato. Bem entendido, fora as celebrações de meu
ministério ou meu apostolado.
- E não poderia deixar um pouco
para as obras sociais?
- É tarde, é muito tarde, como
dizia o pregador sacro e já cego, Montalverne**. Todas as coisas têm o seu
tempo. Pode ser muito bonito e elogiável. Mas quem tiver os seus filhos que o
crie. Especialmente eu que não tive o direito de me casar.
- Mas padre Acrísio, os
pobrezinhos não têm culpa.
- Muito menos eu! Cuidar dos
bichinhos, filhos desses safados que os abandonam por falta de governo que os
obriguem a criá-los.
- Mas às vezes não tem trabalho.
- Eu, governo, concentrava essa cambada
toda, pais e mães no serviço duro. Então teriam com que mantê-los. Acabaria com
a irresponsabilidade desses cretinos e dessas descaradas que só querem
deitar-se na cama, encher a timba e soltar a meninada no mundo da miséria. E o
governo não faz porque não quer. Tem exército e tem polícia que poderiam
ocupar-se ao menos com isso. Apesar disso e por isso, cuida de tua meninada
marginalizada, mas não penses em receber gratidão. Eles mesmos no dia que
faltar um pão, passará a ti esconjurar. E lá fora ouvirás: “O padre come o
dinheiro todo e mata os enjeitados de fome. Uma vergonha”.
- Não
é possível, padre Acrísio, que isso aconteça.
- Ora, dizem por aí de boca cheia que o
dinheiro que dão para a igreja eu engulo todo. Os Santos não tem um tusteco. E
mesmo que fosse verdade, para que diabo Santo quer dinheiro...
Em,
01/04/1985.
*Este
conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas, no prelo.
Nota:
**MONTALVERNE, Francisco
Nasceu no Rio de
Janeiro a 9 de agosto de 1784. Ordenou-se franciscano no Convento de Santo
Antônio, em 1802, quando adota o nome pelo qual veio a ser conhecido
(chamava-se Francisco José de Carvalho). Tornou-se pregador da Capela Imperial,
sendo sua oratória muito apreciada, preservando-se e sendo editados os seus
sermões. Foi professor de filosofia no Seminário de São José, atividade que
interrompeu em 1834, aos 50 anos de idade, por ter ficado cego. Seu magistério
marca nitidamente a transição da filosofia oficial herdada de Portugal (que
veio a ser denominada de empirismo mitigado) para o ecletismo, embora o seu
compêndio não o reflita. Contudo, essa situação aparece com nitidez na
correspondência que manteve com jovens que mais tarde se destacaram na Escola
Eclética, como Gonçalves de Magalhães. Faleceu aos 74 anos, a dois de dezembro
de 1858.