quarta-feira, 11 de junho de 2014

BENARA


BENARA*

 

João Henriques da Silva

(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

 

Benara transviou-se quando era ainda uma menina. Com quinze anos incompletos prostituiu-se por vontade própria, ou antes, pela força de seus próprios instintos. Queria ela mesma ser violentada, entregar-se como as novilhas do pasto, relacionasse desesperadamente e sem  compromissos com quem desejasse o seu corpo jovem. As paixões gritavam dentro dela como um animal faminto. Quando via alguém que lhe apetecia, tornava-se nervosa e tremula. Ninguém a sustentava. Afinal, perdeu-se, no dizer do povo. E numa de suas doidices amorosas engravidou e sem saber de quem.

No povoado onde morava, não havia mais ambiente para ela. Achava pequeno o seu mundo e os homens poucos, foi para uma cidade maior e oficializou-se rapariga. Caiu na pensão paraíso de D. Estefania, que a acolheu com certas reservas, pelos seus modos extrovertidos. D.Estefania já conhecia bem o estilo dessas pessoas imoderadas, e quase sempre ciumentas com as companheiras. Não notara, entretanto, sinais de sua gravidez.

- Olha Benara, aqui é uma pensão de mulheres, mas, mesmo assim há uma disciplina a seguir. Todas as meninas que convivem aqui são iguais, tem os mesmos direitos e as mesmas obrigações. Exigirmos respeito e decoro. É como se fosse uma casa de família. Não se admite rivalidades e nem ambições. Cada uma que apele para sua sorte e seus atrativos, mas muito discretamente. A escolha, aqui, é do visitante e não pode haver recusa. Dependemos exclusivamente de dinheiro que nos pagam. Caso não te sirva assim procura logo outra pensão.

Envelheci desgraçadamente nesta vida miserável, hoje ninguém me quer e tenho que viver dos amores dos outros. Quando era moça e desejada, esqueci-me de fazer economias para um dia libertar-me. Atraída pelos prazeres momentâneos e degradantes, esquecia-me de mim mesma e deu nisto, uma dona de pensão para poder ter o que comer. Aconselho a vocês que não se  iludam com os dias de mocidade e com os atrativos que as noites indormidas consomem sem a gente sentir.  

E o desespero de querer um homem que não nos quer e cai nos braços de outra à nossa vista. Há tanta miséria aqui dentro que nem se pode avaliar. Para quem está lá fora, somos umas mulheres que levam uma vida só de prazeres. Mulheres que desviam rapazes e maridos com o maior cinismo e a maior depravação. Olha Benara, não há lugar no mundo onde se sofra tanto. Quantas vezes temos que nos entregar a um salafrário qualquer, um sujo e abjeto, só para que não falte um pedaço de pão. E ainda há daqueles que não pagam os nossos encantos. É bom que te cuides enquanto é cedo e toma cuidado para não engravidares. Não se tem nem o direito de ser mãe. Uma rapariga grávida é uma pessoa condenada a todos os sofrimentos. Ninguém a quer, não tem pra onde ir e nem como criar o filho. Deus que te livre e a todas as outras.

Benara ficara pensativa. Não era possível que a D. Estefania estivesse adivinhado sua condição, para empurrar-lhe em cima aquelas advertências. Sim, poderia não ser, e não acreditava, com sua mocidade, que a coisa fosse tão negra. Em todo caso era bom preparar-se, juntar algum dinheiro e esperar pelo mau tempo anunciado.

Os primeiros dias de Benara foram de desapontamento. Por mais que se atirasse nas conquistas, não teve sorte. Os freqüentadores do bordel já tinham suas companheiras e olhavam para ela sem dar-lhe atenção. Se, pelo menos, fosse uma mulher bonita, teria melhores oportunidades. No entanto não era e nem sabia aparentar sua sensualidade. Aquela concorrência danada a afligia. O dinheiro que conseguia era uma coisa intermitente, com muitas noites falhas. Vestia-se e pintava-se igualzinha às companheiras, mas não sortia efeito. Sempre ficava para os últimos, quase sempre aqueles que tinham pouca sorte e nem sempre os mais atraentes. Faltava-lhe com certeza uma técnica especial de conquista. E o pior é que quem andava com ela não voltava a procurá-la facilmente. Havia qualquer coisa de menos nela. Queixou-se a D. Estefania e pediu-lhe conselhos.

- Há minha nega, isto é problema de cada uma. Os homens gostam de alguma particularidade das mulheres. Precisam usar certos artifícios, às vezes pequenas coisas, que a gente tem que adivinhar.

Um cheiro  qualquer esquisito, a maneira de atraí-los, um nadinha, podem desencantá-los. É, por vezes, necessário até que a mulher se faça de virgem, de envergonhada. A entrega comum cheia de lassidão desagrada. Há uns que gostam de luz acesa, outros, apagadas. Até essas bobagens influem no relacionamento. Tem-se que aparentar recato, ciúmes, pudor. O que é fácil demais tira todo o prazer. Procura tu mesma descobrires o que está te faltando, ou então abandona a vida livre. E lembra-te que tens muitas concorrentes espertas e treinadas. E como isto aqui é uma luta de vida e de morte, não contes com tuas amiguinhas...

Benara saiu desapontada. Aquilo era uma vida sem regulamentos, sem regras determinadas. Cada uma que se fizesse. Além de tudo, o filho estava lá dentro, crescendo e mais tarde revelaria o seu grave problema. Aí então ninguém iria querer ficar com ela. E a comida e o enxoval e as outras coisas necessárias na vida de uma mulher. Quem haveria de lhe dar.

Não fizera economias. O que lhe davam mal permitia a hospedaria  e a parte de D. Estefania, que, aliás, já havia lhe aberto os olhos para os casos de gravidez. Sentiu-se completamente perdida. Quem diabo havia lhe atiçado o fogo de moça para enfiar-se na prostituição. Havia sido empurrada por desejos incontroláveis. Perdera-se por culpa  do próprio destino. Aquela ânsia de relacionamento não era comum nas outras moças. E as coisas lhe estavam saído pelo avesso.

Supunha-se uma dominadora de homens e ninguém a queria. Bem que a mãe lhe advertira centenas de vezes. E não ouvira como se estivesse querendo trazê-la subjugada e infeliz. Agora estava percebendo o seu erro. E o pior é que suas ansiedades cresciam. Se pudesse devoraria de uma só vez todos os homens. Tinha um inferno dentro de si. E, apesar disso, dormia muitas noites sem ter contato pelo menos com um, o que aumentava seu desespero. Afinal de contas o filho começou a mostrar-se. Dona Estefania percebera e chamou-a a parte.

- E agora, minha tonta, o que será de ti e desse menino que vem por aí! Não tenho como te sustentar. Sempre me deste pouco rendimento. Não vieste ao mundo para esta vida. Deves ser uma dessas insossas, de fogo apagado. E agora, com esse buchão, adeus  lucro. O que pensas fazer, então?

- Nada! Não sair daqui e esperar que me ajudem.

- Como? Achas que vou transformar minha pensão de mulheres numa maternidade. Não dá minha filha. Procura tua família, conta-lhe o teu estado, as tuas desventuras e te aguenta por lá.

- Ora, D. Estefania, mamãe não quer nem me ver. E a mataria de desgosto e vergonha. É uma mulher tão direita e tão boa que nem quero pensar em voltar. Cometi o maior erro deste mundo, mesmo sem saber o que fazia. E como desejaria poder voltar, não ao meu passado, mas ao meu lar para juntinho de minha mãe que tanto me pedia e me aconselhava. Era este corpo miserável que me fazia  endoidar e desobedecer. Agora está aí, quase ninguém o quer nem eu mesma tenho mais aquele fogo maldito que me queimava. E o que mais me preocupa é ter um filho que jamais saberá quem é o pai. Um filho das ervas, como se costuma dizer.

- Creio que não haverá outra saída para o teu caso, se não procurar tua família onde quer que esteja ou pelo menos escrever à tua mãe que talvez te perdoe. Uma mãe sempre perdoa. E então mudarás de vida, mesmo porque não tens atrativos para esta profissão. Tenho pena de ti. Vai, escreve, dá o teu endereço e espera resposta. Terás uma grande alegria ou uma grande desilusão.

- É desta que tenho medo.

- Tua mãe é tão pobre que não possa te ajudar? Mesmo que não te queira, poderá te mandar amparo nesta emergência.

- É, irei tentar.

E semana depois, chegou à resposta de D. Alvina.

“ Sim, foi um alivio saber que ainda estás viva e que lembrastes tua casa. Não me dissestes de que estás vivendo. No entanto presumo entender. E si é como penso, só contarás comigo, retornando a tua casa e mudando tua vivência. São estes os meus conselhos. Terás o teu filho em nossa companhia. Sempre me afligiu o pensamento de tua vida irregular e pouco ou nada honesta. Espero-te a qualquer momento e com uma condição. Nunca me falarás do teu passado. Prefiro não saber de tuas alegrias ou de teus dissabores. Jamais me esqueci de ti, mas infelizmente nunca nos deste uma notícia. Certamente as alegrias e os prazeres se foram e caístes na dura realidade da vida. Neste mundo tudo é passageiro. Os impulsos da mocidade conduzem quase sempre a grandes desenganos. Minha experiência de vida poderia ter te ajudado de teus impulsos. Espero que entendas que poderei ainda ser tua tábua de salvação. Venhas, pois, disposta a salvar-te. Sem essa condição talvez seja melhor permaneceres onde estás.”

Benara correu para casa. Por precaução deixou todos os objetos de sua vida de mulher livre, inclusive as roupas atrativas. Teria que simular que era uma serviçal doméstica e que o filho  era fruto de seus próprios erros iniciais.

Entrou em casa assustada e chorando como uma criança que havia andado perdida. Não esperava que a mãe recebesse com tanto carinho.

- Mãe, minha mãe, perdoe-me por haver sido tão má e ingrata. Deixei-a só, sem pensar em ninguém. Nem em mim, nem na senhora. Era uma louca varrida. Mas a própria vida ensinou-me a viver. Faça de mim o que desejar. Já devo ter pago todos os meus pecados. Andei por onde não deveria andar. Sofri o que não deveria sofrer.

Mas tudo isto me deixou uma boa lição. Aprendi a viver dentro da realidade. Isto acontece quando não se confia na experiência daqueles que já percorreram longos caminhos da vida. Os arroubos da juventude são maus conselheiros.

Via tudo tão fácil e tão cor de rosa que dei um mergulho no mar de minhas fantasias. Do outro lado encontrei-me com o inesperado, um mundo diferente e cruel. E como estava desprevenida e despreparada para enfrentá-lo, afoguei-me nas desilusões. O que me resta é este filho que vai nascer e que infelizmente, não tem pai certo. E há de perguntar-me um dia quem é. E terei que mentir para esconder os meus erros.

- Bem, o importante é que chegastes de volta, com ou sem filho e reconheces que tens e sempre tivestes uma mãe.

Com menos de dois meses depois nasceu Tecílda. Uma menina perfeita, de olhos esverdeados e um rosto bonito.

- Deus queira mãe que não herde minha teimosia e burrice. Terei que lhe dar bons exemplos.

Foram-se os anos e Tecílda já era uma mocinha. Um perigo de mulher. Inquieta. Quem a via uma vez, não a esquecia facilmente. Benara vivia assustada. Ela tinha sido assim. E se fosse como ela iria passar pelas mesmas angustias. No entanto e felizmente estava enganada com Tecílda. Era voluntariosa, mas tinha a cabeça dominando o corpo.          O que ela queria era se casar, ter o seu lar e dois ou três filhos. Mas não seria casar com qualquer mequetrefe para viver às suas custas e fazer dela uma criada. Cercada como vivia, pela sua beleza física e desembaraço no relacionamento amistoso, tinha espírito de decisão para não se deixar envolver como uma mocinha inexperiente e tola. Ou aparecia o que ela queria, ou continuaria à espera, sem pressa, sem agonias íntimas. Despachava-os com a maior tranqüilidade. Poderia ser até o seu tipo desejado fisicamente, mas faltava o mais importante que era a conduta moral e a capacidade para manter uma família com paz e o conforto relativo com que ela sonhava. Não havia pressa em se tornar mulher. Conhecia através de amigos, a historia da mãe, com as suas doidices e os seus sofrimentos. Poderia cometer um erro, mas se acontecesse saberia livrar-se dele. O casamento duraria apenas até quando lhe conviesse. Não que se tornasse exigente e impertinente, mas não toleraria um homem que não fosse honesto e compreensivo.

Voltaria à sua casa da mesma forma que saíra. De escolha em escolha, decidiu-se pelo Amâncio que lhe fazia o cerco como se fosse ela única mulher de toda sua vida. Antes do casamento colocou os pontos nos ís. Não adiantaria ter ilusões. Queria um bom companheiro e um lar com filhos, mas, sem arrepios ou discordância. Não tolerava ciúmes e não daria motivos. Que não confundisse relacionamento social com traição.

- Mas Tecílda, ciúme é sinal de amor.

- Não! No meu entender é sinal de desconfiança. Uma doença dos fracos. Se não tens certeza de minha sinceridade, procura outra que não te cause ciúme. Não adiantará um casamento passageiro. Depois de me tornar mulher, serei outra inteiramente outra.

- E já será difícil conseguir o companheiro que desejo.

- Não, Tecílda, não é bem isto que estás a pensar. Queria apenas te dizer que te amo demais e que o destino me livre de te  perder.

- Olha, não acredito em conversa de namorado ou de noivo. Todos eles são quase uns santos. E quando se casam e tomam conta da mulher, começam as exigências, as desconfianças, as proibições, o autoritarismo, o que jamais aceitaria. E o pior de tudo são as mentiras. Nunca dizem onde andam e sempre têm um trabalho especial ou urgente lá fora. Um amigo que chegou ou vai chegar, um negócio importante a resolver. E a mulherzinha fica em casa a esperar com o maior cuidado, desejando boa sorte.

Mas comigo essas conversas fiadas não calham. Portanto, pondera bem no que pretendes fazer. Não é que deseje prender-te em casa, mas é um aviso de que não conseguirá me enganar. Não serei escrava de ninguém. A roupa será lavada de acordo com o sabão. Entendes onde quero chegar? Espero que sim!

- Olhe Tecílda, também não esperes que seja um marido subjugado, controlado como os botões de minhas calças ou os colchetes de tuas saias. Sempre fui um sujeito honesto e tenho confiança em ti. Achas por ventura que quem se casa com uma mulher igual a ti, ainda precisa fazer escamoteações. Onde iria encontrar alguém que me fizesse te esquecer por um minuto. Do contrário, terminemos aqui.

Nem quero mandar em ti e nem quero ser manobrado. Tem que ser de igual para igual. Falas dos homens e te esqueces que existem muitas mulheres simuladoras e manhosas; estou falando em tese, é lógico, pois se não confiasse em ti, andaria longe em minhas pretensões. Parece que somos iguais. No entanto, Tecílda, já imaginas-te um casal, sem uma briguinha uma vez por outra. Não achas que fica muito insosso, não? Amanhecer e anoitecer na mesma doçura. O bom mesmo é uma briguinha e depois fazer as pazes, num reencontro. O amor exige essas coisas, senão perde a graça. Sem turras é a mesma coisa que comer goiabada a vida toda. Pode enjoar. Pensa, pensa bem...

- Pelo que noto já tens experiência disso. Abre teus olhos!

- Não te enganes. A própria comida requer temperos diferentes. O mesmo tempero enjoa. E é por isto que a comida da casa dos outros é sempre mais saborosa, mais gostosa. A gente deve mudar até de lugar na mesa, criatura.

Sei que irei te adorar, vendo-te zangada comigo, com a carinha amuada e com vontade de fazer as pazes, olhando-me às escondidas, arranjando um pretexto qualquer para que te faça um carinho.

- Já começas com as tuas sem-vergonhices. A gente pode experimentar, mas se não der certo, não se repete.

- Farei como  quiseres, mas aposto como irás adorar. Ficar correndo atrás um do outro e terminar naquele lugar...

Afinal, casaram-se. Tecílda não dava tréguas ao marido que, por isto mesmo, já tardava em voltar para casa. Não havia outro meio para um descanso, se não, dar uma brigada. No entanto, Tecílda não lhe dava um motivo. Quando mais Amâncio a desafiava, mais carinho recebia. Ficava feio confessar suas fraquezas. Inventou uma viagem, mas Tecílda à última hora resolveu acompanha-lo.

- Mas mulher, será uma viagem desconfortável, demorada. Deixar o conforto de casa para andar por aí, comendo mal, fora de hora, dormir em camas duras. Vê bem, onde queres te enfiar.

- Ora, não me dissestes que o bom é variar. Pois é o que quero.

- Então, não irei. Não quero te sacrificar. Entendes?

- Entendo não. Não poderei passar uma noite sequer, sozinha. Perco o sono, fico inquieta, só pensando, pensando. E quando me atraso fico pior...

- Esta bem. Farás como quiseres.

- Irei não. Era só para ver tua reação. Iniciar um comecinho de briga! Mas, antes de saíres, vamos à máquina de costura para acabar a briga...

- Vai costurar sozinha. A agulha quebrou-se.

- Já esperava por isto. Demores o quanto quiseres, mas só me voltes com um papel de agulhas novas. E de agulhas “Singer” legítimas. Agulhas de carregação destemperam logo.

- E se não encontrar?

- Não costuro mais. Interromper costura por causa de agulha falsificada, de material fraco e mole, não dá...

 

Em 21.10.1986.

*O conto pertence ao livro “ Vidas Nordestinas”, no prelo.

 

 

 

 

quinta-feira, 5 de junho de 2014

ALZIRA


Alzira*

João Henriques da Silva

(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

 

 

Alzira envelhecera antes do tempo. Ainda uma quase moça, cheia de ilusões e precocidade sexual, abandonou a família para se entregar a vida de mulher livre.

         Moreninha, de olhos verdes, corpo apetitoso, jurava, talvez, que sua juventude seria eterna. Que os seus encantos não a abandonariam enquanto vivesse ou, pelo menos, esquecia-se de que o tempo é a ferrugem que desgasta o corpo e a alma das criaturas; muitas vezes, muito mais cedo do que se espera. E com Alzira foi assim. As noitadas e as doações intempestivas começaram a dissolvê-la, a destruir suas formas e sua beleza, antes que saciasse completamente os seus desejos aflorados tão precocemente.

Alzira supunha que o abandono em que ia ficando era coisa passageira, uma fase em sua vida de mulher livre. Outras meninas iam chegando, morenas e louras, algumas novinhas em folha, como se poderia dizer, pois haviam perdido apenas o papel da embalagem. E Alzira tentava reagir, ora se insinuando, procurando tomar o caminho das concorrentes, ora exibindo os restos de sua passada exuberância. E apesar de todos os artifícios, sua clientela diminuía, tornava-se escassa e o que aparecia era o refugo dos frequentadores da pensão. Passou, então a desiludir-se e desesperar-se. Era ainda uma mulher relativamente moça e já faziam aquilo com ela. Não compreendia como o mundo era tão perverso. Foi ao espelho barato da parede de seu quarto, olhar-se atentamente, na esperança de reencontrar-se. No entanto lá estava uma Alzira arruinada, destroçada, envelhecida antes do tempo, um desencanto de mulher. Voltou à imaginação para o que fora, tão novinha, espocando de desejos, atrativa, requentada, e afinal, na realidade estava um caco daquele, de olheiras avassaladoras, as rugas sulcando-lhe o rosto, sem despertar mais apetite. Os olhos encheram-se d’água quente e salobra que lhe descia pelas faces como um caldo quente a lhe queimar as últimas esperanças. O que lhes sobrara de suas decepções eram apenas as economias que havia feito e que, sem homens, durariam pouco.

            Fechara os olhos para ver melhor o seu destino. Estava arrasada. Não podia entender como diluíra tão rapidamente em tão pouco tempo. Foram certamente à bebida e o esforço de fingir um amor que não existia. Pois, raramente encontrava um parceiro por quem sentia algum prazer. No mais era relacionar-se pensando apenas nos poucos mil reis que iria receber no final daquela força miserável. Ter que beijar sujeitos mal cheirosos, repugnantes, para valorizar-se como mulher. Fora isto, certamente, que a consumira. E então, resolveu passar um mês em férias, tentando uma recuperação. Talvez readquirisse as apetitosas formas do corpo e as feições se tornassem agradáveis e atraentes.

            Mas nada disso deu o resultado sonhado. Só o fato de saber que a dona da pensão não tinha piedade de ninguém, e andava sempre à cata de moças mais novas, semivirgens para tornar o seu bordel mais convidativo e ter maiores lucros, deixava-a apavorada. As moças mais velhas, embora fossem mais artificiosas, falhavam na aparência e não eram frequentadas. E danava-se com os homens mais idosos que só queriam as meninas novinhas, em folha. Sabia que eles tinham razão, mas era desumano. E lembrava-se de seus primeiros tempos, que também dava preferência aos homens feitos e endinheirados, pagavam bem e sempre voltavam. A rapaziada pagava abaixo da tabela e não oferecia qualquer segurança e raramente uma dose de uísque. Andavam com ela, a frio.

Alzira teve que voltar á atividade e resolveu mudar de pensão. Talvez tivesse melhor sorte e pelo menos os companheiros não saberiam que estava sendo rejeitada. E, além disso, era uma “pensão” que mudava menos as suas mulheres.

Algumas noites, na verdade, foi novidade para a nova clientela, mas depois foi ficando só, e chamada uma ou outra vez. Percebeu que estava mesmo no final de carreira. E veio-lhe, então, o amargo arrependimento de ter caído na vida, e mais ainda de haver recusado uma amigação quando ainda era a preferida pelos seus encantos de menina quase virgem. Mas Deus que a livrasse de pertencer a um só homem e logo já de certa idade. Como era que podia ser tão infeliz em tão pouco tempo de profissão. Se houvesse se amigado, pelo que agora percebia, nem haveria decaído tanto e não estaria arruinada.

            Seu pretendente, o Santiago, apaixonara-se pelo seu corpo e pelo seu andar de mulher fogosa, mas não houve meio de convencê-la. Chegava a achar uma proposta ridícula e aconselhava-o a levar uma daquelas coroas, de fim de linha. Mas, ela não, que nem chegava para quem a queria. E só a vaidade de ser uma das mais requisitada, parecia-lhe uma grande coisa, uma grande vitória. Pois não era, mal voltava de um, já estava na cama com outro. Quase não tinha tempo de se enxugar, como ela dizia e se vangloriava. E o que era pior, agora, é que o tempo de férias consumira quase todas suas economias. E por que diabo, não lhe aparecia outro Santiago, ou seja, outro qualquer que a levasse a viver outra espécie de vida. Empregava todos os seus artifícios de mulher tarimbada, mas o tempo estava encarregado de matar suas últimas ilusões. Sentia-se perdida. Mal ganhava para pagar com atraso a pensão. Os vestidos eram os mesmos, passara a usar adereços vagabundos e os artigos de maquiagem os mais baratos e até tinha de valer-se das companheiras para colorir o rosto e a vermelhar a boca descorada. De grau em grau ia se tornando o sobejo das pensões. E de queda em queda, já frequentava as pensões mais sórdidas do mundo dos cafajestes, onde só se bebia cachaça e as camas eram de colchão de capim e dos mais ordinários. Pensara em suicídio, mas não tinha coragem. Tentava um emprego doméstico, mas ninguém queria uma mulher livre e suspeita em sua casa. Conhecia companheiras de sua idade que ainda estavam em plena forma, enquanto ela liquidara-se daquele jeito. Bebera demais e fingira demais para ser a preferida. Consumira-se assim. Agora só lhe restava mudar de ambiente, socar-se onde ninguém a conhecesse montar uma “casa de mulheres” e tentar sobreviver. Mas não tinha jeito e nem meios para isto. Desesperada foi procurar o Santiago, em casa de quem estivera antes e de quem recusara uma amigação permanente.

            - Ah! És tu Alzira, neste estado. Foi doença que te deixou assim, ou desgostos. Como é que conseguistes chegar a um estado deste. Mas afinal o que pretendes de mim. Posso te ser útil em alguma coisa, fala.

            - Podes, sim. Não me deixar afogar-me numa miséria maior. Todos os homens fogem de mim. Ninguém seque tem um pouco de piedade e as próprias companheiras zombam deste meu estado de decadência. E mais de uma vez tenho ouvido comentários: – É uma concorrente a menos. - Naquele tempo pensava que seria sempre uma mocinha atrativa e adorava variar, conhecer todos os homens. Era uma espécie de doença e dela sofro hoje as consequências.

            - É verdade, mas, não deveria ter procurado me humilhar, zombando de mim quando te convidava para viver comigo. Tive até que mudar meu ambiente noturno para não te ver apontando-me às tuas companheiras com aquele teu risozinho diabólico e zombeteiro. Jamais havia imaginado que seria recusado por uma mulher de vida livre, e ainda hoje me doe à humilhação que me causastes. Não desejava ter oportunidade de dizer-te essas coisas, mas vieste ouvi-las. Tudo quanto te prometia era em vão. No entanto, fizeste-me um grande bem. Casei-me com uma linda mulher, tendo dois belos filhos, um lar risonho e confortável, que poderia ter sido teu. Mas tive muita sorte em não haveres aceitado os meus insistentes convites. Em todo caso não te vou desprezar, isto é, a te propriamente, desprezo pelo que me fizeste, mas em atenção a esta miséria a que chegastes e também por haveres me procurado. O que queres, afinal.

            - Qualquer espécie de amparo, um canto onde cair viva, onde tenha o que comer e onde dormir. Pelo menos este mínimo para a sobrevivência de uma pessoa. Um emprego doméstico pra varrer chão, lavar roupa ou, sei lá, o que posso merecer. Quero também que me perdoe o que fiz. E tanto que as companheiras me aconselharam a aceitar o teu convite. Mas, supunha que fazia aquilo para se ver livre de uma concorrente. E foi visto que me enganei perdi para todo o sempre. Sou, hoje, este bagulho, sem homem, sem dinheiro e, o pior de tudo, até sem ter aprendido a profissão que adotei. E pensar ainda que fui uma mocinha criada com tanto gosto pelos meus pais que nem seque sabem onde ando. Devem ter sofrido de mais pelo meu procedimento sujo e vergonhoso. É até preferível que nunca saibam do tipo de vida que levo. Seria reavivar-lhes os desgostos. Fui uma louca ordinária. E somente agora, na miséria em que estou, percebo todos os meus erros, tarde demais.

            - Não é necessário contares mais nada, nem te lamentares. De tudo que ouvi, concluo que me fizeste um grande bem em me recusares. Terias com certeza impedido minha felicidade de hoje. Agradeço-te, por isso, e assim tenho que te recompensar. Vou dar-te o suficiente para saíres daqui e começares outro tipo de vida aonde chegares, caso aceite. Não te desejo outra coisa senão que sejas feliz. Toma, guarda e segue o teu caminho. Tenho dó do teu estado deplorável e prefiro não te ver mais e nem guardar lembrança tua. Já vistes que o teu corpo foi um fracasso. E era só exuberância que ostentavas, ou foste tu mesma que o diluístes. Procura tua família, antes que seja tarde demais. Pode ser que ela te recupere e salve. Basta pelo menos, que consiga a benção de teus pais e o bem querer de teus irmãos. Talvez não mereças, mas valerá a pena tentar.

            - Agradeço tudo quanto está fazendo por mim, inclusive os bons conselhos. E devo confessar-lhe que minha desventura começou naqueles dias que me neguei a acompanhá-lo, Queria homens e mais homens na minha vida. Era uma espécie de doidice do meu corpo de mulher nova. Mas não tardou que se saturaram de mim. E fui caindo no abandono, arruinei-me até este estado, lamentável. Do dia para a noite envelheci e o meu corpo cansado e envenenado de tanta luxúria, transformou-se nisto. Oco e vazio. De insaciável que era, é hoje, nada mais, nada menos do que uma espécie de corpo sem vida. Não sente mais nada, não deseja mais nada. Um incêndio que se apagou e onde somente restam cinzas frias. Nem sei como se morre assim, sem perder a consciência do que foi e do que é. Se ao menos tivesse como esquecer o erro que cometi recusando teu convite, mas esta minha ruína me adverte a cada instante. Adeus.

             FIM

 

*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas, no prelo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

quarta-feira, 4 de junho de 2014

A REZADEIRA



 

A REZADEIRA*

 

João Henriques da Silva

(In Memoriam 20/09/1901 – 16/4/2003)

 

 

Quando terminava a cidade, lá um pouco mais adiante, cercada de mangueiras, cajueiros e pitombeiras, estava à casa de taipa da preta Rosalina. Rezadeira afamada sempre metida em suas saias compridas ornadas de babados e casaco meio arriado para mostrar os rosários coloridos que volteavam o pescoço e lhe davam ares de santidade. Por trás da casinha e sempre bem cuidada, a horta de plantas misteriosas, plantas medicinais: Arruda, alecrim, manjericão, alfazema, jurema de feiticeiro, louro cheiroso, semente de embira e quanta coisa havia de plantas cheirosas.

            Rosalina não fazia outra coisa senão atender os doentes e nem sobrava tempo para mais nada. Não cobrava de ninguém. Dava o que queriam em dinheiro, ovos, galinhas, frutas e quantas coisas mais. Rosalina guardava as sobras em moedas de prata que ia adquirindo com o que lhe davam. As rezas seguiam-se os banhos cheirosos, os defumadores aromáticos que afugentavam os espíritos maus e fechavam o corpo contra qualquer espécie de doenças e maldades.

            Em corpo fechado não entra bala. Além do mais uma reza especial tornava a pessoa invisível, numa surpresa ou apertura qualquer que o sujeito se encontra. A velha Rosalina bancava também Santo Antônio, arranjando casamento ou desencalhando moça velha.

            Possuía plantas milagrosas que impediam os maridos ou as mulheres de se bandearem.

- Leve, planta um pezinho de resedá do roxo, na entrada da casa e vais ver como tudo anda certinho. O cabra perde a influência e fica em casa feito um gato capado. E as mulheres se acalmam. Contra mau olhado ou azar, um pé de pinhão roxo na frente da casa. Em casa não entra desgraça. Mas não se tira galho do bichinho. Deixa crescer a vontade.

Uma das especialidades era rezar em espinhela caída e moleira baixa.

            Essas doenças de crianças curavam com uma ou duas rezadas. O tratamento de doido ou aluado, este sim, exige mais tempo. Além de reza forte, exigia uma série de banhos com entrecasca de mulungu. Quando a coisa já estava muito adiantada, se não curava totalmente, acalmava e passava a violência. Mas, havia uma coisa que Rosalina não fazia por preço nenhum: aborto. - Não senhora, - Deus proíbe essas coisas. - Quem mandou você se meter com homem. O bichinho que vai nascer não tem culpa do que você fez. No entanto, uma coisa posso fazer: derrubar o bicho que fez isto contigo. Dou-lhe uns chás que ele nunca se levanta e vai ficar somente nesse.

            - Mas dona Rosalina, o meu problema é grave.

- Sim, sei que é problema de gravidez, mas vai procurar outra ou o doutor. Rosalina, não. Se fizer uma coisa dessas, perco as forças para as curas. E o que é que tem demais, dar a luz a um filhinho. Somente porque não te casastes. Bobagem. Eu tive os meus e nunca fui ao padre, nem juiz. Nasceram direitinho, estão crescidos, casados e vivem muito bem. Água benta e conversa fiada de doutor não vale nada para essas coisas. Então, só porque seu vigário ou o doutor juiz manda vocês se juntarem, acabou-se o pecado. Bobagem, menina. Tanto faz, como tanto fez. É só formalidade. Deixa a barriguinha crescer, ou então corre logo pros pés do padre.

            - Mas não é isso dona Rosalina. É que vou ficar morta de vergonha.

            - Põem a vergonha de lado. Quantas outras já tiveram filhos sem se casarem, hein?

            - Ora, não é por isto, minha tia. É outra coisa pior. É que eu fui enganada por um preto quase retinto. E o menino, com certeza vai sair negro. Já pensou a vergonha. Eu branca, de família toda branca, com um menino de cor e sem pai. É um caso diferente. Ajude-me.

            - E o que é que tem nascer um pretinho, de cabelo de carapinha. Negro também é gente. Olha os meus são pretinhos e estão ali, sem fazer vergonha a ninguém.

            - Lá em casa é diferente. Mamãe nem toma sol para não queimar a pele. Imagine quando me vir com um negrinho botando a cara de fora. Deus me acuda, ela vai me matar. Sei que a senhora vai dar um jeito. Tem menos de um mês. É só aquela coisinha começando.

            - Bem, vou te dar uns chás. Mas tomas em casa e não digas nada. É a mesma coisa que puxar a tampa de uma garrafa, com um saca-rolha novo. E não tem perigo. Para curar o resto, toma este outro chá. E não tomes forte demais. Uma folhinha só. Mas não me venhas mais aqui com essas coisas. E não diga patavina, senão vou contar tudo a tua mãe.

             Estou quebrando minhas promessas, mas tenho pena de ti. Agora te enroles com outro negro...

            - Deus me livre. Sabe de uma coisa. Depois do que aconteceu, vou morrer solteira.      - Então leva estas folhinhas e manda-o tomar três chás fortes. Não gosto de negro enxerido... Nunca mais vai se meter a cavalo do cão.

             Moleque filho de branco, não tem um que dê pra nada. Eu mesma nunca fiz negócio com branco... A mistura é uma lástima. E depois o bicho nem sai branco nem preto, sempre um ruzagá de cabelo encolhido e amarelado. Uma coisa esquisita... Negro só presta puro. E olhe lá! Vá e crie vergonha. Não se junte mais com negro para não fazer quebrar a jura. De outra vez o moleque botará a cara de fora.

             Rosalina usava uma franqueza um tanto crua. Guardava, entretanto, segredo absoluto. Um dia levaram um adoidado para o tratamento. Bicho moço, corado, com mania de mulheres. Quando a lua apertava ninguém de saia podia passar por perto dele.

- Deixe-o que vou tirar-lhe o fogo. Basta trazê-lo aqui duas vezes por semana. Preparou uma garrafada com mistura de muitas ervas e deu-lhe um banho concentrado de entrecasca de mulungu. Banho demorado. Uma garrafada para tomar três vezes ao dia. Nunca mais irá se assanhar. Nem pensar mais em mulheres.

            E de fato, três semanas depois, o bicho esfriou e passou a ter nojo de mulheres.

            - Bem que eu disse. Um santo remédio. Inutiliza qualquer um. Quem tiver marido vadio, pode mandá-lo aqui. Tiro-lhe as forças sem o cabra suspeitar. Invento alguma doença e tranco-lhe uma garrafa de deixá-lo bambo. E o melhor é que o bicho fica com vergonha e não diz nada a ninguém. Fica um sujeito caseiro dá até para lavar pratos e ajudar no fogão.

Dona Querência tinha um marido sem vergonha, desses cachorrões que nem respeita a esposa. Dona Querência contou tudo à dona Rosalina.

            - Como é o bicho, tem alguma doença?

            - Nada, é um demônio. Sadio, corado como um touro das caatingas.

- Então leva este remedinho e põe na comida, uma vez por dia. Não tem gosto e nem tem cheiro enjoado. O bicho, depois de uma semana, vai começar a sentir-se impaciente, nervoso. Aconselha-o, então a procurar-me. O resto deixa por minha conta. Acalmo-lhe os nervos e depois o resto. Vai até querer fazer renda ou crochê. Acabo com a fúria do malandro.

            Dito o feito. E não demorou. Sair de casa, pra que... Desapareceu das pensões e das esquinas.

            - O Dandão deve estar muito doente. Nunca mais botou o nariz de fora.

E os amigos de farra foi se ter com ele, saber o que estava acontecendo.

-Nada, meninos! Enjoei-me e cansei-me daquela vida. Quando se quer é assim.

            - Mas rapaz um visitinha por semana, ao menos.

            - Nada disso. Não quebro meu juramento. Força de vontade é isso.

            - Oi! Dona Querência. Como vai o cornão?

            - Macio e calmo como seda. Já está até me enjoando, só dentro de casa, a fumar e metido no arranjo de casa.

- Quer que eu lhe dê um pouco de vigor? Tenho ervas para isto.

            - Deixa como está. Já está esquecido do mundo. É da loja para casa e da casa para a loja e a igreja. Vai bem, obrigado.

            De outra feita deu-se o contrário. Mestre Cantídio, andava de cabeça baixa com os passeios da patroa. Sempre tinha compras a fazer, visita, dentista, médica e ganhava a rua para as viradas. Cantídio morria de paixão pela mulher e suportava tudo para não perdê-la. Mas um dia lembrou-se da rezadeira. Poderia dar um jeito.

- Ora, é muito simples, curo isso com uma reza forte. Nem preciso vê-la. Muito bem.

- Reze dobrado porque a mulherzinha é endiabrada. Não pode ver homem que fica logo assanhada. Deve ser uma doença.

            - Doença coisa nenhuma. É safadeza e falta de homem em casa.

            - Ah! Essa não. Homem tem, mas a bichinha tem azougue. Vê aquilo miudinha com cara de anjo, pois é, vive no pega-pega, não para em casa e todo mundo falando dela.

            - Não se preocupe homem. Vai ver como se apaga um fogo. Volte e aguarde tranquilo.

            Dias depois, mestre Cantídio reapareceu. Cara de desapontado e desiludido. Dona Rosalina. Deu tudo errado. A senhora trocou a reza. Inverteu tudo. A Miudinha está é cada vez mais espritada. Não para mais em casa. Devora tudo. Encurtou as saias em baixo e me cima. Cada vez mais sassaricando. Sai na minha cara e não dá bolas.

            - Aonde vai?

            - Vou ali. Quer saber o que é? E já esta com o pé na rua. Antes ainda procurava disfarçar um pouco. Mas hoje... E agora dona Rosalina.

            - Fiz o que sabia. Gente miudinha assim é sempre teimosa. Faz que não vês ou te mudes. É o remédio.

- Já falei em sair. Sabes o que me respondeu?

- Era só o que faltava. Casei-me contigo para que? Para ter um marido atencioso e cordato. Nem te mexas. Quem vai me dar casa, comida, vestidos, sapatos e bons perfumes; preciso me apresentar elegante e cheirosa. Sou uma mulher exigente. Uma vez que não me dás tudo que esperava de ti, terás que cuidar de uma parte, que cuidarei da outra. Quando saio volto para a casa inteirinha como saí. Apenas me divirto um pouco. Só isso.

- Tem jeito. Diz isto de cara lisa, como uma santa.

            - Olha! Não te aflija, tua mulher tem razão. Aquilo que não encontra em casa, vai procurar fora. E deve ter nojo desse teu amolegado. Mulher gosta e respeita homem decidido, que manobra ela, e seja obedecido no duro. Não gosta de paspalhão. Traça o teu riscado e põe a miudinha no cerco.

            - Isto mesmo. Não havia pensado nisto para não desagradá-la. Mas agora vai ver com quantos toros se faz uma jangada. Não preciso mais de reza nem xaropada. Começo logo que chegar a casa.

 E entrou de porta adentro pisando duro.

            - Vai ver Miudinha. Desaforo!...

            A casa estava vazia, o guarda-roupa e as gavetas da cômoda abertas. Coisa esquisita. Foi algum ladrão na certa. Chamou à Miudinha e nem o eco de sua voz. Estava em cima da mesa um bilhete:

 Não te preocupe Cantídio, vou passar uma temporada fora. Caso não me der bem, voltarei. Não fui só, estou bem acompanhada e bem guardada. Saí com o teu grande amigo, Prudêncio, em que podes confiar totalmente. Não é verdade? Amigo é para essas ocasiões mesmo. Portanto fiques tranquilo que estou em boas mãos. Não ponhas ninguém em meu lugar. Poderei voltar. Um abraço e um beijo de tua miudinha. Levo saudades. Sempre foste muito compreensivo. É difícil encontrar um marido igual a ti. Reparas que deixei duas lágrimas no papel. Guarda este bilhetinho como lembrança. Teu amigo Prudêncio manda-te forte abraço e diz que não precisas te preocupar. Cuidará bem de tua miudinha. Caso precise de algum dinheiro, mandarei meu endereço. Portanto, é bom que vás juntando para qualquer emergência. Sabes muito bem que se gasta muito numa viagem assim. Prudêncio confia em ti. Sem outro assunto urgente, aguarde nossas notícias. Caso algum outro amigo teu e meu, venha a me procurar ou perguntar por mim, dize-lhe que saí em gozo de férias. Os verei depois e transmita-lhes minhas saudades. Foram muito bonzinhos comigo. Pede-lhes desculpas por não haver me despedido.

            Cantídio ia rasgar o bilhete, com as veias do pescoço inchadas. Pegou-a com as duas mãos e ia começar o trabalho, mas refletiu. A coitadinha pediu para guardá-lo. E deixou nele duas lagrimas. Saiu morta de saudades. Coitada da Miudinha. E é capaz de já estar precisando de dinheiro. O Prudêncio sempre foi meio liso. Se houvessem me falado teria feito um adiantamento. Bem que poderia ter saído com Cavalcanti, cheio das granas. Essas mulheres nunca pensam direito nas coisas. E agora que fique eu com essa preocupação de que poderão passar dificuldades. Como é que se viaja assim... É o diabo. Já sofro de insônias e agora com essa preocupação, como é que vai ser.

            No dia seguinte foi logo ao banco, ver o saldo de sua conta corrente, com medida de prevenção. Encontrou-o quase a zero. E foi então que se lembrou de que havia dado o talão com um cheque assinado. A Miudinha havia levado tudo. Ainda bem. Assim fico menos preocupado. Mas onde andarão a estas horas. A Miudinha sempre teve medo de dormir sozinha e é capaz daquele idiota nem saber disso. E agora, sim. Ficar com mais esta dúvida. Eita mundo velho cheio de complicação.

E neste vai e vem das ideias, Cantídio lembrou-se de dona Rosalina, de suas recomendações.

            Sou idiota lavado. Pois não é que havia me esquecido de tudo. Incrível, esta falta de memória. A sem vergonha, foge com um cabra safado, deixa um bilhete cínico, furta-me o saldo do banco, bota chifre dia e noite e ainda me fico com essa maldita pieguice. Deus queira que apodreçam os dois, roídos de sífilis, sequem de fome e não tenha quem faça o enterro. Tem vergonha na cara Cantídio. Vai procurá-los e mate todos dois. Não, isto não, matar é um ato selvagem. E depois quero bem a Miudinha e o Prudêncio sempre foi o melhor amigo. Espantou as ideias com a mão, como quem espanta mosquito e foi á janela respirar aliviado. Numa mulher não se bate nem com uma flor. E depois a Miudinha é tão bonitinha. Vou fazer tudo que me pediu. Quem é que pode deixar de fazer alguma coisa pelas mulheres. E especialmente para Miudinha que usa tanta sinceridade. Se fosse outra ocultava tudo. Ela não. Não me esconde nada. Além disso, zela minhas amizades. Se fosse outra jamais faria tal sacrifício de sair por ai acompanhando um amigo precioso como é o Prudêncio, solteirão, sem sorte com as mulheres. Vou mandar ampliar o retrato da Miudinha para tê-lo no salão das visitas, como uma homenagem a tanta dedicação.

            Dois meses depois, chegava um aviso: meu bem estamos quase sem dinheiro, vai o endereço de sua saudosa Miudinha. E era justamente isto que Cantídio queria saber. Colocou o dinheiro no banco, ordem de pagamento urgente e tomou o primeiro transporte.

Saltou em Nova Pedreira, esperou a noite para se esconder da luz e pegou os dois em plena exultação, isto é, avistou de longe, tomou posição e desfechou-lhes quatro tiros de 38, munição novinha. Esperou para ver se estavam prontos, certificou-se retornou tranquilamente a casa. Havia cumprido o seu sagrado dever.

A notícia chegou e Cantídio a recebeu em prantos. Mandou rezar missa de sétimo dia. Cobriu-se de luto e sempre enxugava as lágrimas quando alguém lhe falava no acontecimento trágico. Certamente fora alguém rival do Prudêncio.

 Dias depois chega de volta o aviso de crédito. A destinatária havia morrido.

Estava confirmada, sua inocência. Quando lhe falavam em novo casamento, benzia-se.             

- Deus me livre. Onde iria encontrar outra Miudinha, tão fiel que me fora. - O revolver, o Cantídio deu um banho de água benta, lubrificou-o e guardou carinhosamente, fica ai até que apareça outra Miudinha. Demorei preparando as coisas, mas funcionou direitinho. Desculpe minha querida. Deus te reserve uma nesguinha no céu. Dona Rosalina não conseguiu apagar-te o fogo com suas rezas, e quando reza não cura, 38 faz milagre. Descansa em paz ao lado do teu Prudêncio. Assim viverão sempre juntinhos aquecendo um ao outro. Bonzinho, não é minha queridinha...

 E mandou colocar no tumulo da Miudinha: Morreu por amar demais. “Saudades – Cantídio”.

 

 Setembro: 1985

 

*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.