BENARA*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)
Benara transviou-se quando era ainda
uma menina. Com quinze anos incompletos prostituiu-se por vontade própria, ou
antes, pela força de seus próprios instintos. Queria ela mesma ser violentada,
entregar-se como as novilhas do pasto, relacionasse desesperadamente e sem compromissos com quem desejasse o seu corpo
jovem. As paixões gritavam dentro dela como um animal faminto. Quando via
alguém que lhe apetecia, tornava-se nervosa e tremula. Ninguém a sustentava.
Afinal, perdeu-se, no dizer do povo. E numa de suas doidices amorosas
engravidou e sem saber de quem.
No povoado onde morava, não havia
mais ambiente para ela. Achava pequeno o seu mundo e os homens poucos, foi para
uma cidade maior e oficializou-se rapariga. Caiu na pensão paraíso de D. Estefania,
que a acolheu com certas reservas, pelos seus modos extrovertidos. D.Estefania
já conhecia bem o estilo dessas pessoas imoderadas, e quase sempre ciumentas
com as companheiras. Não notara, entretanto, sinais de sua gravidez.
- Olha Benara, aqui é uma pensão de
mulheres, mas, mesmo assim há uma disciplina a seguir. Todas as meninas que
convivem aqui são iguais, tem os mesmos direitos e as mesmas obrigações.
Exigirmos respeito e decoro. É como se fosse uma casa de família. Não se admite
rivalidades e nem ambições. Cada uma que apele para sua sorte e seus atrativos,
mas muito discretamente. A escolha, aqui, é do visitante e não pode haver
recusa. Dependemos exclusivamente de dinheiro que nos pagam. Caso não te sirva
assim procura logo outra pensão.
Envelheci desgraçadamente nesta vida
miserável, hoje ninguém me quer e tenho que viver dos amores dos outros. Quando
era moça e desejada, esqueci-me de fazer economias para um dia libertar-me. Atraída
pelos prazeres momentâneos e degradantes, esquecia-me de mim mesma e deu nisto,
uma dona de pensão para poder ter o que comer. Aconselho a vocês que não
se iludam com os dias de mocidade e com
os atrativos que as noites indormidas consomem sem a gente sentir.
E o desespero de querer um homem que
não nos quer e cai nos braços de outra à nossa vista. Há tanta miséria aqui
dentro que nem se pode avaliar. Para quem está lá fora, somos umas mulheres que
levam uma vida só de prazeres. Mulheres que desviam rapazes e maridos com o
maior cinismo e a maior depravação. Olha Benara, não há lugar no mundo onde se
sofra tanto. Quantas vezes temos que nos entregar a um salafrário qualquer, um
sujo e abjeto, só para que não falte um pedaço de pão. E ainda há daqueles que
não pagam os nossos encantos. É bom que te cuides enquanto é cedo e toma
cuidado para não engravidares. Não se tem nem o direito de ser mãe. Uma
rapariga grávida é uma pessoa condenada a todos os sofrimentos. Ninguém a quer,
não tem pra onde ir e nem como criar o filho. Deus que te livre e a todas as outras.
Benara ficara pensativa. Não era
possível que a D. Estefania estivesse adivinhado sua condição, para
empurrar-lhe em cima aquelas advertências. Sim, poderia não ser, e não
acreditava, com sua mocidade, que a coisa fosse tão negra. Em todo caso era bom
preparar-se, juntar algum dinheiro e esperar pelo mau tempo anunciado.
Os primeiros dias de Benara foram de
desapontamento. Por mais que se atirasse nas conquistas, não teve sorte. Os
freqüentadores do bordel já tinham suas companheiras e olhavam para ela sem
dar-lhe atenção. Se, pelo menos, fosse uma mulher bonita, teria melhores
oportunidades. No entanto não era e nem sabia aparentar sua sensualidade.
Aquela concorrência danada a afligia. O dinheiro que conseguia era uma coisa
intermitente, com muitas noites falhas. Vestia-se e pintava-se igualzinha às
companheiras, mas não sortia efeito. Sempre ficava para os últimos, quase
sempre aqueles que tinham pouca sorte e nem sempre os mais atraentes. Faltava-lhe
com certeza uma técnica especial de conquista. E o pior é que quem andava com
ela não voltava a procurá-la facilmente. Havia qualquer coisa de menos nela.
Queixou-se a D. Estefania e pediu-lhe conselhos.
- Há minha nega, isto é problema de
cada uma. Os homens gostam de alguma particularidade das mulheres. Precisam
usar certos artifícios, às vezes pequenas coisas, que a gente tem que
adivinhar.
Um cheiro qualquer esquisito, a maneira de atraí-los,
um nadinha, podem desencantá-los. É, por vezes, necessário até que a mulher se
faça de virgem, de envergonhada. A entrega comum cheia de lassidão desagrada.
Há uns que gostam de luz acesa, outros, apagadas. Até essas bobagens influem no
relacionamento. Tem-se que aparentar recato, ciúmes, pudor. O que é fácil
demais tira todo o prazer. Procura tu mesma descobrires o que está te faltando,
ou então abandona a vida livre. E lembra-te que tens muitas concorrentes
espertas e treinadas. E como isto aqui é uma luta de vida e de morte, não
contes com tuas amiguinhas...
Benara saiu desapontada. Aquilo era
uma vida sem regulamentos, sem regras determinadas. Cada uma que se fizesse.
Além de tudo, o filho estava lá dentro, crescendo e mais tarde revelaria o seu
grave problema. Aí então ninguém iria querer ficar com ela. E a comida e o
enxoval e as outras coisas necessárias na vida de uma mulher. Quem haveria de lhe
dar.
Não fizera economias. O que lhe
davam mal permitia a hospedaria e a
parte de D. Estefania, que, aliás, já havia lhe aberto os olhos para os casos
de gravidez. Sentiu-se completamente perdida. Quem diabo havia lhe atiçado o
fogo de moça para enfiar-se na prostituição. Havia sido empurrada por desejos
incontroláveis. Perdera-se por culpa do
próprio destino. Aquela ânsia de relacionamento não era comum nas outras moças.
E as coisas lhe estavam saído pelo avesso.
Supunha-se uma dominadora de homens
e ninguém a queria. Bem que a mãe lhe advertira centenas de vezes. E não ouvira
como se estivesse querendo trazê-la subjugada e infeliz. Agora estava
percebendo o seu erro. E o pior é que suas ansiedades cresciam. Se pudesse
devoraria de uma só vez todos os homens. Tinha um inferno dentro de si. E,
apesar disso, dormia muitas noites sem ter contato pelo menos com um, o que
aumentava seu desespero. Afinal de contas o filho começou a mostrar-se. Dona
Estefania percebera e chamou-a a parte.
- E agora, minha tonta, o que será
de ti e desse menino que vem por aí! Não tenho como te sustentar. Sempre me
deste pouco rendimento. Não vieste ao mundo para esta vida. Deves ser uma
dessas insossas, de fogo apagado. E agora, com esse buchão, adeus lucro. O que pensas fazer, então?
- Nada! Não sair daqui e esperar que
me ajudem.
- Como? Achas que vou transformar
minha pensão de mulheres numa maternidade. Não dá minha filha. Procura tua
família, conta-lhe o teu estado, as tuas desventuras e te aguenta por lá.
- Ora, D. Estefania, mamãe não quer
nem me ver. E a mataria de desgosto e vergonha. É uma mulher tão direita e tão
boa que nem quero pensar em
voltar. Cometi o maior erro deste mundo, mesmo sem saber o
que fazia. E como desejaria poder voltar, não ao meu passado, mas ao meu lar
para juntinho de minha mãe que tanto me pedia e me aconselhava. Era este corpo
miserável que me fazia endoidar e desobedecer.
Agora está aí, quase ninguém o quer nem eu mesma tenho mais aquele fogo maldito
que me queimava. E o que mais me preocupa é ter um filho que jamais saberá quem
é o pai. Um filho das ervas, como se costuma dizer.
- Creio que não haverá outra saída
para o teu caso, se não procurar tua família onde quer que esteja ou pelo menos
escrever à tua mãe que talvez te perdoe. Uma mãe sempre perdoa. E então mudarás
de vida, mesmo porque não tens atrativos para esta profissão. Tenho pena de ti.
Vai, escreve, dá o teu endereço e espera resposta. Terás uma grande alegria ou
uma grande desilusão.
- É desta que tenho medo.
- Tua mãe é tão pobre que não possa
te ajudar? Mesmo que não te queira, poderá te mandar amparo nesta emergência.
- É, irei tentar.
E semana depois, chegou à resposta
de D. Alvina.
“ Sim, foi um alivio saber que ainda
estás viva e que lembrastes tua casa. Não me dissestes de que estás vivendo. No
entanto presumo entender. E si é como penso, só contarás comigo, retornando a tua
casa e mudando tua vivência. São estes os meus conselhos. Terás o teu filho em
nossa companhia. Sempre me afligiu o pensamento de tua vida irregular e pouco
ou nada honesta. Espero-te a qualquer momento e com uma condição. Nunca me
falarás do teu passado. Prefiro não saber de tuas alegrias ou de teus
dissabores. Jamais me esqueci de ti, mas infelizmente nunca nos deste uma
notícia. Certamente as alegrias e os prazeres se foram e caístes na dura
realidade da vida. Neste mundo tudo é passageiro. Os impulsos da mocidade
conduzem quase sempre a grandes desenganos. Minha experiência de vida poderia
ter te ajudado de teus impulsos. Espero que entendas que poderei ainda ser tua
tábua de salvação. Venhas, pois, disposta a salvar-te. Sem essa condição talvez
seja melhor permaneceres onde estás.”
Benara correu para casa. Por
precaução deixou todos os objetos de sua vida de mulher livre, inclusive as
roupas atrativas. Teria que simular que era uma serviçal doméstica e que o
filho era fruto de seus próprios erros
iniciais.
Entrou em casa assustada e chorando
como uma criança que havia andado perdida. Não esperava que a mãe recebesse com
tanto carinho.
- Mãe, minha mãe, perdoe-me por haver
sido tão má e ingrata. Deixei-a só, sem pensar em ninguém. Nem em mim,
nem na senhora. Era uma louca varrida. Mas a própria vida ensinou-me a viver.
Faça de mim o que desejar. Já devo ter pago todos os meus pecados. Andei por
onde não deveria andar. Sofri o que não deveria sofrer.
Mas tudo isto me deixou uma boa
lição. Aprendi a viver dentro da realidade. Isto acontece quando não se confia
na experiência daqueles que já percorreram longos caminhos da vida. Os arroubos
da juventude são maus conselheiros.
Via tudo tão fácil e tão cor de rosa
que dei um mergulho no mar de minhas fantasias. Do outro lado encontrei-me com
o inesperado, um mundo diferente e cruel. E como estava desprevenida e despreparada
para enfrentá-lo, afoguei-me nas desilusões. O que me resta é este filho que
vai nascer e que infelizmente, não tem pai certo. E há de perguntar-me um dia
quem é. E terei que mentir para esconder os meus erros.
- Bem, o importante é que chegastes
de volta, com ou sem filho e reconheces que tens e sempre tivestes uma mãe.
Com menos de dois meses depois
nasceu Tecílda. Uma menina perfeita, de olhos esverdeados e um rosto bonito.
- Deus queira mãe que não herde
minha teimosia e burrice. Terei que lhe dar bons exemplos.
Foram-se os anos e Tecílda já era
uma mocinha. Um perigo de mulher. Inquieta. Quem a via uma vez, não a esquecia
facilmente. Benara vivia assustada. Ela tinha sido assim. E se fosse como ela
iria passar pelas mesmas angustias. No entanto e felizmente estava enganada com
Tecílda. Era voluntariosa, mas tinha a cabeça dominando o corpo. O que ela queria era se casar, ter o
seu lar e dois ou três filhos. Mas não seria casar com qualquer mequetrefe para
viver às suas custas e fazer dela uma criada. Cercada como vivia, pela sua
beleza física e desembaraço no relacionamento amistoso, tinha espírito de
decisão para não se deixar envolver como uma mocinha inexperiente e tola. Ou
aparecia o que ela queria, ou continuaria à espera, sem pressa, sem agonias
íntimas. Despachava-os com a maior tranqüilidade. Poderia ser até o seu tipo
desejado fisicamente, mas faltava o mais importante que era a conduta moral e a
capacidade para manter uma família com paz e o conforto relativo com que ela
sonhava. Não havia pressa em se tornar mulher. Conhecia através de amigos, a
historia da mãe, com as suas doidices e os seus sofrimentos. Poderia cometer um
erro, mas se acontecesse saberia livrar-se dele. O casamento duraria apenas até
quando lhe conviesse. Não que se tornasse exigente e impertinente, mas não
toleraria um homem que não fosse honesto e compreensivo.
Voltaria à sua casa da mesma forma
que saíra. De escolha em escolha, decidiu-se pelo Amâncio que lhe fazia o cerco
como se fosse ela única mulher de toda sua vida. Antes do casamento colocou os
pontos nos ís. Não adiantaria ter ilusões. Queria um bom companheiro e um lar
com filhos, mas, sem arrepios ou discordância. Não tolerava ciúmes e não daria
motivos. Que não confundisse relacionamento social com traição.
- Mas Tecílda, ciúme é sinal de
amor.
- Não! No meu entender é sinal de
desconfiança. Uma doença dos fracos. Se não tens certeza de minha sinceridade,
procura outra que não te cause ciúme. Não adiantará um casamento passageiro.
Depois de me tornar mulher, serei outra inteiramente outra.
- E já será difícil conseguir o
companheiro que desejo.
- Não, Tecílda, não é bem isto que
estás a pensar. Queria apenas te dizer que te amo demais e que o destino me
livre de te perder.
- Olha, não acredito em conversa de
namorado ou de noivo. Todos eles são quase uns santos. E quando se casam e
tomam conta da mulher, começam as exigências, as desconfianças, as proibições,
o autoritarismo, o que jamais aceitaria. E o pior de tudo são as mentiras.
Nunca dizem onde andam e sempre têm um trabalho especial ou urgente lá fora. Um
amigo que chegou ou vai chegar, um negócio importante a resolver. E a
mulherzinha fica em casa a esperar com o maior cuidado, desejando boa sorte.
Mas comigo essas conversas fiadas
não calham. Portanto, pondera bem no que pretendes fazer. Não é que deseje
prender-te em casa, mas é um aviso de que não conseguirá me enganar. Não serei
escrava de ninguém. A roupa será lavada de acordo com o sabão. Entendes onde
quero chegar? Espero que sim!
- Olhe Tecílda, também não esperes
que seja um marido subjugado, controlado como os botões de minhas calças ou os
colchetes de tuas saias. Sempre fui um sujeito honesto e tenho confiança em ti. Achas por ventura
que quem se casa com uma mulher igual a ti, ainda precisa fazer escamoteações.
Onde iria encontrar alguém que me fizesse te esquecer por um minuto. Do contrário,
terminemos aqui.
Nem quero mandar em ti e nem quero
ser manobrado. Tem que ser de igual para igual. Falas dos homens e te esqueces
que existem muitas mulheres simuladoras e manhosas; estou falando em tese, é
lógico, pois se não confiasse em ti, andaria longe em minhas pretensões. Parece
que somos iguais. No entanto, Tecílda, já imaginas-te um casal, sem uma briguinha
uma vez por outra. Não achas que fica muito insosso, não? Amanhecer e anoitecer
na mesma doçura. O bom mesmo é uma briguinha e depois fazer as pazes, num
reencontro. O amor exige essas coisas, senão perde a graça. Sem turras é a
mesma coisa que comer goiabada a vida toda. Pode enjoar. Pensa, pensa bem...
- Pelo que noto já tens experiência
disso. Abre teus olhos!
- Não te enganes. A própria comida
requer temperos diferentes. O mesmo tempero enjoa. E é por isto que a comida da
casa dos outros é sempre mais saborosa, mais gostosa. A gente deve mudar até de
lugar na mesa, criatura.
Sei que irei te adorar, vendo-te
zangada comigo, com a carinha amuada e com vontade de fazer as pazes,
olhando-me às escondidas, arranjando um pretexto qualquer para que te faça um
carinho.
- Já começas com as tuas
sem-vergonhices. A gente pode experimentar, mas se não der certo, não se
repete.
- Farei como quiseres, mas aposto como irás adorar. Ficar
correndo atrás um do outro e terminar naquele lugar...
Afinal, casaram-se. Tecílda não dava
tréguas ao marido que, por isto mesmo, já tardava em voltar para casa. Não
havia outro meio para um descanso, se não, dar uma brigada. No entanto, Tecílda
não lhe dava um motivo. Quando mais Amâncio a desafiava, mais carinho recebia.
Ficava feio confessar suas fraquezas. Inventou uma viagem, mas Tecílda à última
hora resolveu acompanha-lo.
- Mas mulher, será uma viagem
desconfortável, demorada. Deixar o conforto de casa para andar por aí, comendo
mal, fora de hora, dormir em camas duras. Vê bem, onde queres te enfiar.
- Ora, não me dissestes que o bom é
variar. Pois é o que quero.
- Então, não irei. Não quero te
sacrificar. Entendes?
- Entendo não. Não poderei passar
uma noite sequer, sozinha. Perco o sono, fico inquieta, só pensando, pensando.
E quando me atraso fico pior...
- Esta bem. Farás como quiseres.
- Irei não. Era só para ver tua
reação. Iniciar um comecinho de briga! Mas, antes de saíres, vamos à máquina de
costura para acabar a briga...
- Vai costurar sozinha. A agulha
quebrou-se.
- Já esperava por isto. Demores o
quanto quiseres, mas só me voltes com um papel de agulhas novas. E de agulhas
“Singer” legítimas. Agulhas de carregação destemperam logo.
- E se não encontrar?
- Não costuro mais. Interromper
costura por causa de agulha falsificada, de material fraco e mole, não dá...
Em 21.10.1986.
*O
conto pertence ao livro “ Vidas Nordestinas”, no prelo.