ALECRIM*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)
Alecrim chegou à pensão de dona Lulu,
quase uma menina. Moreninha de olhos esverdeados, rosto agradável e corpo
ondulado. Parecia uma criatura ingênua e despreparada para prostituição. Alecrim
não havia sido enganado por ninguém.
Entrara na vida espontaneamente, apenas
sob a influência da moleca Zuza já uma perdida que se encontrava com os
namorados livremente e lhe dizia que era a coisa melhor do mundo. Ela mesma
procurara quem quisesse sair com ela. Terminou saindo de casa dizendo à mãe que
iria cavar a vida. Apesar dos conselhos, pediu a benção e botou o pé no
caminho.
A mãe já sabia que era uma menina
perdida e talvez fosse melhor mesmo ir embora. Pelo menos não daria mal exemplo
a irmãzinha que gostava tanto dela. Choraram com a sua saída. Talvez nunca mais
a vissem. O destino lhes castiga. No entanto não havia mais o que fazer. E
resolveram as duas a mudar-se para onde não fossem conhecidas. Evitariam as
perguntas maledicentes:
- Cadê Alecrim?
- Fugiu com alguém. Era uma menina
tão boazinha. Juntaram os trates e desapareceram sem dizer nada.
Instalaram-se numa cidadezinha
distante e continuaram na lavagem de roupas para sobreviverem. Mas, aquilo era
tão pouco que mal chegava para enganar o estômago. E tomaram uma decisão. Empregaram-se
em casas de família, onde teriam alimentação e pousada, com algum dinheirinho
para guardar como economia e no futuro ter alguma segurança de vida.
E foi o que fizeram. De Alecrim nunca
mais tiveram notícias, mesmo por não saber onde andavam.
Alecrim instalou-se e tornou-se uma
das meninas mais procuradas. No entanto não se juntava com gente de baixa
categoria. Selecionava os seus parceiros e não havia cerco para sair com quem
não desejava. Era uma profissional com clientela selecionada.
A dona Lulu reclamava essa sua
atitude. Poderia perder a freguesia. Alecrim teria que aceitar quem a
procurasse!
- Nunca, dona Lulu. Neste caso vou
embora. Sou sua pensionista, mas, tenho minhas preferências e minha maneira de
viver. Não vou me emporcalhar com qualquer um. Além disso, não me tem faltado
homem, como bem vê. Só quero aquilo que meu corpo aceita sem repugnância. Sou
uma menina pobre, mas tenho certa classe. Se não me quer assim, até logo. O
mundo é grande, tem muito espaço.
Dona Lulu não disse mais nada. E se
ficou imaginando o que pensava aquela rapariguinha estranha. Enquanto as outras
pegavam qualquer um, ela se fazia de rogada, cheia de caprichos.
E Alecrim juntava dinheiro e já se
ia enfarando daquela espécie de vida humilhante.
O prazer que sentira no começo de
sua carreira, desaparecera. Considerava-se um depósito de lixo humano. Até
quando suportaria aquela vida de rameira, não sabia. Mas precisava de mais
dinheiro para se iniciar noutro ramo de vida, ir ao encontro da mãe e da irmã,
para dar-lhes algum conforto e viver com honestidade, num meio onde ninguém a
conhecesse.
Exigia o máximo dos seus amantes,
chegava mesmo a mentir sobre sua situação de quase miséria. O que recebia não
dava para comer e vestir e boa parte era para dona Lulu que sangrava o bolso de
suas pensionistas. Tostão, sobre tostão, ia amealhando.
Alecrim - dizia-lhe dona Lulu, -
precisa vestir melhor ficar com melhor aparência. Daqui a pouco ninguém vem
mais te procurar.
- Não se preocupe com minha
aparência. Minha atração é noutra coisa. Quem fica comigo, volta sempre. O que
estou a carecer é de um quarto mais atrativo, uma cama mais macia. O resto
deixa comigo. E quem será que está lhe dando melhor rendimento. Alias, a
senhora poderia exigir um pouco menos da gente...
- Como, se já estás a exigir um
quarto mais atraente e uma alimentação mais nutritiva. Vocês deveriam, aliás,
me dar mais um pouco.
- Credo! A senhora quer mais, sem
ter que passar pelo que a gente passa. Deitar-se com qualquer um, entregar-se,
ficar toda lambuzada, e receber uma ninharia, desses vagabundos que nos
procuram?
- Alecrim, quem é tua família, onde
mora, o que faz?
- Por ora não tenho família. Perdi-a,
quando resolvi me perder. Eu mesma me estraguei. Não culpo ninguém. Por favor,
não pergunte por minha família, a quem a humilhei e de que me separei para não
humilhá-la a cada dia que se passava. E nem tenho coragem de procura-la
enquanto permanecer nesta vida miserável. Mas, esperava liberta-me. Hoje sou
uma quase descrente. Não tenho um ceitil de economia e nem dar para fazer. A
senhora bem que poderia me ajudar.
- Que queres mais, Alecrim? Tem comida,
cama e amigos e o meu apoio. Quando se cai nesta vidinha, não se deve esperar
mais. Ora não te falta amor, o ideal de uma jovem. Ou já está farta disso
também. Assim não dá, menina. Vai te conformando...
- Conformando como, se não tenho dinheiro,
estou separada da família e o amor de que a senhora me fala não passa de uma
sujeira. A senhora já foi o que sou e sabe como é. Alem disso a gente vai
envelhecendo e com mais algum tempo cai no abandono. Quem tem sorte como à
senhora, abre uma pensão e vai viver das infelizes que caem na vida. Mas
quantas têm essa oportunidade. Onde irão cair, por exemplo, a Mani e a Bia, já
com aquele corpão gorduroso, enrugados e envelhecendo fora do tempo. Minha
sorte não será outra se não me cuidar cedo e livrar-me da voragem do tempo e
desta vida que levamos. As mulheres dos lupanares desgastam-se precocemente. Se
pelo menos tivessem quem nos desse um pouco de amor. Mas não somos mais do que
depósitos de lixo, das impurezas que fermentam nesses patifes, que a troco de
quase nada, nos levam para o matadouro e ainda obrigadas a fingir loucuras
amorosas, quando se tem repugnância, nojo e desenganos. O começo é apenas uma
espécie de lua de mel da prostituição. Depois o fogo se apaga, os desejos
desaparecem e passamos a ser como as cinzas frias daquilo que a gente era. Matam-me
as lembranças de minha mãe e de minha irmã. Antes só pensava nos prazeres da
carne como se a vida consistisse apenas nisso. E somente depois que tudo se
apaga é que se vê como são falsas e passageiras as ilusões. Cada homem que se encosta
a mim é como uma ferida que se abre no meu destino. Já me emporcalhei demais. Meu
corpo não suporta mais esses desejos humanos da concupiscência. É como se
escarrassem dentro de mim sem pena sem dó.
Diga-me, por favor, dona Lulu, como
poderei livrar-me antes que seja tarde demais?
- Ah! Minha filha. A gente vai
caindo, caindo nesse atoleiro e ninguém aparece para nos entender à mão. Onde
nos conhecem, ninguém nos quer fora do bordel onde nos entregamos a qualquer
porco. Queres te salvar, some, desaparece para onde seja uma estranha e procura
um emprego qualquer. Larga os homens como que foge de uma doença contagiosa. Do
contrário irás envelhecer e apodrecer igualmente a um fruto azedo e aguado que
cai e que somente os germes da terra o querem.
- Mas dona Lulu, aonde se chegar, a
primeira perguntar é para saber quem é a gente, e donde veio ou se traz alguma
recomendação. Ninguém confia na gente. E se advinham ou suspeitam que somos
mulheres da vida, então, fecham-se todas as portas. Entrar num lar é como
entrar a contaminação: - Deus nos livre. Tenho meu marido e meus filhos para
zelar. O que eu desejava mesmo era ir para minha mãe e minha irmã. Somente elas
poderão me compreender e me dar acolhida, apesar do que fiz e do que sou.
- Então vai!
- Mas não queria chegar lá sem nada
para lhes dar. O que tenho é tão pouco ainda.
- Então te aguenta, procura tomar um
pouco mais do que tem dado. Economiza e toma o teu destino.
Alecrim tomou o conselho e passou a
sacrificar-se mais. Recebia quem a procurasse. Já estava perdida e não escolheu
mais ninguém. Insinuava-se mesmo e teve uma surpresa. A gentalha lhe remunerava
melhor do que sua clientela escolhida. Tinha ainda que aguentar ainda quase um
ano servindo de lata de lixo.
Depois somou as suas economias,
arrumou os seus trastes, despediu-se de dona Lulu e das companheiras e deu no
pé. Mas teve sua grande decepção. Ninguém dava notícias da mãe e da irmã. Apenas
sabiam que se tinham ido. Como encontra-las. E começou sua peregrinação.
De povoado em povoado a procura da
lavadeira, até que parou em Riacho de Sal, desalentada. Não sabia mais aonde
ir. Ali não poderiam estar num lugarejo tão insignificante. Resolveu, então,
apelar para os vigários das paróquias. Desejava encontrar a mãe e a irmã. Que
ajudassem. E assim andou de lugar em lugar como uma pateta. Alguns padres
quiseram ficar com ela. Rejeitou. Queria era sua mãe. Já estava cansada de
homens. Habituava-se a não sentir mais os prazeres dos encontros.
E somente na quarta cidade, quando
o vigário anunciou seu nome á procura da mãe e da irmã, teve a ventura de
encontrá-las. Ambas assistiram à missa e tiveram vontade de gritar que estavam
ali e ao saber onde estava Alecrim.
Foram para pertinho do padre,
esperar que a missa terminasse, mas antes disso, lá no meio dos fiéis avistaram
Alecrim que, por sua vez, já as havia visto. Fechou os olhos para ver se era um
sonho ou realidade que procurava. Encontraram-se e a vida recomeçou para as
três.
Alecrim nada falou de sua vida
real. Simulou que sempre viveu em casas de família como empregada doméstica. Juntara
algum dinheiro para poder retornar. Narrou o drama para reencontrá-las. O pouco
dinheiro que lograra economizar, quase tudo quanto ganhará, entregou-o a mãe
para que ela aplicasse e pudesse ter uma vida melhor.
Ela e a mana sustentariam os empregos.
Ela própria substituiria à mãe e até que se tornassem independentes.
No inicio, nem tinham noção do que
fazer, mas com algumas semanas dona Zefinha teve uma idéia: vender miudezas,
aquilo que as mulheres sempre necessitam em casa. E arrumou o seu pequeno bazar. Na rua onde
moravam não havia nada do seu ramo. E logo colocou uma tabuleta declarando que
não poderia vender fiado.
E com o passar do tempo o pequeno
negócio começou a prosperar. E então, o sortimento foi aumentando e depois de
um ano, as três não necessitavam mais de empregos. Quem passasse e andasse por
ali anos depois, poderia ler no frontão da casa, o letreiro: Casa das Miudezas.
E como era de prever, a filha rosedá, casara-se bem, com um merceeiro e as duas
ficaram na santa paz do senhor.
Alecrim não se separaria da mãe e
nem pensava em
casamento. Estava farta de homens e até quando a conheci. Conservava-se
retraída e de fogo apagado, como se não pudesse esquecer que havia sido por
muito tempo uma lata de lixo das impurezas humanas. Procurou cuspir fora restos
das lembranças.
Julho,
12 de 1986.
*O
conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.