João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/4/2003)
Carrapeta era filho de mãe solteira
que não o desprezara e queria-lhe tanto bem como qualquer mãe extremosa. Era
ele só e ela, morando numa casinha de taipa à beira da estrada à saída do
povoado.
Maria Rosa vivia exclusivamente de
sua máquina de costura e não lhe faltava trabalho. Costurava roupa de homem e
de mulher, caprichosamente. Principalmente nos períodos de festas tinha que se
desdobrar, entrando pela noite e acordando com as madrugadas para atender a
freguesia.
Carrapeta não lhe dava trabalho. Brincalhão
e esperto achava sempre entretenimento que não perturbasse Maria Rosa. Era tão
boa e tão doce com ele que nem tinha coragem de interrompê-la. Quando queria
qualquer coisa, ficava ali por perto, rondando como se quisesse falar.
- O que é Carrapeta. Fala logo.
- Mãe, posso pegar uma bolacha ou
pedaço de pão, mãe?
- Pode sim, menino. Não precisas me
pedir. Tira quando quiseres, mas não para estragar.
E Carrapeta ia direto ao armário, e
saia mostrando de longe a Maria
Rosa, o que levava. A mãe achava naquela obediência e sentia-se maravilhada, com o filho que tinha. E enquanto ia cortando, alinhando e costurando, pensava em outras mães que não tinham sorte de ter um filho tão bonito igual à Carrapeta.
Rosa, o que levava. A mãe achava naquela obediência e sentia-se maravilhada, com o filho que tinha. E enquanto ia cortando, alinhando e costurando, pensava em outras mães que não tinham sorte de ter um filho tão bonito igual à Carrapeta.
E lá fora, à frente da casa, Carrapeta reunia
os seus poucos brinquedos e se esquecia do mundo, nas inocentes brincadeiras.
Adorava o caminhãozinho de madeira,
que puxava pra lá e pra cá, carregado de areia, ou de pedras miúdas. Quando
algum companheiro chagava, parava de transportar, encostava o caminhão e mudava
de brincadeira. Ninguém pegava naquela sua maior riqueza de menino pobre.
Foi crescendo, crescendo e começou a
pensar em ganhar dinheiro. Poderia muito bem fabricar caminhões iguais ao seu
para vender aos outros meninos. Sabia que ambicionavam ter também um veículo
para fazer à mesma coisa. Mas não dispunha das ferramentas. Um serrote pequeno,
um martelinho e um canivete Corneta. Material arranjaria. Pedaços de taboas,
caixões, latas e pregos. Falou com Maria Rosa. A mãe aprovou. - Era bom que
fosse aprender a fazer as coisas e a ganhar uns trocados.
Mas cedo do que esperava, lá estava
com suas ferramentas que só faltou mesmo beija-las. E caiu em campo em busca de
material. Foi logo a mercearia de seu Juca da venda e depois de explicar-se, perguntou
se poderia lhe dar caixões que vinham com mercadorias.
- Vai, Carrapeta, vai ali ao quintal
e escolha lá. Leva o que precisares. Carrapeta enfiou-se de corredor adentro e
teve uma surpresa. Era um monte de caixão de sabão, de velas e outros artigos.
E o melhor é que tinha os pregos que necessitava. E ainda mais, ao lado, aspas de
barris para os molejos e outros arranjos.
Agradeceu e ia saindo quando seu
Juca chamou-o para dizer-lhe que podia vir buscar tantas vezes necessitasse.
Carrapeta instalou-se no quintal, fechado de varas. Ninguém deveria ver sua
fabrica. Um caixão servia de bancada. O serrote novo não serrava. Levou-o a
casa do Manoel Ferreiro para amolá-lo.
- Não é só amolar não, menino tem
que travar. Mas deixa que faço.
Carrapeta não sabia o que diabo era
travar e ficou pasmado de ver como era. No começo teve um susto danado. Tinha
impressão que o ferreiro estava quebrando os dentes de seu precioso serrote.
Quase gritava e pedia que não fizesse aquilo, pois não poderia comprar outro.
- Apanha ali aquele toro de madeira,
Carrapeta. Toma e experimenta teu serrote. Se não serrar, nada mais poderei
fazer. E o serrote entrou toro adentro como um raio.
- Que beleza, mestre. Quando vi o
senhor entortar os dentes, pensei que estava desgraçando meu serrotinho. Quanto
é?
- Nada, seu tolo. Vai fazer tuas
carruagens.
No final da semana Carrapeta estava
com a sua primeira obra prima prontinha. Iria pegar no primeiro dinheiro de sua
arte. O carrinho tinha até faróis, duas tampas metálicas de guaraná. Mostrou-o
a mãe, com a alegria de quem tinha o seu primeiro filho:
- Bonito, não é?
- Ora, uma belezinha. Já sabia que irias
fazer uma joia.
- E agora; Vou vender e fabricar
outros. Mas por quanto, mãe?
- Cinco mil reis, mais ou menos.
Vale até mais. Aquele que te dei custou quatro. Pede mais um pouco, mas antes
espere que os meninos vejam. Daí saia às encomendas.
Ora,
não demorou e as cinco pratas estavam no bolso. Deu-os a mãe para guardar,
comprar as coisas, se precisasse. E Carrapeta tocou o serrote pra frente.
Serrou madeira para três carros. Só depois começaria a montagem. Já adquirira
prática. E Carrapeta não parou mais e passou a fabricar automóvel também e
outros tipos de brinquedos, inclusive “Mané Gostoso” que dava pulos do demo e
carrinhos de duas rodas de varinha para menino empurrar. Fabricava tudo quanto
via. Adquiria mais ferramentas apropriadas, inclusive serra de decupagem. Era o
menino mais rico do povoado.
A notícia corria da engenhosidade de
Carrapeta. E foi daí que a sorte lhe bateu a porta. Os carinhos já envernizados
e atraentes despertavam a atenção de quem ia a Marmeleiro. E um belo dia chegou
ao povoado o doutor Salvino, médico da Saúde Pública da capital. Viu os
brinquedos do Carrapeta e foi falar com a mãe dele.
- Olhe dona, seu filho é um artista.
Quero levá-lo para a escola de artífices da capital para se aperfeiçoar. Tomo
conta dele. Não terá que se preocupar. Virá passar as férias aqui. Virei
trazê-lo.
E lá se foi Carrapeta, com saudade
da mãe, mas ia ter sua oportunidade de aprender mais e mais. E lá se foram três
anos de aprendizagem.
Dr. Salvino trouxe de volta
Carrapeta com uma proposta do diretor da escola, Carrapeta poderia continuar na
escola como monitor, auxiliar no artesanato.
No entanto Carrapeta preferiu ficar em
Marmeleiro e instalar sua pequena indústria de brinquedos. Não somente por
apego a terra, mas, sobretudo para permanecer perto de sua mãe, que não desejava
sair em hipótese alguma. Tinha suas amizades, sua boa freguesia e o clima lhe
conservavam saudável.
Carrapeta agradeceu e começou a
planejar sua tenda de trabalho. Agora sim, poderia ter auxiliares, treinar
meninos, vender seus brinquedos para outras cidades, em grosso. Não tinha ambição.
O que lhe empolgava era contribuir para alegria da criançada, ganhando o
bastante para viver. Com algum conforto. E não errou nos prognósticos. Os
negócios prosperavam. Comprou uma máquina de costura elétrica e deu-a de presente
a mamãe.
Já ninguém, depois de algum tempo, o
chamava de Carrapeta. Simplesmente era mestre Carrapeta. Inventava novos tipos
de brinquedos e sempre tinha novidades para a meninada. Brinquedos
envernizados, pintados e coloridos. Os auxiliares faziam tudo. O mestre apenas
planejava e comercializava.
Era uma terça-feira. Carrapeta
levantou-se com o raiar do sol. Tomou o seu café com bolacha seca e pão doce.
Parecia imaginar qualquer coisa importante. Ao acordar à noite percebera que
sua mãezinha costurava até muito tarde. Sentia que ela estava se sentindo
cansada. A expressão dos olhos denunciava isso. Quase sempre parecia estar
vendo as coisas bem distantes, para lá do horizonte. E então, chamou:
- Mãe, ou mãe?
- Estou aqui filho.
E Carrapeta foi se chegando, sutil
com quem quer apanhar uma borboleta de asas azuis.
- A senhora trabalhou até tarde da
noite, mãe! Eu vi.
- Medo, meu filho, que nos falte
alguma coisa.
- Pois é mãe, daqui por diante, as
despesas da casa ficam exclusivamente comigo. Fecha a máquina e costure apenas
nossas roupas. Já tenho rendimentos para o custeio e, além disso, a obrigação
já é minha. Completei dezoito anos. Quando estiver com saudade do ruído da
máquina, que nos deu tanto, em suas mãos, sente-se nela e pedale costurando
qualquer coisa para seu uso. E na mesinha da máquina, ao lado dela, coloque a
santinha de sua devoção e uma florzinha do pé de bugarí...
Até agora a nossa vida foi com a senhora,
de hoje pra sempre será aqui com o mestre Carrapeta. Não quero vê-la olhando
distante e nem pedalando para vivermos. Quero vê-la sim sorrindo e cantando,
como eu, que tenho a mãe mais bela, mais santa e melhor deste mundo. Estas me
ouvindo dona Maria Rosa!
- Cuida em te casar Carrapeta!...
- Não, mãe. Não dá! Tenho ciúme de
mulher bonita e medo de mulher feia...
*O
conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.