BESOURO*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)
Antonio
Besouro andava de léu em léu com sua maletazinha, vendendo bugigangas. Agulhas,
linhas, cadarços, rendas, botões e muitas coisinhas mais que as donas de casa
sempre procuram. Sozinho na vida juntava tostão por tostão, pensando no futuro.
Gastar o menos possível era o seu lema. Planejava suas andanças de forma que
sempre coincidisse parar em alguma casa nas horas de almoço e de jantar, onde
pernoitava. Fazia questão de não aparecer com muita freqüência na mesma casa
com a finalidade de filar a comida. Tinha que guardar um bom espaço de tempo
para aparentar que não era useiro e vezeiro. Ia a uma casa e a outra, mas a
casa do almoço, do jantar ou da dormida já esta escalonada. Mesmo que
insistissem, só aceitava no tempo já determinado. E assim vivia Besouro sem demonstrar
que era um aproveitador. Onde tinha que se aboletar, levava sempre um
presentinho para as meninas ou para a dona da casa. Um espelhinho, um apito,
uns metros de renda. E com esse sistema de vida e de negócios, tornara-se estimado
por onde andava.
- Ora, desta
vez, o senhor demorou. Nossa casa está à sua disposição. Apareça com mais
freqüência. Sempre se tem qualquer coisa a comprar e o senhor que viaja tanto
sempre tem novidades a nos contar.
Besouro,
esperto como era, tipo cara lisa, não se fazia de rogado. Dia a dia
aperfeiçoava os seus métodos de vida e aumentava o sortimento de mercadorias
caseiras. Mandou fazer um bauzinho maior com um fundo falso para guardar as
notas que ia trocando. Era o seu mealheiro. Naquele tempo as maiores notas eram
de quinhentos mil reis. No bolso somente o dinheiro para trocar e no fundo da
mala as notas de cem, duzentos e quinhentos.
Um dia estaria
cansado de viajar e abriria casa de comércio. Para isto ia desde logo estudando
o melhor local. E já não havia dúvidas, seria na Encruzilhada dos Angicos.
Local bastante povoado e passagem obrigatória de quem ia e vinha.
Ali teria que
dar certo. Abriria um bazar, venderia de tudo, conforme a procura. Em conversa
com as pessoas que encontrava, Besouro não se cansava de lamentar-se: Havia de
largar a mascateação que não lhe rendia para comer e gastar com alpercatas. O
estômago engolia uma parte e a terra comia o resto. Profissão de quem não podia
fazer outra coisa. Os gringos ganhavam dinheiro porque vendiam mercadorias
falsificadas, ordinárias, por preços de exploração. E como eram estrangeiros
com nome arrevesados, todos acreditavam e confiavam. Ele, não, com um nome
safado – Besouro – não tinha vez, Além disso, já estava amassado de carregar o
bauzinho nas costas acima e abaixo. Se tivessem botado nele o nome de Abdala,
seria outra coisa. Mas seja lá o que Deus quiser. Era melhor se conformar, com
o seu destino. E sua sorte é que aonde chegava lhe davam abrigo e comida.
Senão, ai meu Deus, estaria no osso.
- Mude o nome
seu Besouro e mude de região. Compre barato e venda caro. O povo gosta é de ser
explorado. Foi o conselho que lhe dera um outro mascate a quem se lamentava.
Mas o Besouro adivinhava sua intenção que era deixar-lhe a área livre. E concordou
que iria pensar no assunto. Em todo caso não era má idéia. Usar um nome de
turco. Mas como iria usar um nome de turco com aquela cara de nordestino de
cabeça chata. Não poderia pegar.
A coisa seria
mesmo executar o seu projeto. Construir um salão, com um quarto e uma cozinha e
meter-se dentro com suas mercadorias e esperar a freguesia. Colocaria uma
tabuleta. Mas, como seria o nome da casa. Embaraçou-se. Havia de ser um nome
atrativo. Precisava matutar muito pra não fazer bobagem. Dias depois o nome veio
mesmo a calhar. “Casa do Papagaio”. Mas que diabo, nem tinha papagaio nem
vendia papagaio. Mas depois refletiu que a coisa não era vender papagaio. Era
chamar atenção. E todo mundo decoraria facilmente. Papagaio. Além disso, era
original. Casa do Papagaio, sem papagaio. Achava que estava malucando. O que
lhe custava arranjar um papagaio falador. Já conhecia vários por onde andava. E
era uma homenagem aos “louros”.
Meses depois
estava instalado na “Encruzilhada”, de portas abertas e mercadorias nas prateleiras
e também pelo chão. Não esquecera uma seção de farmácia popular. Remédios para
dor de cabeça, dor de dente, saúde da mulher, purgativos. Pó e perfumes
baratos, vaselinas e iodo. Elixir paregórico e basilicão.
O povo das
redondezas já havia acompanhado a construção da casinha e sabia a que se
destinava. Uma “vendazinha” ali evitaria viajar mais de uma boa légua para
comprar uma agulha ou um comprimido de Melhoral.
- Vai, menino
ali na Encruzilhada e me compre um papel de agulha ou carretel de linha, um
meio metro de fita azul para botar em Santo Antonio.
E a freguesia
chegava, mas só se falava na Encruzilhada. Nada de Casa do Papagaio.
- Olha minha
gente, não é Encruzilhada. É Casa do Papagaio. Ali está a tabuleta. Aquilo
custou dinheiro!
E então a coisa
mudou – “Vai à casa da Encruzilhada e me compra a seu Papagaio”, um novelo de
linha.
Com pouco
tempo ninguém o conhecia mais por Antonio Besouro. Era simplesmente seu
Papagaio.
Besouro virou
papagaio e a coisa pegou mesmo.
- Mas minha
gente, já expliquei que meu nome é Besouro e não Papagaio. Papagaio é o nome da
casa comercial.
- É a mesma
coisa. Besouro ou Papagaio. Tudo é bicho.
- Veja bem,
dona, eu sou besouro gente. De bicho é apenas o nome.
- Bom dia seu
Papagaio.
- Papagaio
não. Besouro. Antonio Besouro.
- Desculpe,
mas está ali na placa – Casa do Papagaio. Por que não botou Casa do Besouro. É
bicho também, mas pelo menos é o seu sobrenome.
E a placa foi
mudada, com a sugestão da freguesa. “Casa do Besouro”.
- Boa tarde
seu Papagaio.
- Não reparou
a placa, mocinha?
- Ah! Que
pena. Papagaio era mais interessante. Pelo menos é um bicho que fala. E besouro
só faz chiar. E que fim deu ao papagaio?
- Tirei da
placa. Mas já vi que fiz bobagem. Vou renovar a placa.
E no outro
dia lá estava “Casa Papagaio do Besouro”.
- Mas como é?
O senhor é papagaio ou é mesmo besouro. Está uma confusão danada!
- Afinal o que
é que a menina deseja?
- Mamãe
mandou saber se tem papagaio para vender.
- Papagaio só
tem na placa.
- Pois ela
quer comprar um. Mandou saber do preço.
- Papagaio é
a loja. Se ela quiser comprar eu vendo hoje mesmo.
- Quer não.
Papai vai abrir uma bodega lá em casa. Já encomendou as prateleiras. E está
fazendo um viveiro para criar papagaio. Ele é carpinteiro também.
- O que! E
por que não abriu antes de mim.
- E já tem
nome, a bodega?
- Vai botar
nome não. Falou não. E se botar não será nome de bicho. Disse que da má sorte.
E porque o senhor não mudar esse nome para “Papagaio Louro do Bico Dourado”?
Até logo.
Menina
danada. Acertou com o nome certo. E no dia seguinte lá estava a nova placa.
A primeira
pessoa que apareceu foi um menino espritado. Comprou meio quilo de bolachão.
Pagou. E foi logo pedindo a seu Besouro. – “O senhor que me mostrar o papagaio
do bico dourado”?
- Está no
fiofó de sua mãe, cabritinho safado.
- Na sua, seu
féla. Vou dizer a meu pai e ele vem quebrar-lhe as fuças.
- Toma lá,
este pinhão e acaba com isto. Não se pode nem brincar.
- Quero dois.
Um para o meu irmão.
- Quem brinca
com menino da nisto mesmo. Toma lá.
- E um espelhinho
pra minha irmã. Papai já matou gente. É um cobra. Não vai mandar nada pra ele?
- De que é
que ele mais gosta?
- O cinturão
dele já está meio surrado.
- Então pega
lá
- E tua mãe
não precisa de alguma coisa?
- Precisa
sim, mas papai é quem dá. Quem sabe se manda ou não, é o senhor. Papai se dana
se descobri. E lá vai outro defunto. Mas vou perguntar a ele se concorda. Se
concordar venho buscar...
- Estás
ficando doido. Nem pensar nisto, menino levado. Toma mais este pente. E cala
essa boca.
- Até logo. Mas
acho que papai vai me apertar para eu descobrir porque me deram esses
presentes. E papai é fogo. Obriga a gente a dizer tudo.
E fez
carreira, deixando seu Besouro embasbacado, vendo a hora o homem aparecer para
uma explicação. Mas o Januário na verdade não era de nada. Incapaz de matar um
grilo. Quem mandava em casa era a mulher.
- Mirim
contou tudo à mãe à medida que ia entregando os presentes.
- Espere, e
aquele sumítico não mandou nada pra mim?
- Tome esse
espelhinho. Para ganhar essas coisas disse que papai era uma onça e já havia
matado gente.
- Que
doidice!... Só se for teu pai...
- Seu
papagaio ficou apavorado. Vai ficar me dando as coisas.
- Não se faz
isto, menino. Coitado de teu pai. Um inocente daquele.
Besouro
findou mudando novamente o nome da casa de comercio - “Casa Relâmpago”. Queria
ver se ainda havia de aparecer confusão.
O Mirim
apareceu lá novamente.
- Como vai
teu pai. Percebeu alguma coisa. O que lhe dissestes. Olha que não quero
complicação. Sê bonzinho.
- Por ora,
nada. Não desconfiou. Mas está se vendo a hora descobrir. É perigoso e quando
está na veneta pega tudo no ar.
- Esconde
aquelas drogas. Quero viver na Santa Paz do Senhor.
- Iiiiiii!
Mudou o nome da casa. Casa relâmpago. Deus nos acuda. Vou embora. Tenho pavor
de relâmpago. E quando souberem ninguém vai botar os pés aqui! E logo casa sem
para raio.
O senhor vai
vender relâmpagos? Onde fabricam? Pensei que era São Pedro que fabricava pra
fazer medo ao povo.
- Que nada,
seu tolo. É só o nome da casa.
E era tempo
das primeiras chuvas e o céu estava escuro. Desabou uma trovoada naquela hora
quente da tarde, que parecia um bombardeio. Besouro trancou as porta e armou-se
lá dentro com o Mirim.
- Está vendo
aí sua brincadeira. Vá retirar aquela placa, antes que caia um raio bem em cima
da gente e acabe com suas prateleiras.
- Fala baixo,
Mirim, que a coisa é séria.
- E antes que
o povo veja. Quando souberem que o senhor foi culpado dessa tempestade, ninguém
põe mais os pés aqui.
- Não vou
mais pela cabeça de ninguém. Neste momento deu um trovão que balançou as
prateleiras. Foi o último. A chuva passou. Mas ainda nos últimos pingos já o
Besouro havia quebrado a placa em mil pedaços.
- Não lhe
disse. Mude o nome. Ponha – “Casa da Cruz” e mande benze-la. Será uma proteção.
- Sabes de
uma coisa Mirim, quero falar com teu pai, vamos lá.
- Agora
mesmo. Mas vá com jeito. O homem tem cara de manso, mas quando se espanta é um
Deus nos acuda.
E dentro de
duas horas Besouro tinha vendido a “Bodega”. O seu destino era mesmo o baú de
miudezas, andando de porta em porta, comendo o pirão da freguesia e juntando
dinheiro.
A Encruzilhada
botou-lhe sal na moleira. E se foi.
*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.