sexta-feira, 26 de julho de 2013



BESOURO*

João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

Antonio Besouro andava de léu em léu com sua maletazinha, vendendo bugigangas. Agulhas, linhas, cadarços, rendas, botões e muitas coisinhas mais que as donas de casa sempre procuram. Sozinho na vida juntava tostão por tostão, pensando no futuro. Gastar o menos possível era o seu lema. Planejava suas andanças de forma que sempre coincidisse parar em alguma casa nas horas de almoço e de jantar, onde pernoitava. Fazia questão de não aparecer com muita freqüência na mesma casa com a finalidade de filar a comida. Tinha que guardar um bom espaço de tempo para aparentar que não era useiro e vezeiro. Ia a uma casa e a outra, mas a casa do almoço, do jantar ou da dormida já esta escalonada. Mesmo que insistissem, só aceitava no tempo já determinado. E assim vivia Besouro sem demonstrar que era um aproveitador. Onde tinha que se aboletar, levava sempre um presentinho para as meninas ou para a dona da casa. Um espelhinho, um apito, uns metros de renda. E com esse sistema de vida e de negócios, tornara-se estimado por onde andava.
- Ora, desta vez, o senhor demorou. Nossa casa está à sua disposição. Apareça com mais freqüência. Sempre se tem qualquer coisa a comprar e o senhor que viaja tanto sempre tem novidades a nos contar.
Besouro, esperto como era, tipo cara lisa, não se fazia de rogado. Dia a dia aperfeiçoava os seus métodos de vida e aumentava o sortimento de mercadorias caseiras. Mandou fazer um bauzinho maior com um fundo falso para guardar as notas que ia trocando. Era o seu mealheiro. Naquele tempo as maiores notas eram de quinhentos mil reis. No bolso somente o dinheiro para trocar e no fundo da mala as notas de cem, duzentos e quinhentos.
            Um dia estaria cansado de viajar e abriria casa de comércio. Para isto ia desde logo estudando o melhor local. E já não havia dúvidas, seria na Encruzilhada dos Angicos. Local bastante povoado e passagem obrigatória de quem ia e vinha.
Ali teria que dar certo. Abriria um bazar, venderia de tudo, conforme a procura. Em conversa com as pessoas que encontrava, Besouro não se cansava de lamentar-se: Havia de largar a mascateação que não lhe rendia para comer e gastar com alpercatas. O estômago engolia uma parte e a terra comia o resto. Profissão de quem não podia fazer outra coisa. Os gringos ganhavam dinheiro porque vendiam mercadorias falsificadas, ordinárias, por preços de exploração. E como eram estrangeiros com nome arrevesados, todos acreditavam e confiavam. Ele, não, com um nome safado – Besouro – não tinha vez, Além disso, já estava amassado de carregar o bauzinho nas costas acima e abaixo. Se tivessem botado nele o nome de Abdala, seria outra coisa. Mas seja lá o que Deus quiser. Era melhor se conformar, com o seu destino. E sua sorte é que aonde chegava lhe davam abrigo e comida. Senão, ai meu Deus, estaria no osso.
- Mude o nome seu Besouro e mude de região. Compre barato e venda caro. O povo gosta é de ser explorado. Foi o conselho que lhe dera um outro mascate a quem se lamentava. Mas o Besouro adivinhava sua intenção que era deixar-lhe a área livre. E concordou que iria pensar no assunto. Em todo caso não era má idéia. Usar um nome de turco. Mas como iria usar um nome de turco com aquela cara de nordestino de cabeça chata. Não poderia pegar.
A coisa seria mesmo executar o seu projeto. Construir um salão, com um quarto e uma cozinha e meter-se dentro com suas mercadorias e esperar a freguesia. Colocaria uma tabuleta. Mas, como seria o nome da casa. Embaraçou-se. Havia de ser um nome atrativo. Precisava matutar muito pra não fazer bobagem. Dias depois o nome veio mesmo a calhar. “Casa do Papagaio”. Mas que diabo, nem tinha papagaio nem vendia papagaio. Mas depois refletiu que a coisa não era vender papagaio. Era chamar atenção. E todo mundo decoraria facilmente. Papagaio. Além disso, era original. Casa do Papagaio, sem papagaio. Achava que estava malucando. O que lhe custava arranjar um papagaio falador. Já conhecia vários por onde andava. E era uma homenagem aos “louros”.
Meses depois estava instalado na “Encruzilhada”, de portas abertas e mercadorias nas prateleiras e também pelo chão. Não esquecera uma seção de farmácia popular. Remédios para dor de cabeça, dor de dente, saúde da mulher, purgativos. Pó e perfumes baratos, vaselinas e iodo. Elixir paregórico e basilicão.
O povo das redondezas já havia acompanhado a construção da casinha e sabia a que se destinava. Uma “vendazinha” ali evitaria viajar mais de uma boa légua para comprar uma agulha ou um comprimido de Melhoral.
- Vai, menino ali na Encruzilhada e me compre um papel de agulha ou carretel de linha, um meio metro de fita azul para botar em Santo Antonio.
E a freguesia chegava, mas só se falava na Encruzilhada. Nada de Casa do Papagaio.
- Olha minha gente, não é Encruzilhada. É Casa do Papagaio. Ali está a tabuleta. Aquilo custou dinheiro!
E então a coisa mudou – “Vai à casa da Encruzilhada e me compra a seu Papagaio”, um novelo de linha.
Com pouco tempo ninguém o conhecia mais por Antonio Besouro. Era simplesmente seu Papagaio.
Besouro virou papagaio e a coisa pegou mesmo.
- Mas minha gente, já expliquei que meu nome é Besouro e não Papagaio. Papagaio é o nome da casa comercial.
- É a mesma coisa. Besouro ou Papagaio. Tudo é bicho.
- Veja bem, dona, eu sou besouro gente. De bicho é apenas o nome.
- Bom dia seu Papagaio.
- Papagaio não. Besouro. Antonio Besouro.
- Desculpe, mas está ali na placa – Casa do Papagaio. Por que não botou Casa do Besouro. É bicho também, mas pelo menos é o seu sobrenome.
E a placa foi mudada, com a sugestão da freguesa. “Casa do Besouro”.
- Boa tarde seu Papagaio.
- Não reparou a placa, mocinha?
- Ah! Que pena. Papagaio era mais interessante. Pelo menos é um bicho que fala. E besouro só faz chiar. E que fim deu ao papagaio?
- Tirei da placa. Mas já vi que fiz bobagem. Vou renovar a placa.
E no outro dia lá estava “Casa Papagaio do Besouro”.
- Mas como é? O senhor é papagaio ou é mesmo besouro. Está uma confusão danada!
- Afinal o que é que a menina deseja?
- Mamãe mandou saber se tem papagaio para vender.
- Papagaio só tem na placa.
- Pois ela quer comprar um. Mandou saber do preço.
- Papagaio é a loja. Se ela quiser comprar eu vendo hoje mesmo.
- Quer não. Papai vai abrir uma bodega lá em casa. Já encomendou as prateleiras. E está fazendo um viveiro para criar papagaio. Ele é carpinteiro também.
- O que! E por que não abriu antes de mim.
- E já tem nome, a bodega?
- Vai botar nome não. Falou não. E se botar não será nome de bicho. Disse que da má sorte. E porque o senhor não mudar esse nome para “Papagaio Louro do Bico Dourado”? Até logo.
Menina danada. Acertou com o nome certo. E no dia seguinte lá estava a nova placa.
A primeira pessoa que apareceu foi um menino espritado. Comprou meio quilo de bolachão. Pagou. E foi logo pedindo a seu Besouro. – “O senhor que me mostrar o papagaio do bico dourado”?
- Está no fiofó de sua mãe, cabritinho safado.
- Na sua, seu féla. Vou dizer a meu pai e ele vem quebrar-lhe as fuças.
- Toma lá, este pinhão e acaba com isto. Não se pode nem brincar.
- Quero dois. Um para o meu irmão.
- Quem brinca com menino da nisto mesmo. Toma lá.
- E um espelhinho pra minha irmã. Papai já matou gente. É um cobra. Não vai mandar nada pra ele?
- De que é que ele mais gosta?
- O cinturão dele já está meio surrado.
- Então pega lá
- E tua mãe não precisa de alguma coisa?
- Precisa sim, mas papai é quem dá. Quem sabe se manda ou não, é o senhor. Papai se dana se descobri. E lá vai outro defunto. Mas vou perguntar a ele se concorda. Se concordar venho buscar...
- Estás ficando doido. Nem pensar nisto, menino levado. Toma mais este pente. E cala essa boca.
- Até logo. Mas acho que papai vai me apertar para eu descobrir porque me deram esses presentes. E papai é fogo. Obriga a gente a dizer tudo.
E fez carreira, deixando seu Besouro embasbacado, vendo a hora o homem aparecer para uma explicação. Mas o Januário na verdade não era de nada. Incapaz de matar um grilo. Quem mandava em casa era a mulher.
- Mirim contou tudo à mãe à medida que ia entregando os presentes.
- Espere, e aquele sumítico não mandou nada pra mim?
- Tome esse espelhinho. Para ganhar essas coisas disse que papai era uma onça e já havia matado gente.
- Que doidice!... Só se for teu pai...
- Seu papagaio ficou apavorado. Vai ficar me dando as coisas.
- Não se faz isto, menino. Coitado de teu pai. Um inocente daquele.
Besouro findou mudando novamente o nome da casa de comercio - “Casa Relâmpago”. Queria ver se ainda havia de aparecer confusão.
O Mirim apareceu lá novamente.
- Como vai teu pai. Percebeu alguma coisa. O que lhe dissestes. Olha que não quero complicação. Sê bonzinho.
- Por ora, nada. Não desconfiou. Mas está se vendo a hora descobrir. É perigoso e quando está na veneta pega tudo no ar.
- Esconde aquelas drogas. Quero viver na Santa Paz do Senhor.
- Iiiiiii! Mudou o nome da casa. Casa relâmpago. Deus nos acuda. Vou embora. Tenho pavor de relâmpago. E quando souberem ninguém vai botar os pés aqui! E logo casa sem para raio.
O senhor vai vender relâmpagos? Onde fabricam? Pensei que era São Pedro que fabricava pra fazer medo ao povo.
- Que nada, seu tolo. É só o nome da casa.
E era tempo das primeiras chuvas e o céu estava escuro. Desabou uma trovoada naquela hora quente da tarde, que parecia um bombardeio. Besouro trancou as porta e armou-se lá dentro com o Mirim.
- Está vendo aí sua brincadeira. Vá retirar aquela placa, antes que caia um raio bem em cima da gente e acabe com suas prateleiras.
- Fala baixo, Mirim, que a coisa é séria.
- E antes que o povo veja. Quando souberem que o senhor foi culpado dessa tempestade, ninguém põe mais os pés aqui.
- Não vou mais pela cabeça de ninguém. Neste momento deu um trovão que balançou as prateleiras. Foi o último. A chuva passou. Mas ainda nos últimos pingos já o Besouro havia quebrado a placa em mil pedaços.
- Não lhe disse. Mude o nome. Ponha – “Casa da Cruz” e mande benze-la. Será uma proteção.
- Sabes de uma coisa Mirim, quero falar com teu pai, vamos lá.
- Agora mesmo. Mas vá com jeito. O homem tem cara de manso, mas quando se espanta é um Deus nos acuda.
E dentro de duas horas Besouro tinha vendido a “Bodega”. O seu destino era mesmo o baú de miudezas, andando de porta em porta, comendo o pirão da freguesia e juntando dinheiro.
A Encruzilhada botou-lhe sal na moleira. E se foi.

*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.





quinta-feira, 25 de julho de 2013

Fim da Árvore Genealógica

Luiz Fernando Veríssimo 






Mãe, vou casar!
Jura, meu filho?! Estou tão feliz! Quem é a moça?

Não é moça. Vou casar com um moço... O nome dele é Murilo.
Você falou Murilo... Ou foi meu cérebro que sofreu um pequeno surto psicótico?
 Eu falei Murilo. Por que, mãe? Tá acontecendo alguma coisa?
Nada, não... Só minha visão que está um pouco turva. E meu coração, que talvez dê uma parada. No mais, tá tudo ótimo.

Se você tiver algum problema em relação a isto, melhor falar logo...
Problema? Problema nenhum. Só pensei que algum dia ia ter uma nora... Ou isso.

Você vai ter uma nora. Só que uma nora... Meio macho.
Ou um genro meio fêmea. Resumindo: uma nora quase macho, tendendo a um genro quase fêmea... E quando eu vou conhecer o meu. A minha... O Murilo?

Pode chamar ele de Biscoito. É o apelido.
Tá! Biscoito... Já gostei dele... Alguém com esse apelido só pode ser uma pessoa bacana. Quando o Biscoito vem aqui?

Por quê?
Por nada. Só pra eu poder desacordar seu pai com antecedência.

Você acha que o Papai não vai aceitar?
Claro que vai aceitar! Lógico que vai. Só não sei se ele vai sobreviver... Mas isso também é uma bobagem. Ele morre sabendo que você achou sua cara-metade. E olha que espetáculo: as duas metades com bigode.

Mãe, que besteira... Hoje em dia... Praticamente todos os meus amigos são gays.
Só espero que tenha sobrado algum que não seja... Pra poder apresentar pra tua irmã.

A Bel já tá namorando.
A Bel? Namorando?! Ela não me falou nada... Quem é?

Uma tal de Veruska.
Como?

Veruska...
Ah!, bom! Que susto! Pensei que você tivesse falado Veruska.

Mãe...!!!
Tá..., tá..., tudo bem... Se vocês são felizes. Só fico triste porque não vou ter um neto...

Por que não? Eu e o Biscoito queremos dois filhos. Eu vou doar os espermatozóides. E a ex-namorada do Biscoito vai doar os óvulos.
Ex-namorada? O Biscoito tem ex-namorada?

Quando ele era hétero... A Veruska.
Que Veruska?

Namorada da Bel...
"Peraí". A ex-namorada do teu atual namorado... É a atual namorada da tua irmã. Que é minha filha também... Que se chama Bel. É isso? Porque eu me perdi um pouco...

É isso. Pois é... A Veruska doou os óvulos. E nós vamos alugar um útero...
De quem?

Da Bel.
Mas, logo da Bel?! Quer dizer então... Que a Bel vai gerar um filho teu e do Biscoito. Com o teu espermatozóide e com o óvulo da namorada dela, que é a Veruska.

Isso.
Essa criança, de uma certa forma, vai ser tua filha, filha do Biscoito, filha da Veruska e filha da Bel.

Em termos....
A criança vai ter duas mães: você e o Biscoito. E dois pais: a Veruska e a Bel.

Por aí...
Por outro lado, a Bel, além de mãe, é tia... Ou tio... Porque é tua irmã.

Exato. E ano que vem vamos ter um segundo filho. Aí o Biscoito é que entra com o espermatozóide. Que dessa vez vai ser gerado no ventre da Veruska... Com o óvulo da Bel. A gente só vai trocar
Só trocar, né? Agora o óvulo vai ser da Bel. E o ventre da Veruska.

Exato!
Agora eu entendi! Agora eu realmente entendi...

Entendeu o quê?
Entendi que é uma espécie de swing dos tempos modernos!

Que swing, mãe...?!
É swing, sim! Uma troca de casais... Com os óvulos e os espermatozóides, uma hora no útero de uma, outra hora no útero de outra...

Mas...
Mas uns tomates! Isso é um bacanal de última geração! E pior... Com incesto no meio...

A Bel e a Veruska só vão ajudar na concepção do nosso filho, só isso...
Sei!!! ... E quando elas quiserem ter filhos...

Nós ajudamos.
Quer saber? No final das contas não entendi mais nada. Não entendi quem vai ser mãe de quem, quem vai ser pai de quem, de quem vai ser o útero, o espermatozóide... A única coisa que eu entendi é que...
Que...?
Fazer árvore genealógica daqui pra frente... Vai ser foda.


  







Morre aos 97 anos, Candeeiro, o último cangaceiro do Bando de Lampião













     Morreu nesta quarta-feira o último cangaceiro do bando de Lampião, Manoel Dantas Loiola, de 97 anos, mais conhecido como Candeeiro. Ele faleceu na madrugada de hoje no Hospital Memorial de Arcoverde onde estava internado desde a semana passada, após sofrer um derrame. O sepultamento está marcado para as 16h, no cemitério da cidade de Buíque.
     Pernambucano de Buíque (a 258 quilômetros do Recife), Manoel ingressou no bando de Lampião em 1937, mas afirmava que foi por acidente. Trabalhava em uma fazenda em Alagoas quando um grupo de homens ligados ao famoso bandido chegou ao local. Pouco tempo depois, a propriedade ficou cercada por uma volante e ele preferiu seguir com os bandidos para não ser morto.
     No final da vida, atuava como comerciante aposentado na vila São Domingos, distrito de sua cidade natal. Atendia pelo nome de batismo, Manoel Dantas Loyola, ou por outro apelido: seu Né. No primeiro combate com os “macacos”, quando era chamado de Candeeiro, foi ferido na coxa. O buraco de bala foi fechado com farinha peneirada e pimenta.
     Teve o primeiro encontro com o chefe na beira do Rio São Francisco, no lado sergipano. “Lampião não gostava de estar no meio dos cangaceiros, ficava isolado. E ele já sabia que estava baleado. Quando soube que eu era de Buíque, comentou, em entrevista concedida ao Diario em 2018: ‘sua cidade me deu um homem valente, Jararaca’”.
     Candeeiro dizia que, nos quase dois anos que ficou no bando, tinha a função de entregar as cartas escritas por Lampião exigindo dinheiro de grandes fazendeiros e comerciantes. Sempre retornava com o pedido atendido. Ele destaou que teve acesso direto ao chefe, chegando a despertar ciúme de Maria Bonita. Em Angicos, comentou que o local não era seguro. Lampião, segundo ele, reuniria os grupos para comunicar que deixaria o cangaço. Estava cansado e preocupado com o fato de que as volantes se deslocavam mais rápido, por causa das estradas, e tinham armamento pesado.
     No dia do ataque, já estava acordado e se preparava para urinar quando começou o tiroteio. “Desci atirando, foi bala como o diabo”. Mesmo ferido no braço direito, conseguiu escapar do cerco. Dias depois, com a promessa de ser não ser morto, entregou-se em Jeremoabo, na Bahia, com o braço na tipóia. Com ele, mais 16 cangaceiros. Cumprindo dois anos na prisão, o Candeeiro dava novamente lugar ao cidadão Manoel Dantas Loyola. Sobre a época do cangaço, costumava dizer que foi “história de sofrimento”.



@folhadosertao

com diariodepernambuco



ALAN RICHELLY / NAÇÃO RURALISTA

quarta-feira, 3 de julho de 2013

HIPÓTESES SOBRE A GÊNESE DAS SECAS


Euclides da Cunha

(2ª. Parte)

Falta às terras flageladas do Norte uma alta serrania que, correndo em direção perpendicular àquele vento, determine a dynamic colding*, consoante um dizer expressivo.

            Um fato natural de ordem mais elevada esclarece esta hipótese.
Assim é que às secas aparecem sempre entre duas datas fixadas há muito pela prática dos sertanejos, de 12 de dezembro a 19 de março. Fora de tais limites não há um exemplo único de extinção de secas. Se os atravessam, prolongam-se fatalmente por todo o decorrer do ano, até que se reabra outra vez aquela quadra. Sendo assim e lembrando-nos que é precisamente dentro deste intervalo que a longa faixa das calmas equatoriais, no seu lento oscilar em torno do equador, paira no zênite daqueles Estados, levando a borda até aos extremos da Bahia, não poderemos considerá-la, para o caso, com a função de uma montanha ideal que, correndo de leste a oeste e corrigindo momentaneamente lastimável disposição orográfica, se anteponha à monção e lhe provoque a parada, a ascensão das correntes, o resfriamento subseqüente e a condensação imediata nos aguaceiros diluvianos que tombam então, de súbito, sobre os sertões?
Este desfiar de conjeturas tem o valor único de indicar quantos fatores remotos podem incidir numa questão que duplamente nos interessa, pelo seu traço superior na ciência, e pelo seu significado mais íntimo no envolver o destino de extenso trato do nosso país. Remove, por isto, a segundo plano o influxo até hoje inutilmente agitado dos alísios, e é de alguma sorte fortalecido pela intuição do próprio sertanejo para quem a persistência do nordeste, -  o vento da seca, como o batiza expressivamente – equivale à permanência de uma situação irremediável e crudelíssima.
As quadras benéficas chegam de improviso.
Depois de dois ou três anos, como de 1877-1879, em que a insolação rescalda intensamente as chapadas desnudas, a sua própria intensidade origina um reagente inevitável. Decai afinal, por toda a parte, de modo considerável, a pressão atmosférica. Apruma-se, maior e mais bem definida, a barreira das correntes ascensionais dos ares aquecidos, antepostas às que entram pelo litoral. E entrechocadas umas e outras, num desencadear de tufões violentos, alteiam-se, retalhadas de raios, nublando em minutos o firmamento todo, desfazendo-se logo depois em aguaceiros fortes sobre os desertos recrestados.
Então parece tornar-se visível o anteparo das colunas ascendentes, que determinam o fenômeno, colisão formidável com o nordeste.
Segundo numerosas testemunhas – as primeiras bátegas despenhadas da altura não atingem a terra. A meio caminho se evaporam entre as camadas referventes que sobem, e volvem, repelidas, às nuvens, para, outra vez condensando-se, precipitarem-se de novo e novamente refluírem; até tocarem o solo que a principio não umedecem, tornando ainda aos espaços com rapidez maior, numa vaporização quase, como se houvessem caído sobre chapas incandescentes, para mais uma vez descerem, numa permuta rápida e continua, até que se formem, afinal, os primeiros fios de água derivando pelas pedras, as primeiras torrentes em despenhos pelas encostas, afluindo em regatos já avolumados entre as quebradas, concentrando-se tumultuariamente em ribeirões correntosos; adesando-se, estes, em rios barrentos traçados ao acaso, à feição dos declives, em cujas correntezas passam velozmente os esgalhos das árvores arrancadas, rolando todos e arrebentando na mesma onda, no mesmo caos de águas revoltas e escuras...
Se ao assalto subitâneo se sucedem as chuvas regulares, transmudam-se os sertões, revivescendo. Passam, porem, não raro, num giro célere, de ciclone. A drenagem rápida do terreno e a evaporação, que se estabelece logo mais viva, tornam-nos, outra vez, desolados e áridos. E penetrando-lhe a atmosfera ardente, os ventos duplicam a capacidade higrométrica, e vão, dia a dia, absorvendo a umidade exígua da terra – reabrindo o clico inflexível das secas...


Nota:
*Resfriamento dinâmico
Extraído do livro Os Sertões – Campanha de Canudos 1979