quinta-feira, 29 de novembro de 2012

TÍTA


TÍTA*
João Henriques da Silva
(In Memoriam – 20/09/1901 – 16/4/2003)

A mãe não era casada e largou-se no mundo com um sujeito qualquer. Títa ficou só com oito ou nove anos, pelas casas dos outros. Da mãe nunca mais teve notícia. E também não lhe interessava muito. Ficou moça, empregando-se aqui e ali, como cão sem dono.
E é num desses lances da vida que a pessoa toma uma resolução. Desenvolveu um corpo que assustava as patroas. Além disso, tinha um requebro ameaçador. E por isso não parava nas casas.
- Moleca enxerida. Não respeita a casa e anda botando os olhos atrevidos para o meu marido. Como não confio muito nele, vou mandá-la embora. Quero lá uma tentação daquela lá em casa.
E era assim.
No entanto a moleca Títa, não tinha essas intenções. Apenas havia ficado daquele jeitão e não fazia mal se mostrar. Por vezes arrependia-se amargamente de ser aquele pedação de mulher assustador. Não para nas casas porque achavam que ela era uma ameaça.
E era aquela luta para conseguir novo emprego. Nunca lhe diziam verdadeiramente porque estava sendo despedida. Arranjavam sempre outra justificativa.  - Não, não preciso mais de empregada.
Ela sabia muito bem que não era por isto, mas não havia escapatória. Que culpa tinha de ser tão opulenta. - De ter aquele rosto atraente, aquelas pernas bem feitas, os seios aprumados e pequenos, aquela cintura que dava destaque as outras partes do corpo. - Nenhuma.
Também não tinha culpa o patrão ter casado com uma mulher feia e desengonçada. Era problema de cada um ou, apenas má sorte da coitada da mulher. E tivera sorte ter se casado. Algumas pareciam mais um trem descarrilado. Muitas vezes notava que donas de casa, quando pedia emprego, passava o rabo de olho no marido, procurando ver sua reação diante dela. E era logo aquela resposta terrível:
 – Preciso não, meu bem! Quero lá uma sujeitinha daquela em minha casa. Aquilo é um desassossego. Deus me livre. E com esse manhoso que tenho em casa, metido a sonso.
E lá se ia Títa bater noutras portas. Não raro tinha que pedir comida e um lugar para dormir, lá pelas pontas de rua em casa de gente pobre. Quando se desesperava, chorava e era ai que chegava a ter ódio da mãe que a deixara para se ir com cabra safado.
Dona Clemência, que também tinha passado por isso, muitas vezes sofrido por falta de emprego e rejeição, deu-lhe uma dica: - Vai, Títa, vai à casa do padre Severo. Pelo menos é solteiro, não tem mulher ciumenta. Quem sabe se não te arranjas bem por lá. Todos dizem que o padre Severo é quase santo.
- Pode até ser. Então vamos lá comigo, dona Clemência. O padre não me conhece e conhece a senhora. Já não tenho mais jeito de andar implorando trabalho. Faço tudo para agradar com minhas obrigações, mas sempre me mandam embora.
- Olha Títa, tenho experiência. Toda mulher tem medo de outra mulher bonita. E logo com esse teu corpo abençoado. E quando a patroa é feia, então, não há remédio. Fica andando pra dentro e pra fora, fiscalizando o marido. Volta e meia ou chama por um ou por outro. Quer sempre saber onde andam.
- Mas eu não sou dessas, dona Clemência. Nunca dou linha para ninguém. Tenho é que me casar como as outras, ter minha casinha e não fazer igual a minha mãe que me abandonou por um sujo ordinário. Será tempo perdido, tentarem. Ou me caso ou vou morrer como nasci.
- É. Elas não sabem de tuas intenções. O pensamento é sempre outro. E a maioria, Títa dessas empregadinhas, não tem esse teu pensamento. A maioria é gente safada. Depravada. Umas catraias. E é por isto que as donas de casa se assustam.
- Infelizmente não posso fazê-las acreditarem em mim. Não tenho mãe, mas tenho vergonha.
Baterem a porta do padre Severo. Contaram-lhe toda a história. Precisava de um emprego para Títa.
O vigário olhou para Títa, com espanto. Poucas vezes tinha visto uma tentação daquela. E teve medo. Dar emprego a uma coisa daquela, era o mesmo que abrir a boca do mundo. Perderia seu ar de santidade e logo o senhor bispo iria saber de sua reviravolta.
- Minha filha, já tenho arrumadeira e cozinheira. Não tenho condição de ficar contigo. Sou um solteirão, um penitente. Se ao menos tivesse filhos para criar, poderia ficar como babá.
- Mas senhor padre, eu lavo roupa, engomo, faço qualquer coisa que houver, e que o senhor quiser.
Nestas palavras, o padre Severo arregalou os olhos. Ninguém até então havia lhe despertado os instintos. Mas ali estava o demônio cutucando-o com vara curta. Desembaralhou as idéias, colocou-as em ordem, fez uma analise rápida, subiu nas paredes e tomou uma decisão perigosa. Ainda pensou que aquilo deveria ser arte do capiroto, mas a tentação aguçava cada vez mais os seus desejos, até então reprimidos. E perguntava a si mesmo, como lhe estava acontecendo àquela reviravolta. Benzeu-se, como que ia rezar, e apelou para o seu anjo da guarda, mas o bichote estava cochilando ou mal intencionado. O que lhe fervia lá por dentro endoidecia-o.
Fechou os olhos para ver melhor e não teve jeito. Não via mais ninguém senão, Títa. Títa desafiando-o. Títa prometendo fazer o que ele quisesse. Como é que antes não tivera aqueles pensamentos. Certamente nunca havia visto uma Títa, com aqueles olhos implorando, aquele arfar dos seios, uma cintura e umas pernas tão insultuosas. Não tinha mais jeito de fugir. O demônio havia acordado dentro dele. Sentia até uma certa repugnância do cheiro de incenso e de vela queimando. Atordoado, rezou o credo só para si, enquanto misturava tudo com a visão de Títa. Já não se sentia mais dono de si. Títa entrara-lhe nas veias e nos instintos como se fossem gotas de sumo satânico. Nos 42 anos de vida e seus 17 de sacerdócio, jamais sentira aquele demônio que lhe tirara a confiança em si próprio e em seu divino apostolado.
Até então os seus olhos nunca haviam enxergado as atrações de um corpo de mulher com aquela força que o esmagava. E a culpa de tudo isso era a velha Clemência que teve a lembrança de levar-lhe Títa para pedir-lhe emprego. Mas que diabo, já viu centenas de mulheres novas e bonitas, conhecia suas intimidades, através da confissão, mas tudo isso nunca bulira com os seus instintos de criatura humana. Escravo das proibições canônicas e esquecera-se inteiramente das coisas terrenas, dos prazeres da vida.
Distanciara-se de tudo e nem chegara a sonhar em coisas que não fossem místicas; desde pequeno enfiado em colégio de padre e os longos anos de seminário o isolaram da vida material. Era como se estivesse por trás de uma vidraça, virado para a contemplação, o que estava do outro lado não lhe aquecia o coração nem despertava desejos. E, agora, a vidraça partira-se e passara a ouvir o ruído do mundo lá fora, lá de onde vinha Títa com aqueles olhos, aqueles seios querendo furar a blusa e aquele corpo adoidado. Como era que nunca havia olhado para as coisas com os seus olhos mortais. Envolto num manto de santidade e quando se julgava já pertinho do céu, Títa vem e desmorona todo o seu passado místico.
Deu a dona Clemência, uma desculpa: - Seu espírito e sua formação religiosa, não lhe permitiam deixar desamparada. Mesmo sem trabalho específico teria um lugar para ela. Podia ficar.
- Sim senhor. Ela vai buscar as coisinhas dela e logo estará aqui. Não faz questão de dinheiro. Quer comida e onde dormir tranquila  Só isso. No mais o senhor acerta com a menina. Ela é uma criatura simples e atenciosa. Faz de um tudo. Pode usar e abusar. Está habituada a todo serviço. Deus lhe pague padre Severo. Não irá se arrepender. Apenas peço-lhe que tenha paciência com ela. É uma menina boa e fiel.
- E a família dela, onde vive?
- Não se sabe. O pai foi qualquer um e a mãe abandonou-a e fugiu com um malandreco. Criou-se só e pela casas dos outros. Vai completar dezenove anos. Como disse ao senhor, as famílias não querem moças bonitas em casa. Toma-se de ciúmes e ela é quem sofre coitadinha. Mas aqui com o senhor ficará a vida toda. Deus permita que o senhor goste dela. A menina é pau para toda obra. Não tenha receio. É de copa, cozinha, arranjo de casa, etc. etc.
Padre Severo ficara preso aos etc. etc. Quanto ao resto, poderia não fazer nada. Títa chegou. Quatro paninhos e uma caixinha de pó de arroz barato. Vinha entonada na roupinha melhor, que lhe modelava mais ainda o corpo esbelto e adoidado. Padre Severo benzeu-se. Chamou à arrumadeira e recomendou que cuidasse da menina: casa, comida e banho. - O etc. era com ele. – Que a orientar-se sobre os hábitos da casa. E no dia seguinte fosse comprar o que ela necessitasse. Roupas, sapatos e o que as mulheres gostam de usar. Fosse com a Títa para ela escolher. Queria-a limpa e apresentável. Deveria esta sempre pronta para se apresentar em qualquer circunstância. Era como uma pessoa de casa. Deve andar igual a vocês.
- Mariana, já reparastes essa tal de Títa. Quem diabo já viu uma criatura com um corpo daquele. Não tem um defeito. Padre Severo faz cada espécie de caridade. Só porque estava seu emprego trouxe-a pra cá. Duvido que aquilo seja uma moça.
- Sem pai, sem mãe, solta no meio do mundo, já deve ter se perdido.  E com um corpo daquele, minha filha, é difícil escapar das unhas dos gaviões.
- Sei não, Danila. A gente às vezes vê cara e não vê coração.
- Mas não achas que é um precipício, padre Severo com um petisco dentro de
casa. Vamos por o olho nos dois.
            - Que coisa Danila. Padre Severo é um santo. Aquilo nem sabe se existe mulher. Pode até dormir no quarto dela e na mesma cama. Só pensa em rezar. Fora disso, o mundo para ele não existe.
- Até certo ponto, Mariana. Vai assim até que o diabo atiça.
- Vais ver. Nunca se enxeriu pra nosso lado.
- Ora, nós somos uns bagulhos diante da Títa. Uma coisa daquela incendeia qualquer um. Ora, vi a menina tomando banho. Corpo moreno, e perfeito de cima a baixo. Tive vontade de pegar-me com ela. Por isso mesmo vou sair hoje à noite. Tenho que me aliviar. Se ao menos padre Severo fosse homem, ficava tudo aqui mesmo... Mas com a Títa, sei lá...
- Quer dizer, que se o padre quisesse, dormirias com ele?
- E porque não? Era melhor do que andar lá fora com um e com outro.
Títa veio servi-lhe o jantar. Mandaram-na de propósito e ficaram na observação. E não haviam se enganado. Padre Severo ficara só pedindo mais coisas e não despregava os olhos de cima de Títa. Depois começou a fazer-lhe perguntas inocentes, embora com outras intenções.
Títa respondia como se estivesse com um desconhecido. Não é que não simpatizasse com o padre Severo, mas por nem pensar naquilo que ele estava pensando.
Era como se fosse um copo d’água saído da geladeira. Por que aquele indiferentismo. Seria que todas as mulheres fossem assim. Considerou-se um toupeira. Não sabia de nada, e agora estava encalhado, sem saber como se pisa em cima das brasas.
            - Traga-me um pouco de vinho, Títa, para ver se abro o apetite. – Preciso descobrir o fio da meada, ver por onde deveria começar.  - Engoliu um copo de vinho e encheu-o de novo. Criou um pouco de ânimo, mas o que lhe faltava eram as palavras, e a forma de dizer as coisas. Nunca havia lido qualquer coisa sobre o assunto e nem observado como agiam os namorados. Afinal teve uma saída. – “Até agora não pensastes em te casar, Títa. Ninguém se interessou ainda por ti? O casamento é muitas vezes uma ótima solução para certos problemas. Um bom marido faz parte do destino das moças.
- Ainda não, padre Severo. Nunca tive tempo de pensar nessas coisas. Sempre fui uma sofredora. E, além disso, casamento sempre me fez medo. Nas casas onde me empreguei sempre ouvia as patroas se maldizendo. Ciúmes do marido, preocupação com os filhos, desentendimentos e tantas outras coisas. Assim, preferia esquecer.
- Mas nunca sentistes algum desejo. Nunca te afeiçoastes por alguém?
- Já e muitas vezes, mas procurava não manifestar e a coisa se apagava como tivesse acabado o azeite de lamparina. Muitos sujeitos já tentaram, mas fora de um casamento, Títa não se deixa enganar. Conheço muitas moças que foram iludidas, e hoje fazem parte das arrependidas. Estão por aí abandonadas e sofrendo. Muitas caíram na vida das pensões. Mas Títa é diferente. Sofreu demais até hoje. E quero que o senhor reze por mim e me proteja.
Padre Severo teve vontade de mandá-la embora e de excomungar a velha Clemência. - Como era que o atirara num precipício daquele e agora aquela doidinha se saía com um bê-á-bá daquele. Não queria nada. Certamente fora a velha Clemência que metera aquelas idéias na cabeça desmiolada de Títa. Gente com tais princípios deveria ter nascido aleijada e feia. Atiram em cima dele uma coisa daquela, fazem desmoronar uma existência de moral religiosa, e a debiloide se sai com aquela teoria absurda. Casamento! Por ventura será que o palavreado do sacerdote ou a água benta tem tanto poder assim? É a mesma coisa que dizer, a troco de umas patacas, toma essa moça, leva para cama e faz dela o que quiseres. Tudo formalidade. Mas isso não me vai ficar assim. Vou meter a cara nos livros e aprender o que não me ensinaram. Resultado: vou perder o sono, errar nas missas, nos batizados, em tudo, só por causa da velha Clemência... Quem tem uma Títa, não anda mostrando a ninguém, principalmente a um pobre diabo que sempre viveu em jejum. Vou terminar maluco ou rasgando em tiras, essa camisola preta. Suicídio não resolve, e olhos famintos através da roupa de Títa para ver-lhe as formas do corpo, muito menos.
 E vinha-lhe a memória o fato absurdo de nunca ter visto uma mulher sem roupa já naquela idade, o que, agora, lhe parecia um absurdo. - E talvez fosse melhor nem ver. Poderia ter um enfarte. E é possível que isto acontecesse com ele.
Títa afastou-se pensando nas perguntas do padre. - Porque estaria interessado em saber a sua vida. Talvez a quisesse ajudar arranjando-lhe um bom casamento. - Mal sabia que as intenções eram completamente outras.
- Títa, que tanto perguntavas ao padre Severo? Deixa o homem em paz, menina. Ele é um santo. Tem a inocência de um anjo. Nunca ao menos sorriu para o lado da gente. Até parece que tem medo de se aproximar. Só se entra no quarto dele, depois que sai.
- Para mim é indiferente. Mas eu acho uma pessoa bondosa. Interessou-se por mim, deu este emprego e não o vejo com atravessamentos.
- Mas não tirava os olhos de cima de ti. Parecia que queria devorar-te. Abre teus olhos, menina. Não tente fazer de um santo, um pecador.
- Eu, hem! Vocês que se cuidem. O que é meu é só meu. Sou uma moça e exijo respeito seja de quem for. E não vejo nada demais em conversar com o padre Severo. Pra mim, tanto faz ser padre ou não. Ninguém vai me levar sem antes casar comigo. Apenas costumo tratar bem todo mundo. Se eu quisesse conquistar alguém, já o havia feito. Nunca faltou quem me perseguisse. Mas ninguém até agora botou a mão em cima de Títa. Agora no dia que sentir vontade de me casar, então irei procurar escolher e decidir-me. Não tenho manhas encobertas. Tudo meu é claro como a luz do sol. Sou uma criatura sem pai, sem mãe e por isso mesmo tenho que defender-me sozinha. Se eu cair, ninguém via me levantar.
Quase dois meses já se havia ido e padre Severo sentia-se cada vez mais desiludido e frustrado. Já pedia a todos os santos que Títa se desgostasse e saísse. Pelo menos não a vendo, diminuiria sua tensão.
Mas ao contrario disso ela mostrava-se mais atenta, e mais atraente. Quanto mais exigia dela na expectativa de magoá-la, mais a Títa se esmerava em servi-lo e, já agora com um rizinho de satisfação.
- Valei-me meu santo Dino. - Já não sabia mais para que santo apelasse. Parecia até que a santada toda conspirava contra ele. Saía para a cidade, para não vê-la. Mas Títa estava dentro dele e o acompanhava como uma obsessão. Pouco lhe faltava para endoidar. E para que serviria um padre louco. E todo aquele dinheiro que juntara quase como um usurário. A família não precisava dele e não tinha como usá-lo. Sem mulher, sem filhos e agora aquele estado lamentável, a ponto de atirar pedra na lua.
- Títa! Tenho toda confiança em ti. Sei que serás capaz de guardar um grande segredo e usaras da maior franqueza, caso o que te vou dizer não seja do teu agrado. Prometes ficar só e só entre nós?
- Ora padre Severo. Creio que o senhor já me conhece bastante.
- Mas o assunto é serio demais.
- Como for padre Severo, juro!
- Pois bem, Títa. Talvez já tenhas percebido que gosto muito de ti. Se nunca te disse nada é porque nunca tive coragem. Mas agora já chegou ao extremo. Tua vinda para esta casa transformou minha vida. E tenho sofrido muito por isso.
- Então, padre Severo, vou embora neste instante. E o senhor perdoe-me. Julgava que estava contente comigo. Podia ter me chamado a atenção e me corrigiria ou havia voltado sem perda de tempo.
- Não é nada disso, menina. Apaixonei-me por ti e nunca tive coragem de confessar esta minha fraqueza. Se prometeres casar comigo, deixo a batina, vamos embora daqui para bem distante e lá nos casaremos. Terás a vida que mereces e eu serei a criatura mais feliz deste mundo velho de Nosso Senhor.
- Mas eu não sou ninguém, padre. Depois irá se envergonhar de mim. Não estudei. Mal assino o nome e soletro algumas palavras.
- Por saber ler é que me perdi e tenho medo de perder-te. Sei que és uma moça honesta e isto me basta.
- Isto, padre Severo, é felicidade demais para uma criatura como eu. Mas não desejo fazê-lo infeliz. Com pouco tempo se cansará de mim e sofrerá ainda mais.
- Olha Títa. Para abandonar o meu sacerdócio de tantos anos, seria necessário ter muito amor. Já dei a Deus minha contribuição. Agora quero servi-lo de outra forma. Oferecendo-lhe um lar feliz. O casamento civil será nossa segurança. Temos o bastante para viver com tranquilidade. E onde estiver, dedicar-me-ei ao ensino. Não quero ser um ocioso e um inútil. Fizeste-me renascer. Estive até agora vivo para Deus e morto para o mundo e para o amor. Espero que me correspondas. Responda-me alguma coisa. Não tenhas receio de nada.
- Bem, padre Severo. O senhor sempre me pareceu uma criatura feliz. Também sou feliz depois que me acolheu. Na verdade tenho medo, medo de causar-lhe futuros constrangimentos. No começo tudo são rosas, mas depois somente Deus saberá. De mim, irei para onde me chamar. Apenas quero dizer que nada poderá acontecer antes do casamento.
- Ah! Títa, disso não tenhas duvida. Então vamos iniciar os preparativos. Mas será segredo entre nós dois. Nem a dona Clemência deve saber. Seria um escândalo. Ninguém deve saber pra onde vamos. Podes me fazer um favor?
- Decerto.
- Então, dar-me o primeiro beijo de minha vida. Na boca, sim.
 Para Títa, também foi o primeiro.

* O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.




domingo, 25 de novembro de 2012

A FAMILÍA DOS JANUÁRIOS


A FAMÍLIA DOS JANUÁRIOS*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)


A família dos Januários era uma das mais conhecidas da zona rural onde vivia. Não por que fosse afortunada ou pelo fato de ser dali mesmo desde suas origens, e sim, por se constituir quase só de mulheres, oito moças alegres e cada uma mais bonita do que a outra. Aliás, era herança do casal. Pai e mãe formavam um par invejável. Bem proporcionados, sadios, corados, dos dois só poderia mesmo sair uma moçada daquela. Todas ainda solteiras e nem pareciam ter pressa para se casar. E não é que vivessem em regime tão rigoroso que dificultasse relacionamentos. Era coisa própria delas. E tão unidas sempre foram que receavam se separar. Quando alguma se ensaiava num namoro mais sério, caiam-lhe logo em cima. – “Vais te separar da gente. Não podes fazer isso”. E lá o negócio começava a esfriar. Até onde iriam tão apegadas, nem elas mesmas sabiam e nem lhes dava preocupação.
 Iguais no temperamento, iguais na solidariedade, pouco se interessavam pelo mundo lá fora. Quando uma olhava para outra era sempre sorrindo. Tudo quanto faziam tinha quer ser combinado e bastaria um voto contra para uma mudança geral.
Na casa dos Januários não se falava em desgostos nem em doenças. E sempre diziam: “onde há alegria, não entra doença”.
Além dos afazeres domésticos, as meninas faziam rendas, crochê e bicos, arte que a mãe lhes ensinara. Sobravam encomendas. Marcavam prazos para entrega e nisso eram pontuais.
Dona Maria José, preocupava-se com o destino das filhas. Trocava idéias com seu Januário e geralmente não chegavam a qualquer conclusão. As meninas deveriam se casar como acontece com as outras moças.
– “Parece, Januário, que estão combinadas para não se casarem. Quem já viu disso. Depois ficam velhas, nervosas e ninguém mais vai requerer”.
Que é que tem Maria José. Parece que não gostas delas? Por mim, nunca sairiam de casa. São tão amigas e tão boas que seria uma pena separá-las. Deixa as meninas aí, mulher. Casa-se, não se dão bem, vão sofrer; lutar com filhos e às vezes um marido ordinário. Não vês como é, criatura de Deus. E o difícil é conseguir que se separem. Parece até que são todas gêmeas de uma barriga só. Como podia ser?
- Que nada. Existem tantos moços bons por aí. Elas é que nem ligam. Parece que não sentem nada. Vamos fazer uma festinha, uma dança, convidar a turma e ver em que vai dar. É possível que alguma se interesse e quebra-se essa corrente anti-matrimonial.
- Toma cuidado. As meninas não querem se separar. Depois a responsabilidade será nossa.
- Moça é para se casar, Januário. Acostuma-se aos poucos. Já pensastes envelhecerem dentro de casa só fazendo crochê e renda. Eu acho também que os rapazes têm medo de ti, Januário. Essa tua cara sisuda, como se tivesses ciúmes de tuas filhas.
- Ciúme tenho. Não quero vê-las sofrer, quando nos parecem tão felizes reunidas. Filha minha, se casar com alguém que não cuide muito bem dela, tem que voltar para casa, É uma lei de Januário.
- Ora, é ter cuidado. Gente ruim não encosta.
- Há tanto cabra por aí com cara de santo e depois bota as unhas de fora. Vejas bem. Estamos na santa paz. Todos unidos, alegres, sem esse tal de casamento.
- Bobagem. Todo mundo casa, tem filhos e se acontece alguma coisa, com o tempo passa.
Preparou-se a festa com bastante antecedência. Tempo de mais para que todos fossem avisados.
A velha Marcolina, íntima da família Januária, uma fofoqueira diplomada, espalhou a notícia.
“A família Januária ia fazer uma festa com intensão de casar as filhas”. Iria ser para valer. Mas tivessem cuidado com seu Januário. O homem não botava água a pinto. Bastaria riscar um fósforo para virar um incêndio. Mesmo assim, queria arranjar casamento para as filhas. Não fazia questão de riqueza. Gente boa, sim. Para avaliar o comportamento dos candidatos, deixaria tudo à vontade, com tanto que não se excedessem. Daí para frente seria com ele.
A festa começaria com um almoço e haveria comida até o dia amanhecer. Bebidas controladas, a pesar de pagas. Compareceram muitas moças de famílias vizinhas. E sabe como é. Moças do sertão são todas bonitas, coradas e alegres. Mas a rapaziada tinha sede era nas filhas do Januário. Eram as mais difíceis e, mas apetitosas.
A festa começou. Sanfona e violão, cantorias e dança. Seu Januário na fiscalização. Houve advertência. – “Aqui não se bebe demais”. E foi só. Seu Januário era respeitado.
O fole não parava. A sala cheia. Ao som de músicas sertanejas, a dança já cheirava a moça suada. As meninas de seu Januário não perdiam parada. Cada uma com seu namorado pareciam que estavam no paraíso. Abria-se um mundo novo para elas. O dia amanheceu e a noite lhes pareceu curta demais. Era uma pena. À hora das despedidas, a claridade foi testemunha das manifestações de afeto, seguidos dos juramentos de amor e de reencontros. Oito dias depois ainda comentavam a alegria da festa.
– Vocês não imaginam como estou feliz. E eu, E eu. E eu. O tom era o mesmo. A verdade é que um mês depois, já quatro delas estavam noivas.
- Vai se casar, não é? E nós vamos ficar sozinhas, neste casarão?
- Ora vocês se casam também
- Como, se nem fomos pedidas.
- Depois chegaram os candidatos.
- Seria bom que casássemos todas de uma vez. Cada uma para sua casa, com o seu noivo. Mas assim, pai e mamãe ficariam sozinhos, sem uma filha para fazer-lhes companhia e ajudá-los, depois há uma outra vantagem. A gente vai dizer a vocês se casar é bom.
- A gente já sabe que é.
Não, não é isso que vocês estão pensando. É na trabalheira da casa, na responsabilidade de dona de casa.
Casaram-se as quatro, num grupo. O padre Tampinha fez mil recomendações, mas somente falando em amor. Coisa desnecessária, óbvio. Quem é que não sabia que amar era bom. Não falou no lava-pratos, no fogão, nas vassouras, nas feiras: só pensava mesmo nas viradas. Talvez tivesse razão. O que era bom lhe era proibido. E o que é proibido é o que da para pensar. Padre Tampinha era um frustrado. Não podia ver uma noiva sem lhe doer o juízo e ficar arrepiado. Coitado dele.
Romperam-se os elos no caso do seu Januário. Quatro filhas lá se foram nos braços dos noivos. A casa ia ficando vazia. As quatro moças que ficaram uniram-se ainda mais. Depois foi saindo uma, outra, casaram-se todas.
Januário visitava e fiscalizava os seus maridos. Cabra tinha que andar direito. Qualquer suspeita estava ao pé da conversa: E bastava a presença de Januário para modificar o ambiente.
As oito irmãs não quebraram a unidade. A vida de uma estava na vida da outra. Uma solidariedade admirável. Dividiam-se tudo irmanamente. E a família cresceu de prestígio e de respeito. Quando se falava nos Januários, tinha-se o cuidado de pensar algumas vezes antes. – “Cuidado, aquele é genro do velho Januário”.
“A Seriema”, terra dos Januários caracterizou-se depois pelas festas da roça. Quem tinha moça pra casar, o caminho era esse, dança aqui, dança ali e o padre Tampinha celebrando casamentos. Um santo remédio. Até moça velha encruada saiu do barricão. Dançou casou!
Santo Antonio sofria uma concorrência dos diabos. Para arranjar um noivo não necessitava mais do bom santinho de madeira. Sem fitas, sem velas acessa, o coitado cochilava a vida inteira, coberto de poeira e sem um níquel na bandeja aos seus pés. Uma ingratidão.
 Mas em Seriema bastava mesmo um bom arrasta-pé. Em todo caso, há, porém, uma exceção. Foi o caso da Marcolina. Encalhada, não houve arrasta-pé que desse jeito. Também a mercadoria era sem apresentação. Feia de cara, nariguda, queixo comprido e corpo desengonçado. Cabeça afunilada e pernas pequenas, sustentadas por duas lapas de pés que vou te dizer... Teve que apelar para Santo Antonio. Espanou o santinho, enrolou-o de laços de fitas, acendeu-lhe velas, fez orações. Tudo inútil. Santo Antonio teve pena da Marcolina, mas o seu poder não chegava a tanto. Marcolina, desesperada, apelou para um casamento na igreja verde, fosse com quem diabo fosse: Ninguém se atrevia. Mesmo sem ser da família dos Januários, os possíveis candidatos tinham receio de quebrar o regime da terra. Nada de patifarias nos domínios dos Januários. Marcolina é que não estava disposta a fazer parte do cordão azul das onze mil virgens. Dona de si vendeu o que tinha: gados, fazendas, e preparou-se para quebrar o resguardo, embora tivesse que se mudar. Era um desaforo, ficar como estava, criando teias de aranha.
Pedro Pachola, também não tinha forma de gente. Qualquer bicho ganhava pra ele. Além de tudo ruzagá. Marcolina botou-lhe o cavalo em cima. Fugiriam os dois para onde ninguém mais os vissem. O Ruzagá ainda pediu prazo para pensar. Também não era assim não. Enfrentar Marcolina, mesmo endinheirada, era dose pra jacaré.
- Nos casaremos aonde chegar, Pedro Pachola!
- Pra casar, não. Assim também é demais!
De qualquer forma Ruzagá teve pena da Marcolina e fugiram os dois.
Mas antes de sair, Marcolina, por reconhecimento, enrolou Santo Antonio de laços de fita e acendeu-lhe duas velas. Resultado: O velho santo de madeira pegou fogo e amanheceu quase em cinzas. O povo teve que adquirir outro, mas, de material resistente as velas de dona Marcolina.
Tempos depois correu a notícia que havia nascido uma filha de Marcolina e Pedro Pachola. Todo mundo teve dó da bichinha...
Mas não foi assim. Nosso Senhor deu uma ajeitada. Usou a força do atavismo e nasceu uma linda garotinha.

*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestina, no prelo.
     

A ESPERANÇA É A ÚLTIMA QUE MORRE


A ESPERANÇA É A ÚLTIMA QUE MORRE*

João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

A família de Almira mandou até rezar missa por um frade velho que já se dizia santo, para que ela não se cassasse com o Abreu. Estava visto que seria um desastre.                            
Ninguém sabia de onde havia vindo, comprara fazenda quase nos subúrbios da cidade e ali vivia retraído, cuidando apenas do que era seu. Na verdade não era pessoa ignorante; aparentando até um grau de instrução superior. Pela convivência podia-se ver muito bem que possuía bons hábitos de vida. Amigo, prestativo e manso. Pelo visual, não degradava ninguém.
Almira, então, não atinava porque a família se opunha. As irmãs já estavam casadas e bem casadas, e ela, a mais velha, esperando oportunidade, isto é, conseguir alguém que fosse do agrado da família. Não era, aliás, a primeira vez que a família a contrariava. Deveria ser má sorte sua ou inexperiência. Mas desta vez não estava disposta a ceder facilmente. Já não era uma criança e tinha medo do tempo que se ia passando sem se preocupar que ela estivesse envelhecendo. Era problema somente seu. O tempo não tinha nada a ver que ela se cassasse ou morresse solteirona e rabugenta. Havia de pedir explicações sobre o motivo da formal oposição. E destinou-se a isso. Que diabo, já era a terceira vez lhe acontecia isso.
            Almira tinha certeza de que o Abreu lhe queria bem, não estava caçando dote e o que desejava era somente ela, só ela. É certo que vivia muito bem em casa, com os pais, não lhe faltava nada, além de um marido que tanto desejava. Já era só em casa e as duas irmãs lhe causavam certa inveja. E não adiou o entendimento.
            - Papai, mamãe, gostaria de saber a razão pela qual se opõem ao meu casamento com o Abreu. Pelo que sei é uma criatura querida por todos e não se sabe de qualquer gesto que o desabone. Então porque não presta para casar comigo?
            - Ora filha, o teu Abreu é um ilustre desconhecido. Chegou para cá, não se sabe de onde veio quem é e se é uma pessoa honesta. Sabe que as aparências enganam. Bonzinho, bonzinho, e pode até ser que ande por aqui se ocultando de alguma coisa errada. No entanto, o principal não é ainda isso. Bem sabes que ele mora com uma mulher que tem já um filho. Nota-se que vive intimamente com ela. E assim, como pode ser. Ademais, ele terá que abandoná-la o que nos parece uma grande injustiça. Ainda não reparaste como se dão bem os dois, ou melhor, os três. Seria muito doloroso o abandono da moça com aquele filhinho, por sinal uma gracinha. Se o Abreu tem vivido até hoje com ela em completa harmonia, como poderíamos permitir que viesse contribuir para uma separação. É isso Almira. Atenta para nossa argumentação. Entrarias logo cometendo um desatino. Aquela moça seria uma tua permanente inimiga e com toda razão. Vai, Almira procurar outro. Há tanto moço bom por ai. Sabemos que deseja te casar e já deves estar enjoada de viver com esses dois velhos dentro de casa, mas poderás ter mais um pouco de paciência.
            - Não é nada disso. Onde poderia estar melhor do que na companhia de meus pais. Inclusive, se fosse possível me casaria e os dois iriam morar comigo.
Não sabemos quem é aquela moça. Pode ser que não tenha nada com o Abreu e esteja conjeturando coisas inexistentes. Se não me casar desta vez, será a última tentativa.
            - Está certo, vou falar com o senhor Abreu.
Era uma missão delicada, mas não poderia deixar de proteger a filha, que considera uma situação perigosa. E botou-se a fazenda do Abreu. Feitos os comprimentos, sem outro assunto, foi direto ao problema.
            - Sei que há um certo relacionamento do senhor com a minha filha. Foi ela própria que se declarou. No entanto, estamos apreensivos por não conhecermos quem na realidade é o senhor. Não se sabe de onde procede e, além disso, tem em sua companhia uma moça e um menino. Seu retraimento e sua conduta não permitiram até hoje que se decifrassem certos aspectos de sua vida. Desculpa-me essa interferência, mas tenho que zelar minha filha.
            - É. Em parte, nossa vida aqui é um segredo e justificável. Essa moça que mora comigo é nada mais, nada mesmo, que minha irmã. O menino é um filhinho dela. O pai do garotinho morreu, ou antes, foi liquidado. Tive que lhe cobrar o que havia feito com minha irmã, aliás, irmã única. Enganou-a e desprezou-a, zombando ainda de nossa tentativa para uma reparação. Deixei meus estudos na faculdade de odontologia e liquidei-o. Fui processado e absolvido. O povo de minha terra foi consciente. Não quis ficar por lá e vim parar aqui onde tenho sido bem acolhido. Minha irmã mesma aconselhou-me ao casamento. Sabe como é. Não havia motivos para declarar essas coisas. Conto ao senhor nesta hora porque amo a sua filha e desejo me casar com ela. Em todo caso, não quero contrariá-los. Talvez me considerem um criminoso e então me ausentarei de tudo. É um segredo de família e gostaria que o senhor o guardasse.
            - Não. Creio que não deverá ser assim. A sociedade precisa conhecê-los. O senhor cometeu um ato digno e não tem porque tanta reserva. Olhe, a impressão que se tinha era de que sua irmã era sua companheira, apenas e, por isso, ela estava pagando um preço muito alto. Isolada, sem amigas, deve sofrer muito por isto. Não tenho mais restrições a seu respeito. O casamento, agora, dependendo apenas do senhor e de Almira. Admiro sua modéstia e de sua irmã. O que aconteceu a ela poderia acontecer a qualquer uma. Vou fazer questão, de apresentá-los a sociedade. E para iniciar, exijo que vá o mais breve possível à nossa casa. Não há porque esconder, também, o seu ato de nobreza, acabando com um cafajeste. Se todos fizessem assim, seria muito menor o número das moças enganadas e nem tantas estariam nos lupanares sofrendo horrores. Meus parabéns. Pelo seu gesto de hombridade. Quero conhecer de perto sua irmã. Por favor, chame-a até aqui.
            - Margarida. Vem cá, Margarida. O senhor Pereira faz questão de te conhecer.
            Era uma jovem simpática, mas com um ar discreto de quem sofria ou havia muito sofrido.
            - Pelo que sei, parece que seremos em breve uma só família. O Abreu tenciona casar-se com minha filha Almira.
            - Ah! Tem desejado muito esta união. Sacrifiquei até hoje a vida do meu irmão. Sei que ele já me perdoou, mas guardo esse sentimento. Foi muito duro tudo quando aconteceu; mas ele precisa de uma reparação.
            - Ora dona Margarida, de hoje por diante, vamos esquecer todo esse passado infortúnio. São esquinas da vida. Hoje à noite os estamos esperando, sem qualquer cerimônia. Nossa casa será sua também. E não deixe de levar o garotinho. Iram adorá-lo. Sei que minha filha vai ser daqui a pouco a criatura mais feliz deste mundo. Ela parece-me adorar seu irmão.
            E a noite lá estavam para o jantar. Margarida já apresentava um semblante de moça feliz. Estava saindo da clausura em que vivia e que só lhe servia para aguçar-lhe as recordações. Mutismo é uma espécie de doença crônica. Vai corroendo as pessoas aos poucos.
            Dona Altina a recebeu com um carinho especial. Apesar do recolhimento em que vivia. Margarida mostrava excepcional bom gosto no vestir e se apresentar. Estava-se vendo que era uma moça de fino trato. Lá já sabiam de sua história, do seu amor infeliz. E Margarida fez questão de apresentar o filho, o seu adorado filho.
            Dois meses depois o padre Querino celebrava o casamento. Antes disso, porém, Margarida já havia acertado. O irmão iria morar na cidade e ela continuaria na fazenda com a companhia da preta generosa que a criara, por assim dizer. Cada um tinha seus hábitos, sua maneira de querer as coisas e de viver. Embora o novo casal se opusesse, não houve outra solução. Era tão pertinho. Estariam se vendo a todos os momentos. E gostava imensamente daquela vida de fazenda. O gado, as galinhas, as suas plantas do jardim. E os pássaros que cantavam nas árvores do pátio.
            A vida transcorria calma e mais afetuosa. Visitas, novas amizades e atenções. Tudo havia mudado.
            Abreu preocupava-se com a irmã, tanto quanto com sua casa. Ou mais ainda. Mas teve uma surpresa de cair das nuvens. Margarida contou-lhe um segredo. Estava pretendendo casar-se. Já havia sido consultada. No entanto, dependeria exclusivamente do irmão.
            - Já teve uma dura experiência, minha irmã. Outra seria de mais.
            - Creio que desta vez, não. Conheces bem a pessoa. É viúvo sem filhos. Parece-me um homem digno.
            - Estou ansiosa para saber quem será o felizardo.
            - Sei, sei. É o Carvalho. Antonio Carvalho, comerciante e dono da loja “Os Tecidos”. Que achas?
            - Pelo menos me parece uma pessoa responsável. Tenho-o em conta de boa gente. E será que ele conhece a sua história e a minha?
            - E quem já não sabe de tudo. Mesmo assim, já lhe narrei tudo. Disse-me não se interessa pelas coisas do passado. Também não se interessara pelos meus bens. Se não era rico, era, no entanto, afortunado. Tinha de sobra para uma vida tranqüila e o que lhe estava faltando era somente uma dona de casa.
            - E o teu filho.
            - Disse-me que era o complemento de sua vida. Adorava crianças e teve a má sorte de não os ter.
            - Dize a ele que fale comigo. Faço às vezes de teu pai... És independente, mas não posso deixar de seguir-te.
            - Ah! E o que seria de mim sem tua presença e teu amparo, sem pai, sem mãe, és tudo para mim, - pai, mãe, irmão, amigo e protetor.
            Antonio Carvalho não perdeu tempo. Foi à casa de Abreu já para fazer-lhe o pedido.
            - Por que o amigo não procurou outra moça. Sabe que minha irmã tem um filhinho. Filho de uma desventura sua. Isto que foi segredo por muito tempo já não é mais hoje e isto me valeu duras penas.
            - Sei de tudo, sem faltar uma vírgula. Em minha situação de viúvo e já provado na vida, ninguém poderia se ajustar melhor ao meu temperamento e a minha condição, do que dona Margarida. Não vivo mais de certas fantasias. Acho que sua irmã é exemplo de dignidade e tenho certeza que serei imensamente feliz com ela. Espero que ela também o seja. Minha conduta creio, que é por demais conhecida. Sou uma criatura modesta, de vida simples. O que me constrange é a solidão em que vivo. E não é justo continuar assim. Tinha porem que escolher, ou melhor, encontrar a criatura que fosse capaz de compreender-me e a quem eu pudesse confiar plenamente. Por isto, aqui estou para pedir-lhe a dona Margarida em casamento. Quero que ponha a parte nossa relação de amizade. Não olhe para mim, mas unicamente para sua irmã. Caso tenha qualquer dúvida, só me responda depois. Não ficarei magoado, com uma negativa. Estou autorizado por dona Margarida a fazer-lhe a comunicação e o pedido. Todavia é natural que a consulte.
            - Por mim, o senhor é de minha confiança e estima. Só não quero é que se repita o que já aconteceu comigo, embora tenha a convicção de que minha irmã fez uma boa escolha.
            Margarida entendeu as precauções do irmão. Considerou, entretanto, que não seria possível que lhe acontecesse uma segunda desgraça. Confiava em Deus que não seria novamente castigada. E casou-se. E a vida lhe sorriu para sempre.
             É por isso que não se deve desesperar.  Força do destino. Ninguém foge dele.
             Deus já deixou tudo determinado. Logo... Não adianta estrebuchar. Há hora para nascer, hora para morrer. Deve-se por isso aproveitar a vida, rindo e cantando quando se possa.
             Margarida se houvesse se casado quando foi enganada, iria sofrer a vida toda. Sofreu e fez sofrer, mas estava lhe reservado um futuro feliz. Antes tarde do que nunca.

Em 02.05.85.

*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo