quinta-feira, 28 de junho de 2012

MULATA DOIDA



MULATA DOIDA*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)


Mulata, quase negra, Agripina era uma espécie de demônio, da cidadezinha sertaneja de Capoeiras. As famílias se arrepiavam quando ela atravessava as ruas gingando o corpo e mostrando os dentes alvos e regulares implantados numa boca cheia de luxuria e beleza. Os olhos esverdeados e um tanto amendoados, pareciam querer hipnotizar quem olhasse para ela. A Mulata Doida, de seios pequenos e pontiagudos querendo furar a cambraia da blusa, ameaçavam a tranqüilidade dos lares. Era como se a tentação estivesse dentro e fora dela, balançando-se numa rede de varandas. Endoidecia quem a visse ou pensasse no desespero daquele corpo sem um defeito. Todas as mulheres, casadas ou solteiras trincavam os dentes com vontade de triturá-la, mas tudo era em vão, por que a Mulata Doida, cada vez se exibia e mais atraia. Tinha feitiço no corpo e nos gestos, e depois dos volteados que dava poderia ir para casa, tirar a roupa, deitar-se na cama e esperar. E possuía uma especialidade. Não recebia malandros e cafajestes.
Sua clientela tinha que ser selecionada, limpa e endinheirada. A mulata não se trocava por amor. Era justamente o que não lhe interessava. Amor para ela não passava de uma mentira. Sentia prazer nos encontros, mas por solicitação e estremecimentos do próprio corpo.
E sabia que a procuravam só para isso. Havia sido infeliz e frustrada a primeira vez, quando pensava que paixão e desejo era amor. Comprazia-se com os seus devaneios de ser uma mulher bonita, atraente e desejada. Era sua grande vaidade.
Vezes e mais vezes encontrara quem a quisesse só para ele, mas não se prenderia a ninguém. Porque iria dar prazer a um só. Quando era admirada e ambicionada por todos. Se Deus lhe havia presenteado com tantos atrativos, não se justificaria satisfazer apenas a um.
Que diabo, não era egoísta e nem desejava que sofressem por sua causa. Nada disso. Todos teriam o mesmo direito de sentir o seu calor, de adormecer nos seus braços, contanto que lhe dessem carinho e dinheiro para manter sua beleza quase selvagem. Mas tinha uma particularidade. O último que chegasse teria que amanhecer o dia com ela, para fazer-lhe companhia.
Teria que avisar-lhe de véspera. E deste não recebia nada. Mas a Mulata Doida, como a chamavam, um belo dia desaparecera; sem deixar sinais de seu destino.
- Deveria, - diziam, - ter fugido com alguém por quem houvesse se apaixonado e todos comentavam não ter sido com um deles. Haviam perdido a coisa mais louca deste mundo nos amores.
As mulheres correram á igreja para render graças ao céu. Não havia sido melhor por não ter morrido, a danada faminta de homens. Os comentários enchiam a cidade, e pelo que se via não havia escapado ninguém. Todos, um por um, da melhor sociedade, haviam conhecido a Mulata Doida e não se cansava em dizer que era ela uma mulata azougada e infernal. Comportava-se sempre como se fosse uma virgem insaciável. E também ninguém conhecia um corpo de mulher mais perfeito, nem uns olhos e uma boca e uns seios mais sensuais. Deveria ter em um cada um uma mistura de anjo e demônio.
Após alguns dias certificou-se que a mulata doida havia saído sozinha. Pelo menos não faltava ninguém na cidadezinha de Capoeiras. Fora bom assim, pois, pelo menos não causava inveja. Nem dor de corno. Capoeiras voltou á sua antiga tranqüilidade, só com uma diferença, as mulheres exultantes e os homens sentido sua falta. Também ninguém se lamentava do dinheiro que haviam gasto, das puxadas que a mulata doida dava. Ninguém pagava suficientemente uns momentos com ela.
O que era para estranhar é que a casa ficara fechada sem haver ao menos sido entregue a alguém. A descoberta desse fato começou a gerar esperanças. Mulata doida deveria voltar, pelo menos para alugar ou vendê-la. Era a opinião dos mais otimistas. A cidade estava como se houvesse perdido toda sua graça, no reinado dos homens. Os maridos olhavam e examinavam as mulheres que tinham em casa e riam ás escondidas.
Que diferença absurda entre Mulata Doida e aquela pamonha de duas palhas que tinha em casa. Não dava mais nem para olhar. E por que o criador não enchera o mundo de Mulatas Doidas, ou então não houvesse feito nenhuma.
Afinal de contas lá se foram dois longos meses, quando um dos saudosistas percebera as janelas da casa abertas. O aviso correu pela cidade como uma rajada de vento. E todos queriam se certificar. É, estavam escancaradas, mas nem sinal de Mulata Doida. Mas um sujeito mal encarado botou a cara de fora. Fizeram-lhe perguntas.
- Não sei de nada. Estou aqui com procuração para vender a casa.
- E não conhece a dona?
Conheço, conheço, mas o que querem dela. Poderei resolver qualquer coisa que ela tenha deixado de dividas por aqui.
- E, sabe por que se foi embora?
- É muito simples. Diz que estava enjoada do povo daqui. Nunca tinha visto gente tão tola e já havia arrebanhado o dinheiro que queria. Os homens ao que parecia, nunca haviam visto mulher. A adularam tanto que não suportava mais.
- E o que está fazendo agora?
- Vivendo tranquilamente em sua casa, esbanjando dinheiro que levou dos bobocas desta cidade. Não se cansa de repetir essas coisas. E não esconde que até o vigário a quem visitou algumas vezes, soltou-lhe um dinheirão. Queira, alias que ela fosse ser sua arrumadeira... Um espertalhão... Só lamenta uma coisa. Ter espalhado a intranqüilidade entre as famílias. Em todo caso divertia-se com isso. Não gostava de ninguém, mas adorava dinheiro. Não recebe mais ninguém. Abriu uma pequena loja, uma espécie de armarinho. Fala em se casar. Ninguém sabe do passado. Eu e ela guardamos absoluto segredo.
- E o senhor o que é pra ela?
- Um amigo desde a infância. Somente isto, e pessoa da confiança dela.
- Mas... Onde ela mora?
- Já disse, não sei, é outro segredo. Alguém poderia interferir em sua vida. E lá, ela é uma moça honesta que não deseja mais oferecer-se por dinheiro. Até no vestir e no andar já mudou. Toma conta de seus negócios e jamais pensei que se pudesse reunir tanto dinheiro com um corpo só. Foi de muitos homens, mas agora pretende ser somente de um e por amor. A Mariana é um prodígio de mulher. Diz sempre que se chegasse a ficar novamente pobre voltaria aqui para refazer a bolsa.
- Pois é. Deus queira que isto aconteça. E pode dizer-lhe que se voltar esvaziará até a bolsa do padre Constantino.

Em, 29/07/1986
 *Este conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.

DR. DEODATO



Dr. Deodato

João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

            Depois de longos anos de espera, finalmente Deodato entrou em casa com o diploma na mão. Embora tivesse sido reprovado dois anos, mesmo assim foi recebido festivamente. A fazenda do coronel Pereira, encheu-se de convidados. Naqueles tempos não era fácil formar um filho. Mandá-lo para Pernambuco, Escola de Agronomia de Tapera, cortando léguas de sertão a cavalo e viajando de trem. Mesmo assim, o coronel Pereira enfrentou o problema, contanto que tivesse a satisfação de ter um filho doutor. Pois ali estava Deodato, formadinho da silva, para alegria do coronel.
            Mas a festa já não terminou bem. Na hora propícia, o vigário da freguesia fez uma saudação a Deodato e elogios à família Pereira. Ao concluir Deodato não se manifestou. Sentado estava, sentado ficou. O coronel Pereira lembrou ao filho que fizesse o agradecimento.
            O bicho ficou vermelho, tremendo as bochechas, mas teve que levantar-se. Tentou dizer alguma coisa, mas as palavras não saíram. Por fim, gaguejou quatro besteiras e sentou-se apavorado. Coronel Pereira teve que levantar-se para agradecer e justificar que o menino estava emocionado. Lá por dentro, entretanto, fervia-lhe a vontade de dar-lhe uma boa sova. Depois da recepção.
            - “Perdi meu dinheiro e todos os sacrifícios que fiz. Mas isto não vai ficar assim”. Pedia a Deus que os convidados se retirassem. Precisava ajustar contas com o cavalocípede. A final, todos saíram. Já era à tardinha, o sol procurando lugar para se esconder.
            - Vem cá Deodato. Dize-me uma coisa. O que diabo foi que aprendestes. Como é que nos fazes uma vergonha daquela. Abristes a boca só para dizer quatro asneiras e isso mesmo gaguejada. O que foi que aprendestes.
            - Ora, papai, não tenho vocação para oratória.
            - É preciso ser orador, seu eletro-burro, para fazer um simples agradecimento. Pois olha, teu pai nem concluiu o curso primário, mas não se engasgou. O que fizestes do dinheiro que te mandava. Onde estão os teus livros. Quero vê-lo. E foi aí que Deodato assombrou-se. Vamos ver tuas malas.
            - Deixe que eu vou busca-las, pai.
            - Não, vou contigo.
            De agronomia, só existia mesmo um livro velho – Agricultura Geral – escrito em Portugal. O resto era romances safados, até com retratos de mulheres nuas.
            - Olha aí o que foi que aprendestes. Safadeza, só safadezas. Mas não vai ficar assim. Quase matas a gente de vergonha. E onde estão as notas da escola, quero vê-las.
            - Ah! Pai, senhor desconfia de tudo. Estão aí.
Coronel Pereira tomou-as. As mais baixas possíveis.
- Tanto esforço que fiz para te botar nos estudos. Vendia gado, economizava para verte formado, fazendo figura. E aí está o que me saístes. Uma toupeira com um diploma. E esse anel no dedo que vale menos do que uma pata de cavalo.
- Pai, escuta pai. Não foi nada disso que o senhor pensa. Escute-me. Não tenho inteligência, não tenho memória. Sempre estudei muito. Os meus livros dei aos colegas pobres, que não podiam comprar. Esforcei-me o quanto pude, mais as coisas não ficavam em minha memória. Continuei para não dar desgosto ao senhor. Fiquei dois anos porque não conseguia aprender matemática e uma tal de mecânica. Por sorte fui aprovado nelas depois e isto mesmo colando. Passava raspando nas outras matérias. Parecia um castigo. Quando mais estudava, menos aprendia. Os colegas procuravam me ajudar. Tinham pena de mim.
Nunca consegui falar ou escrever alguma coisa que prestasse. Mas a culpa não era minha. Minha cabeça não funcionava. Era como uma rocha dura. Mas eu sei que não serei assim na vida do campo, cuidando do gado e da fazenda. Para isso tenho gosto. E poderei provar. Deixa-me trabalhar. Não me diga mais nada sobre estudos. Quando não se dá para uma coisa dá-se para outra.
- E aqueles livros indecentes?
- Não os comprei. Foram para ver se abria minha inteligência, se despertavam meu gosto pelos livros de literatura. Mas nada disso valeu. Vai queimá-los?
- Não. Passe-os para cá. Primeiro vou lê-los. Toma então conta da fazenda. Quero ver o que vai fazer. É uma oportunidade que vou de dar. Entretanto, vê lá se não vai botar tudo fora.
- Quero cuidar só do manejo da fazenda. Dos negócios cuidará o senhor. Pelo menos até que eu adquira prática.
- Muito bem. Quero que os meus amigos mudem de impressão a teu respeito. Não te esqueças que o dinheiro vale muito mais do que o que se aprende em qualquer escola. Quando se tem dinheiro, passa-se a ser tudo o mais. Inteligente, bom administrador, respeitado. Olha ai o Dr. Sabiniano. Bom orador, preparado, com livros publicados, mas, coitado, só falta pedir esmola. Não passa de um promotorzinho de interior. Quando toma emprestado, não tem como pagar. Já o padre Quaresma, burro como é; cheio de granas, já foi até deputado. Chupa o dinheiro dos beatos e está aí mandando na política e com um fazendão daquela. Tudo a força do vil metal.
O coronel Pereira começou a ler os livros, iniciando por “Uma freira em camisola”.
Amarrou-se na leitura. E comentava de si para si. É por isso que aquele corno não estudava... Mas tinha bom gosto... Deve estar formado em mulheres. Vamos para frente. Safadório... Deixa o bicho pra lá.
Deodato começou firme. Relacionou os gados, reformou os cercados, fez mais divisões, melhorou as aguadas e cuidou das pastagens. Montado a cavalo percorria os campos diariamente, com o vaqueiro. Os rebanhos de vacas e garrotes, cabras e ovelhas cresciam. Guardava forragem seca para o verão. Comprava farelo de algodão, proteinado, quando estava mais barato. Na vazante do açude e na revência, cultivava forrageira. O coronel Pereira acompanhava tudo, admirado. Poderia ter feito o mesmo, mas nem sequer lembrou-se disso. Deodato falou com o pai:
 – Temos muita forragem e o ano está sendo bom de inverno. Compre mais novilhas e mais garrotes. Lucrar-se mais.
- E quando chegar o verão, Deodato. Que irás fazer?
- Vou construir um silo, plantar milho, encher de palha e espigas, cobrir com terra e esperar a seca.
- Que invenção é esta, Deodato. Vai apodrecer tudo.
- Não, pai, aprendi na escola. Lá tinha um. A forragem fica até mais cheirosa e o gado gosta demais.
- Bem. Faze lá tuas coisas, mas não ponhas dinheiro fora.
As chuvas caíram, com certa regularidade. Os milharais começaram a espigar. Quando os grãos encheram, Deodato encheu o silo.
- Vais perder este milho. Nunca se ouviu falar nisso, Deodato.
- Deixe comigo, pai.
Quando o verão estalou e as pastagens secaram, Deodato abriu o silo. O gado comia com voracidade e o leite até aumentou.
- Olha Creusa, não perdemos o nosso dinheiro. O menino é sabido demais. Isso de não saber fazer discurso é besteira. A coisa está indo muito bem. Os gados nutridos, mais leite, mais queijo, mais bezerros.
Talvez se fosse inteligente e discursador, estivesse por aí namorando, metido na política e vivendo como vive o Dr. Sabiniano. Tomando benção às titicas...
Apenas o menino não tinha vocação para as letras. Vamos fazer outra festa, oferecer um almoço aos amigos, apresentar novamente o Deodato. Mas sem discurso. Vão ver o menino quem é.
E dezembro chegou. Em parte nenhuma do mundo existira céu mais bonito, mais azul ou mais estrelado. Quem nunca viu não tem noção do que é o Universo. O coronel Pereira e dona Creusa prepararam a festa.
- Não se toca nos rebanhos que Deodato dirige. Compram-se fora carneiros gordos e os perus estão aí fazendo roda. Queijada, vinhos do porto, boa pinga e outras bebidas.
A casa da fazenda entupiu-se de gente. Moças, rapazes, fazendeiros e gente da cidade. Deodato já não era mais aquele recém-formado com duas reprovações. Agora era o homem do campo afinado com a sua vocação. Não tinha nada que ter ido estudar. Aquela história de matemática, química, biometria, não entrava na sua cabeça. Por isso havia passado duros vexames e não havia aprendido nada.
Agora, não. Possuía sua pequena biblioteca sobre agricultura e pecuária, coisa que gosta de ler e já lhe entrava na memória como se já fizesse parte dele.
No final do almoço, o escrivão do cartório, metido a gaiato, pretendeu embaraçar novamente o Dr. Deodato. Pura perversidade. Mas o bicho tinha sangue ruim nas veias. Queria assistir o fiasco. Levantou-se e fez um discurso elogioso, referindo-se seguidamente ao Dr. Deodato, ilustre técnico.
O coronel Pereira mordia as pontas do bigode. Não sabia por que havia convidado o escrivão. – “Sujeito ordinário. Sabe que o Deodato não é para discursar. Nova decepção. Mas esse peste me paga”.
O escrivão terminou o discurso reforçando os elogios. A expectativa era geral.
Deodato levantou-se. Todos se voltaram para ele, como se vissem uma coisa estranha. O escrivão antegozava o fiasco.
- Meus amigos. Amigos diletos de meu pai e de minha família. Deodato Pereira não é o técnico de quem tanto falou o senhor escrivão, com a sua eloqüência já tão conhecida. Felizmente já quase nada me resta do curso que fiz. Havia errado os caminhos da vida. Minha vocação era bem outra, a vida do campo, onde se convive com a natureza e não com os compêndios e os gabinetes, onde se enche a mente de coisas teóricas. Sou hoje, o que deveria ser; um homem da terra, de chapéu de couro e vestido de gibão. Agradeço a presença dos senhores e os convidado para mais tarde, conhecerem o que tem feito o Deodato.
Levantaram-se para aclamar o Dr. Deodato como fazendeiro, mestre na agronomia. O senhor escrivão havia perdido o seu latim e sentia-se perdido naquele ambiente de satisfação. E todos olhavam para ele esboçando um risozinho safado.
Deodato não ficou somente aí. A filha do coronel Agrício, o maior fazendeiro da região, estava voltada para ele. Sertaneja queimada de sol, bonita de dar agonia, novinha como um bugarí que acabava de desabrochar, sorria para o Dr. Deodato, com o coração pulando escondido sob os seios, guardados pela blusa de renda. Dois diabinhos apontando sempre pra gente.
Deodato conversava com Dilene, despertando os comentários das outras moças que andavam de olho no filho do coronel Pereira.
- Não sei como Dilene pode gostar de um bicho tão sem graça.
- Ora, é uma matuta, metida na fazenda a vida toda, depois que saiu do colégio. Não vê ninguém.
Diz outra: - Vocês estão é com ciúme. É um homem simpático, firme, e bem de vida.
- Sujeitinho de cara lisa, todo bonitinho, como vocês dizem, só serve de enfeite. Para casar, não!
- Dilene está certa. Ela que não solte se não eu pego. Pelo menos tentarei.
- Quero em casa um homem e não boneco de louça.
O escrivão, desambientado tentou refazer-se. Mas ninguém o ajudou. Perdeu a graça e despediu-se. Foi o seu último discurso.
Meses mais tarde o Dr. Deodato estava casado, morando na mesma fazenda.
 O coronel Pereira relia Uma freira em Camisola, às escondidas da mulher e do filho.
Aconteceu, entretanto a confirmação do ditado – “cochilou, o cachimbo cai”. Adormeceu com o livro na mão. Dona Creusa, inesperadamente, leu o título do livro. Acordou o marido.
- Que livro é este com título tão esquisito, Pereira.
- Aí, mulher é a historia de uma freira que não tinha vocação para a vida religiosa, como aconteceu com o Deodato.
- Então quero ler também.
- Depois.
E o livro nunca mais apareceu.
- E o livro, Pereira?
- Não gostei e pus fora.
- Pereira!... Tu também erras. Tens vocação? Eu já li também.

*Este conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.



quarta-feira, 27 de junho de 2012

CATOLÉ


CATOLÉ*

João Henriques da silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)


            Cidade pequena do interior, enfiada lá nos confins do sertão. Vida tranqüila, quase doméstica. Todos se conheciam e se ajudavam naturalmente.
            Quando alguém chegava de fora para se instalar em Catolé, botavam-se os olhos em cima. Gente de mau comportamento ficava isolada e findava desertando. Começava logo pelo comércio que se recusava a vender, mesmo a dinheiro vivo.
             – “Não. Não temos”.
            Mas certo dia chegou Pantaleão com a mulher e duas filhas moças, morenas dessas de sopapo. Bonitas de rosto e belas de corpo. Foi um impacto na cidadezinha. Ninguém sabia quem era Pantaleão, de onde tinha vindo e o que pretendia fazer. Também não sabiam se era algum cabra valente, vindo lá das bandas do Piancó, onde só se tinha medo das secas. Pantaleão instalou-se numa ponta de rua, em casa alugada com uma porta e duas janelas de frente.
            Bom de conversa, não perdia missa aos domingos e dava esmola a quem pedisse. Não tinha ocupação e nem dizia o que pretendia fazer. A curiosidade era geral, sobretudo pela a atração das duas meninas, que iam e vinham sem dar a menor confiança a quem botava os olhos em cima delas.
            Os comentários era o prato do dia, mas tudo a boca pequena.
            A figura de Pantaleão imprimia respeito. Alto, fornido de corpo sem ser gordo, fisionomia de cabra macho. A rapaziada vivia intrigada com a esquisitice das duas moças. Passavam como se caminhassem num deserto humano. Estudavam um meio de quebrar a resistência das meninas. Chegaram até a instituir prêmios para quem se aproximasse primeiro das duas intocáveis filhinhas do papai Pantaleão.
            Mal sabiam que era uma atitude calculada com a finalidade de chamar a atenção, de tornarem-se mais facilmente conhecidas.
            Pantaleão, por sua fez, estudava o ambiente comercial ou a possibilidade de adquirir uma fazenda nos arredores da cidade. Instalara-se em uma casa modesta muito de propósito.
            Não tinha pressa em revelar-se. Aumentavam as expectativas com aquela família esquisitona. Não tinham ocupação e viviam tranquilamente, sem demonstrar preocupação. Até o vigário e o delegado tomavam posição. Padre Néco ansiava para que alguém da família fosse se confessar, numa tentativa de colher alguma dica. O delegado procurava intimidade com Pantaleão, fazia-se de muito cordial, mas o mistério continuava.
             – “Este Pantaleão deve ter vindo de muito longe e quem sabe, um homem perigoso, algum brabão que vinha se ocultar em Catolé”.
            O diabo é que a conduta da família era irrepreensível.
            Certo dia lá estava os três Pantaleão na fila do confessionário.
            Padre Néco ficou irradiante. Seria o primeiro a desvendar o mistério. Iria empregar todo o poder de suas artimanhas. Uma ou outra teria que se descobrir.
            - Vai agora, menina. Serei a última.
            Cinira ajoelhou-se. Padre Néco esfriou – esfregava as mãos antegozando a vitória. Iniciou a confissão meio embaraçado. Cinira depois da reza recomendada contou algumas coisas banais. Nada cheirava a pecado.
- Minha filha, você é quase uma santa. Não esta me ocultando alguma coisa?
- Graças a Deus, não, seu vigário.
- Gostaria de saber donde você veio. Toda a cidade deseja saber, conhecer uma família tão admirada quanto a sua.
- O senhor faça o favor de perguntar a papai.
E levantou-se. Depois da Salete, ajoelhou-se dona Cristina. Desta vez não falharia. Desse no que desse. Não tinha podido puxar pelas meninas, mas dona Cristina, católica fervorosa, daria maior atenção ao vigário. Depois da penitencia – apenas rezar um terço, levantou-se antes que o padre tivesse tempo de abrir o bico. Desapontado, ouviu a pecadora seguinte. Por sorte do diabo, trazia uma boa carga de pecados, algumas de arrepiar os cabelos. Padre Néco, embora já estivesse habituado a saber da vida íntima dos outros, ficou escandalizado.
- Você fez tudo isso, filha?
- Não, seu vigário, contei somente uma parte. Deixei o resto para depois. A penitencia ficaria menos pesada...
- Assim, não poderei perdoá-la.
- Então vamos deixar tudo para a próxima vez.
Padre Néco interessado como estava em ouvir o resto, ficou decepcionado.
- Hoje não é meu bom dia. Estou de má sorte. – “Pergunte a papai”... Menina malcriada. E é pena. Tão bonita que é. Também não se sabe quem é. Chegaram sós e só para confundir todo mundo. Não se fala noutra coisa. Pantaleão pra cá, Pantaleão pra lá e ninguém desvenda o mistério. Eu mesmo fracassei redondamente.
Quando menos se esperava, correu a notícia. Seu Pantaleão comprou a fazenda do coronel Jacinto. A maior das redondezas. Á vista e de porteira fechada. E também de surpresa, comprara uma das casas melhores da cidade. Foi um alvoroço. O homem botava as unhas de fora. Ninguém o chamava mais de Pantaleão. Agora era Coronel Pantaleão Pereira.
Os políticos se assanharam.
- Vai tomar conta de tudo. Teremos que nos resguardar. Vamos ver que partido vai tomar. O bicho é manhoso e já deve ter escolhido. Está aqui esse tempo todo, só observando as coisas. Ainda hoje não se sabe quem é e nem de onde veio. Só se sabe verdadeiramente é que as filhas são as moças mais bonitas da cidade. Mais tarde vieram, a saber, que eram ambas, professoras formadas em colégio da capital. E meses mais tarde correu a notícia. O coronel Pantaleão era mesmo coronel reformado da policia de um estado vizinho. O sargento delegado foi logo render homenagem.
 Casado com moça rica, queria passar o resto de sua vida longe do cotidiano de tantos anos de profissão. As filhas iriam estranhar, mas terminariam se acomodando no sertão que, aliás, tinham um imenso desejo de conhecer. E estavam gostando. Ambiente social e clima diferente. Deliciavam-se com o desapontamento da rapaziada. Toda aquela encenação havia sido preparada para despertar curiosidade e dar tampo as sondagens que o coronel Pantaleão queria fazer.
Inesperadamente o coronel recebe duas visitas. Nada mais, nada menos do que os dois namorados das meninas. E noivaram ambas, mas com uma condição. Casar e morar em Catolé. Ali havia campo para um médico e um dentista. Voltaria para o padre Néco dar-lhes um banho de água benta e com algumas palavras latinas concedendo licença para morarem juntas.
Pantaleão trazia progresso para Catolé e conquistava a admiração dos catoleenses. Pretenderam envolve-lo na política. Ótimo candidato para prefeito ou deputado estadual.
- Escolhi Catolé para descansar de tantos anos de trabalhos e preocupações. Colaboraria com o partido do governo de quem sempre recebera atenção. Não tinha porque mudar. Caso contrário manter-se-ia politicamente neutro.
A fazenda “Aroeiras” tornava-se um modelo na região. Renovou-se o rebanho e tornava-se um ponto de atração.
As eleições aproximavam-se, apelaram para o padre Néco falar com o coronel Pantaleão a aceitar pelo menos a prefeitura.
- Não padre Néco. Esses cargos devem ser reservados aos homens da terra. Aqueles que fizeram o seu progresso e deram à cidade essa tranqüilidade que se vê.
Darei minha contribuição e tudo farei para que Catolé continue assim tranqüila e acolhedora.
- Mas, coronel, o povo exige.
            - Bem, vamos deixar para o futuro, embora sem compromissos.
            - O senhor será um excelente candidato. Tem o meu voto.
            - Leve aos amigos o meu abraço de agradecimentos e de confiança. Desejamos ser amigos de todos. Viemos aqui para isso.
            Casaram-se as filhas do coronel. A festa foi o maior atrativo de Catolé.
            Foram instalados consultórios e uma escola para os genros e filhas do coronel Pantaleão.
            Um desses terríveis rebentões secos castigava os sertões. Surgiram, então, os grupos de cangaceiros que assaltavam fazendas e pequenas cidades.
            A notícia correu em Catolé. Um grupo de bandidos rondava a cidade. O susto e o medo causavam pânico.
            A população não sabia bem o que fazer. Nas fazendas a segurança era ainda menor.
            Desta feita o coronel Pantaleão, tomou a iniciativa de proteger a cidade. Traçou os planos. Quem possuía armas e munição que se apresentasse. Formaram piquetes em todas as entradas com o maior sigilo.
            - Vamos prender ou dar fim aos cabras. Vamos deixá-los entrar na cidade para encurralá-los. Em seguida faz-se o serviço. O grupo, dizem que é perigosíssimo comandado por um cabra atrevido e valente. Mas deixem comigo. Tira-se o chefe logo na pontaria.
            Em várias casas e em pontos estratégicos, ficava um atirador. Foi colocado gente para avisar a aproximação. Roceiros, gente do povo, desarmados para não causar suspeita.
            O aviso chegou. Lamparina estava bem próximo. Atacava em pleno dia. Além dos saques, abusavam de moças e casadas. E aí de quem se metesse. A última notícia informava: onze cabras bem armados. E o delegado com as suas praças, entrincheirados bem no centro comercial, de um lado e de outro da rua. O primeiro tiro seria o sinal. E era para derrubar Lamparina logo. O preto entrou como se estivesse entrando em casa. Nenhum sinal de reação. O comércio e as casas de família todas de portas fechadas. Isso não tinha importância.Todos dormiam.           
            – “Esta cambada vai ver quem é Lamparina”.
            Preparava o grupo para os assaltos quando caiu com uma bala de rifle na caixa dos peitos. O tiroteio começou e para onde corriam o rifle ia derrubando. Ninguém teve tempo de entregar-se. O grupo foi dizimado. A policia juntou os corpos; mandou abrir uma cova e atirou-os dentro. O preto Lamparina trazia uma lista e orientação. Cada cabra teria direito a duas mulheres e metade dos assaltos. Era o incentivo.
            A notícia correu mundo.
            Em Catolé a população com a policia liquidou o grupo de Lamparina, o terror daquela zona. O governo mandou um tenente saber como foi. Quem planejou a defesa da cidade. Precisava dar-lhe um premio. O tenente voltou com as informações. O cabeça de tudo foi o coronel Pantaleão Pereira. Recusou qualquer premio. Cumprira apenas com seu dever de cidadão. Todos colaboraram. Foi a cidade que se defendeu.
            O governo convidou o coronel Pantaleão para ir ao Palácio. Desejava conhece-lo pessoalmente. Mandou-lhe transporte. E o coronel compareceu. O governador ofereceu-lhe o comando da Policia Militar Estadual. Agradeceu. Estava pronto a servir, mas sem novos encargos.

*Este conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.




A SORTE DE CRISALINA



A SORTE DE CRISALINA*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

            Crisalina, casada, morena, bem bonitona e atraente, era uma criatura de muita sorte. Mas o casal, apesar de não ter filhos, vivia num regime de rígida economia. Pasqualino não queria dever a ninguém e sua profissão de vendedor ambulante não lhe rendia com sobras.
Crisalina era dessas pessoas comunicativas e sempre tinha amigas a visitar. Pasqualino saía e logo depois do arranjo da casa, trocava de roupa, perfumava-se com um pouquinho de água de colônia das mais baratas e saía também. E como era bem dotada de sorte, sempre achava, um anelzinho, uma pulseira, um brinco, e ás vezes, dinheiro. A princípio, Pasqualino aceitava aquela boa sorte. - É, havia mesmo pessoas assim. Vai saindo e vai logo achando qualquer coisa.
Crisalina passava semana inteira sem encontrar nada. Noutras semanas o astral lhe era benéfico e foi não foi, mostrava a Pasqualino o objeto achado. Não fazia mistério e mostrando teria a confiança do marido.
Mais a coisa não parava e Pasqualino andava de orelha em pé. Crisalina esta com sorte de mais.
Iria observar a coisa mais de perto. Isso até lhe doía na consciência, pois Crisalina era da maior seriedade e confiança. Poderia estar cometendo uma grande injustiça. Mudou, assim, de idéia. Suspeitar de sua mulher, tão carinhosa, tão boa, tão honesta, era um grande absurdo. Arrependeu-se do mau pensamento e quase lhe confessava e pedia desculpa. Pois não era. Como se atrevia a fazer tal julgamento de sua santinha. Por certo estava ficando com a moleira mole. Talvez cansaço, aperreio devido a qualquer coisa anormal. Coisa que pode acontecer com qualquer vivente deste planeta.
Depois de um duro dia de jornada, voltou à casa estremunhado. O jeito era arranjar outra atividade, pois desejava dar mais conforto a sua fiel Crisalina. E falou com ela a este respeito.
- Não meu filho, não te mate tanto e nem te preocupes com tua mulherzinha. Temos onde morar e não nos falta comida. Está tudo ótimo. E olha aqui o que achei hoje. Este reloginho. No meio da rua, meu querido. Essa gente não cuida do que possui. Quase pisava bem em cima. Chega tomei um susto. Como já tenho um pode-se vender um dos dois. O mais velho.
- O meu não, este não. Foi presente teu.
- Mas que cabeça esta minha.
- Deste não me desfaço nunca. Perdoa-me.
Pasqualino voltou a desconfiar. Já andava com medo de tanta sorte. E não teve outro jeito senão comentar o negócio.
- Mas Crisalina, que tanta sorte é esta tua. Se passares o dia andando por aí, nem precisaremos trabalhar. Vivia-se só dos teus achados. Que diabo, eu ando o dia inteiro e não acho nada. Que sorte exagerada é esta tua?
Crisalina percebera que a coisa estava entortando. Não adiantava justificativas bobas. Poderia até se perder, cair em contradição. O meio era endurecer e falar sério, recriminar o marido e se possível e necessário, até ameaçá-lo pela falta de confiança.
- Não tenho culpa de ter sorte. Estás ouvindo! Andas pela rua de cara para cima, certamente de olho nas mulheres que vão passando. É isto certamente que andas fazendo. De olho nas mulatas e sem olhar para o chão não se pode achar nada, absolutamente nada!!!
Será que chegas a desconfiar de minha fidelidade. Já percebestes alguma diferença quando estás comigo. Duvido. Sou uma mulher escrava dos meus deveres conjugais, mas se queres, não sairei mais de casa e o que encontrar, lá mesmo deixarei!
- Não é nada disto, mulher. Apenas fico impressionado com tanta sorte. Confiança? Tenho demais em ti. Como chegas a pensar em certas coisas. Não ando de olho em ninguém. Meus pensamentos, meu trabalho, minhas lutas são exclusivamente teus. Mas parece-me um milagre andares achando tanto.
- Acho porque procuro, olho para o chão, onde se encontram as coisas perdidas. De cara para cima é que não se encontra nada. Leva-se é topada.
- Está bem, neguinha, basta, basta.
A desconfiança desta feita ficou. Pasqualino entendia que algo estava errado. Não era comum tanta sorte. E levou três semanas com atenção. Não tirava os olhos dos lugares por onde passava. Achava nada. Nem brinco, nem anel, nem pulseira e muito menos relógio. O meio que a consciência lhe sugeria era seguir, espreitar Crisalina. Achava uma coisa meio ridícula, mas não era fácil escapar daquela maldita suspeita. E então, foi para o trabalho e não foi. Crisalina apareceu á porta da saída. Estava tão bonita, tão graciosa que Pasqualino quase desiste. Tinha a impressão que nunca havia visto tão atraente. Crisalina deu um retoque nos cabelos com as mãos perfumadas e saiu. Andava, olhando ao longe como quem procurava alguém que não era brinco nem relógio. Entrou numa casa cuja porta já estava entreaberta. E sumiu. Pasqualino, disfarçadamente, sondou de quem era. Era a moradia de uma velha que não se sabia bem de que vivia. Falavam que deitava cartas e fazia predições. Mesmo assim era tida como uma casa suspeita. Pasqualino colocou-se numa posição que poderia perceber quem saia ou entrava pela frente e pelos fundos. E depois de muito e muito tempo, a velha cartomante chegou á janela, pesquisou o tempo e a rua e entrou. Ao mesmo tempo um sujeito saia pela porta de traz. Mais alguns minutos Crisalina apareceu á porta, sondou o ambiente e saiu. Num passinho leve e ligeiro, afastou-se. Pasqualino enterrou-se dentro de si mesmo. Não tinha mais duvida de que estava sendo traído. Mas, só a hora certa voltou de seu trabalho.
- “Não saístes hoje?”
- Não para não suspeitares de mim. E não quero mais achar nada.
- Estás a mentir. Acompanhei os teus passos. Junta tuas roupas e o que possuis e some-te daqui, antes que te mate. Vai sair e não quero mais te ver. Estavas achando as coisas com a tua pouca vergonha. Descarada.
 E Pasqualino, depois, preparou-se e sumiu. Iria procurar uma mulher que não achasse as coisas....

*Este conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.

            

A VIDA É ASSIM


A VIDA É ASSIM*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

             Zé Mariano não brincava em serviço. Todos os anos aumentavam a meninada, sem se preocupar com o pirão de cada dia.
            E continuava a dizer conformado. “É a vontade de Nosso Senhor”. Quando menos esperou foi contar e já era dezoito.
            Chamou a mulher para abrir os olhos:
            - Tens que parar Josefina.
- Eu hein! A culpa é tua. Bicho. Fico no meu canto sossegada e lá vem tu com teus arrodeios. Por mim não havia passado de dois ou três. E já era demais para uma vida como é a nossa.
            -Tem nada não Josefina. Deus dá o frio conforme a roupa. Os meninos já estão trabalhando e uns vão ajudando a criar os outros. Quando todos estiverem crescidos já poderemos descançar.
            - Bem, vamos ver. Agora, tem uma coisa, não chegues perto de mim, já sabes que sou mesmo que visgo de burra-leiteira... Botou o pé, pegou.
            - Sei não, Josefina. Sabes como é. Quanto mais à gente jejua mais dar fome. Quando as coisas têm que acontecer, acontecem.
             Repara só. O patrão, rico como um danado, com dinheiro sobrando, os depósitos apinhados de comida, só tem dois filhos. Deus quer assim e acabou-se. Às vezes eu fico pensando mulher, que isso é de propósito. Pobre tem que ter muito filho para trabalhar para eles. Quanto mais, melhor.
             Os filhos do patrão não fazem patavina. Vivem de colégio para colégio, embora não aprendam nada. Imagina que não sabem botar sela num cavalo, nem tirar uma gota de leite. Tem que ter um moleque para selar os cavalos e um vaqueiro para encher os copos de leite.
              Não sabem plantar um pé de batata, mas vivem luxando. Todos de mãos fininhas que parecem mãos de donzelas. Os nossos, as mãos parecem um ralo. Não achas que isto está tudo errado? Só ensinam a mandar.
             Desde pequenos se habituam a isso e o vício continua. Pobre é no eito, com o couro da barriga pregado nas costas.
             Larga-se o eito as doze e ao entardecer e nem se pergunta se há alguma coisa para roer. Dezoito bocas pra mastigar quase nada. E a barriga que se agüente, as tripas roendo uma as outras.
            Um dia, mulher, a gente tem que melhorar de vida. Trabalhar todo mundo. Um batalhão desses tem que render.
             Planta-se de tudo para comer e bota-se um roçado grande de algodão. Há de sobrar para se ter um pedaço bom de terra e depois gado, vacas de leite e bezerros.
             - É mesmo Zé Mariano. Quanto mais filho melhor. Família grande não atrasa ninguém.
            - Eita mulher! Agora falaste certo. Aquela conversa de ficar cada um para um canto, só olhando um pro outro é negócio pra gente besta. Às vezes a gente tem cada idéia sem pé nem cabeça...
             Quando dar aquela vontade na gente, Josefina, não há diabo que atalhe. Para quem já tem dezoito, mais um, menos um, não altera nada...
              Quanto mais bezerro maior a boiada. Vou falar com o homem para aumentar o roçado. Na meação não dar. Se não fizer arrendamento, muda-se pra outro lugar.  A gente já trabalha aqui há tanto tempo e não se fez mais do que sustentar o rebanho e comer pouco.
              - Não, Zé Mariano. Caso sai do regime de meação, todos os outros vão querer também e terei prejuízo. Algodão tem que ser assim. Tenho filhos para criar e educar.
             - Sim senhor. E eu tenho já dezoito pra comer e vestir. De leitura não conheceu nem o O, como se costuma se dizer. A escola é o cabo do freijó. O senhor não pode, não pode! Pois já combinei com a Josefina. Vamos nos mudar. É contra a nossa vontade, mas não tem outra saída.
             - Mais isso é um absurdo, Zé Mariano. Depois de sustentá-los todos esses anos no trabalho e agora, querer me deixar?
            - Coronel Gonzaga, vá lá em casa e vai ver menino por toda a parte. Tudo sem roupa, comendo farelos.
            Às vezes não se tem nem feijão macassar com farinha. Não dá mais...
             - E o seu roçado de meia, como fica?
            - Deixo aí. O senhor me dá alguma coisa se ver que eu mereço. Nós não queremos terra de graça, na meação nunca vestiremos uma camisa nova pelas festas.
            Todo mundo tem suas roupinha nova para ir às festas no fim do ano e só os meus vão de camisinhas e calças remendadas, arrastando uma alpercata roída.
             Nem posso mais ver aquilo. São pobres, mas são meus filhos. E as meninas, já quase umas mocinhas, encabuladas pelos cantos sem graça, como se estivessem doentes.
             O senhor não sabe como isso dói na gente. Nunca sobra para fazer um agrado. Vivem sempre desconfiadas no meio das outras mocinhas.
             Teremos que dar a elas e aos outros, na próxima festa, roupas e sapatos novos, mesmo que isso venha exigir todos os sacrifícios.
             Não agüentamos mais tanta tristeza no meio de tanta alegria.
            Zé Mariano despediu-se e saiu pisando firme no chão duro da vida.
            - Fica aí, Josefina, com a cambada toda e eu vou sair com os meninos mais velhos a procura de terra e um casebre para morar. O patrão não quer sair da meação quer deixar a gente pelada. Bota mais rapadura numa sacola e farinha e isto basta. A gente se arranja por aí. Os outros vão para o trabalho da fazenda; ganhar a farinha e o sal da semana.
            Zé Mariano andava e andava, de fazenda em fazenda, mas o regime não mudava. Sempre a meação que não dava camisa. Já se desenganava, quando teve uma idéia, procurar pequenos proprietários, gente mais humilde. E foi aí que pisou em cima da botija.
             Propriedade quase abandonada, com açudeco e velha roça de algodão mocó. O proprietário havia se mudado para a vila próxima, e tornara-se comerciante. Não pretendia retornar a agricultura, e já pensava em vender as terras ou arrendá-las. Pelo menos lhe daria algum rendimento e não permanecia abandonada.
            Ajustou preço e condição de pagamento. Palavra de sertanejo sempre mereceu fé. Apressou a volta e já deixou a casa varrida para meter-se dentro. Era só botar o pé no caminho, liquidar as contas com o patrão e cuidar da sua vida.
             Logo do terreiro da casa foi gritando para mulher:
            - Arruma os pinicos Josefina e vamos embora. Só se dorme aqui uma noite. Freta-se o carro de bois do compadre Fortunato e toma-se rumo.
             Vou agora mesmo à casa do patrão, acertar nossas contas.
             Com muita luta recebeu algum dinheiro pela roça de algodão. Disse pra onde ia e despediu-se. Lá estariam as ordens.
             Ao tomar conta da pequena propriedade arrendada, foi um alvoroço da meninada. Casa maior, um campo de algodão semi-abandonado mais ainda em fase produtiva.
              O açudeco, cacimba e as quatro vacas que o proprietário acertara para ficarem lá com as crias de meia e o leite a ser dividido. Duas com crias e duas amojadas. Era mesmo que ter saído de um atoleiro e entrado no céu.
              Arrumada a casa. Zé Mariano voltou-se para o trato das vacas, do algodoal e a escolha de mais terra para semear. Por traz do açude, cinco mangueiras e dois coqueiros, algumas goiabeiras.
            Com poucas semanas a propriedade parecia ter tomado um banho e trocado de roupa.
             Agora era preparar as terras e esperar as chuvas. O milho, o feijão, as sementes de jerimum e de melancia estavam bem guardadas, restavam adquirir caroço de algodão para plantar três hectares.
              A foice e a enxada cortavam mato e a terra.
              - A terra é boa, mulher. Só falta Deus ajudar, mandando chuva e boa sorte pra gente.
            O algodão teria que ser podado. Uma poda de limpeza. Facões afiados ceparam a galharia velha e envarada que, reunida foi queimada.
             Quando chegaram as trovoadas, os rebentos apareceram. E o algodoal revigorou-se com a força de uma cultura nova. Queria apenas trato. Não era possível esperar mais. As lavouras de ano saiam da terra e cresciam com vigor. Depois vieram as safras e as colheitas. Zé Mariano pagou o arrendamento. A dispensa suprida oferecia-lhe uma mesa farta. Dinheiro como nunca havia em suas mãos era um desafogo.
             Se aquilo não era um milagre, também outra coisa não poderia ser.
             - Josefina, as festas de fim de ano vêem aí. Vamos comprar roupas novas para a turma. Sapatos também e mais uma coisinha para as meninas.
              - Não se deve gastar tudo, Zé Mariano. Põe a regra na boca do saco.
            - Vai sobrar, Josefina, tem que sobrar. E mesmo que não sobre desta vez todo mundo vai se vestir e todos irão às festas como gente, fazendo figura. Fazem-se as contas da loja, do alfaiate e da costureira. E vamos cuidar nisso.
              Compraram, compraram e ainda sobrou um dinheirinho alentado. Dezembro botou a cara. Zé Mariano tinha uma idéia. Iriam passar às festas em Riacho Seco, lá de onde tinham vindo. Mostrar que miséria também se acaba.
             Não era por vaidade não, mas era uma forma de acabar com a tristeza dos anos anteriores, apagarem os vestígios daquela pobreza humilhante. Nunca poderia esquecer aquele ar desconsolado dos filhos, se escondendo para não serem vistos maltrapilhos, parecendo filhos da preguiça ou de esmoler.
            - Mas é longe, Zé Mariano.
            - Que nada, Josefina. É ali. Temos que ir. Tem que ver os nossos filhos vestidos de gente, com dinheiro no bolso comprando cocadas, doce seco, aluá e o que der na cabeça. E vai-se visitar o patrão. Ele precisa ver quem é a família de Zé Mariano e Josefina.
             Ninguém vai mais ficar se escondendo, com os olhos compridos só espiando a alegria dos outros. Vamos soltar a cambada toda lá no Riacho Seco, fazendo figura.
            - Vão chamar a atenção! Pensa só. Roupa nova, sapato novo, chapéu novo, um dinheirinho no bolso. E depois, Josefina, a turma é toda jeitosa.
             - Cuidado Zé Mariano. As meninas já estão ficando mocinhas. E tem muito cabrito enxerido para tirar chetas com as meninas.
            - E agora me lembrastes de uma coisa que faltou. Vai comprar para cada uma um enfeitizinho. Um para ti, também. Toda mulher gosta destas coisas.
            - O que, Zé Mariano?
            - Sabes mais do que eu, voltinhas, anéis, broches para cabelos, laços de fita. Tanta coisa.
            Quero tudo bem vistoso. Vá com as meninas e elas mesmas ajudam a escolher. Mesmo que sejam baratas, mas enfeitam as bichinhas. Sim, mande cortar o cabelo dos meninos. Do maior ao menor. E nos dias de festas têm que tomar banho com sabonete. Corta as unhas e vai ajeitando a cambada toda. Não te esqueça de mandar ir calçando os sapatos para amaciar...
              Bem sabes que quem nunca comeu mel quando come se lambuza. Quero todo mundo pisando firme, sem se preocupar com os pés. Quem não está habituado com calçado, tem que amaciar e aprumar os pés.
             Véspera de Natal, a família de Zé Mariano estava toda em Riacho Seco, espalhada pela casa dos parentes e amigos. Juntava-se para os festejos e passeios.
             Era preciso ver para acreditar, o espanto que causou. Tudo lorde daquele jeito. E nunca se viu uma família tão alegre. Ria a toa, como se estivesse alguém fazendo cócegas. Era a satisfação de se parecerem com gente, de poderem participar da alegria de todos.
            Nem podiam imaginar que uma roupinha nova, uns sapatos nos pés e uma voltinha no pescoço, pudessem dar tanta vida às pessoas.
             No dia de Natal lá se foram visitar o antigo patrão. Zé Mariano bate na porta e o coronel foi chegando. E espantou-se. Não poderia ser a família de Zé Mariano, naquela lordeza.
             - Viemos fazer uma visita ao senhor.
            - Que maravilha Zé Mariano. Arrancou botija?
             Bem sabia que não saíram daqui sem ter sonhado com botija. E pelo que vejo, foi muito ouro e muita prata.
            - Foi sim senhor. Botija de ouro branco, meu roçado de algodão. Propriedade arrendada e a turma toda trabalhando. Bem que o senhor podia ter me arrendado uma roça maior. Preferiu que a gente fosse embora, findou nos dando sorte. Para o ano já pensamos em comprar uma terrinha e morar no que é dá gente.
             Basta que Nosso Senhor mande chuva. Se estivesse na meação, estaria tudo de pé no chão e com a barriga roncando.
            - Cuidado, Zé Mariano. Isto pode durar pouco.
            - Com as graças de Deus, não. Só queremos chuva e saúde. Quando precisar de Zé Mariano está às ordens. Vamos aproveitar o resto da festa, gastar mais um dinheirinho. Lá em casa a dispensa está cheia e ainda não bulimos no roçado de milho. Vamos esperar preço. A Josefina tem um terreiro de galinhas. A turma vai este ano que vem para a escola.
            Já arranjamos uma professora para ensinar à noite, lá em casa. Tem que pelo menos aprender assinar o nome. Pelo dia, na roça, à noite na escola.
            - Mais como foi esse milagre, assim de um ano para o outro?
             -Trabalhar pra gente mesmo, enquanto se tem força. No ano que vem, esperamos dobrar a safra e comprar umas vacas ou uma terrinha. O dono da terra confia na gente e é um homem até bom demais. O algodão mocó está situado e a enxada não sai de dentro.
             - Também com esse batalhão de gente...
              - É sim senhor. Mais esse mesmo batalhão vivia nu e passado fome.
             - Preguiça. Aqui não queriam fazer nada.
             - Era a meação coronel. A meação e os preços. E com vão os seus rapazes?
            - Um vai se formar, em medicina, outro em direito. Vão ser dois doutores.
             - Deus os ajude. Até outra vista coronel.
             - Tome cuidado. Luxo não enche barriga. Quem nasceu para cangalha, não pode usar cela.
            - Tem nada não. O pior é passar da cela para a cangalha. Por enquanto, a coisa vai bem. A cangalha está mais macia e a carga pesando menos...
            Três anos depois, Zé Mariano já era o dono das terras. Faltava pagar um pedaço de dinheiro, mais sem atropelo. As roças de algodão e de alimentos iam crescendo. Cavalo para montaria e carga.
            Cela, cangalha, cangalha e cela. Os meninos do coronel não se formaram. No entanto, gastavam mais. Queixavam-se das perseguições dos professores. Marcação com eles. O pai não os agüentou mais. Tirou-os da faculdade. Não sabiam fazer nada, além de ler romances pornográficos e não perdiam as festas. Dois malandros de primeira classe. Era uma má sorte. Botou-os para trabalhar na fazenda.
             Regime duro e sem apelo.
            - Mas, papai, pra que foi que botou a gente no colégio?
            - Para ser gente. Não para malandragem. Estudo não proíbe ninguém de vaquejar gado, nem cortar de foice ou arrastar enxada. Desperdiçaram o meu suor e a canseira de sua mãe.
             Quem come e veste precisa fazer alguma coisa de útil.
            Um ano depois, resolveram voltar à faculdade sob juramento de conclusão do curso. O trabalho dobrado da fazenda, os calos nas mãos e o suor molhando a camisa foram um grande remédio. E dois anos depois estavam formados, cada um cuidando de si.
            Afinal de contas os filhos do coronel deram pra gente. Também o velho deu-lhes uma boa lição. Os dois vadios estavam enganando os pais. Dois pilantras. Só agüentaram um ano na marreta. É assim que se deve fazer com essa classe de malandrecos. Só deseja boa vida e atribuírem aos mais velhos a responsabilidade de seus desmandos.
            Zé Mariano não pensava em muita leitura para os filhos. Achava que ruim mesmo era não saber assinar o nome e ler uma carta. Interessava-lhe, sim, que não fossem mais o que haviam sido. Não ter o que comer e o que vestir. Pobreza mesmo e miséria. Era isso. Nunca tinha visto burro morrer por que não era doutor. Morria quando faltava capim, quando aparecia uma doença braba, ou de velhice. A leitura podia ser muito bonita, mas também achava que coisa feia, era um doutor liso, pedindo benção às ticacas, sem um puto para fazer a feira. A terra já estava comprada e paga. Comprara também as vacas do ex-proprietário e cada filho possuía pelo menos uma cabra. Era um bom começo para quem havia saído do eito e da meação.
             A família vivia unida com se todos fossem um só. O que era de um, era de todos. Dez filhos homens e oito mulheres já exigiam uma casa maior. E a casa foi sendo ampliada. Primeiro um salão para os homens e depois mais divisões. Da propriedade, onde não era lavoura, eram pastos para os bichos. O açudeco já havia sido aumentado para guardar água para o ano todo. As cercas reformadas e enfim, uma propriedade pequena, mas, bem ajeitada e rendosa. Fazia gosto ver à hora do almoço e da ceia, o mesão contornada de gente. O rosto bonito das meninas e a musculatura da rapaziada. Era uma turma igual no comportamento, parecendo até que haviam sido tudo de uma fornada só.
            Aos domingos e dias santos apareciam visitas. Rapazes e moças das vizinhanças ou da cidade. Para Zé Mariano e Dona Zeferina, aqui já estava cheirando a namoro e a casamento. Precisavam ter cuidado. E certo dia Zé Mariano reuniu a turma para uma conversa séria.
              - Já tem aí rapazes e moças que talvez estejam pensando em namoro e casamento. Ninguém vai impedir bem se vê. Tudo tem o seu tempo. Apenas queremos pedir uma coisa e explicar outra. Vocês vivem aqui como Deus é servido, mas todos em harmonia. Se não se tem muito, mas se tem o necessário. A gente vive feliz e se houvesse mais filhos seria do mesmo jeito. Gostaríamos que ninguém saísse. Mas isso é difícil, quando já se está moça ou rapaz. E então, só pedimos uma coisa. Escolham, não pela cara, mas pela raça, gente de boa família. Pelo menos o erro será menor. E não custa consultar pai e mãe. A gente tem mais experiência, riqueza também não é qualidade. É lógico que sendo bom e afortunado, será melhor, mas não é o essencial. Casamento quando não da certo é a pior desgraça que pode acontecer a uma pessoa. Um casamento certo é assim como uma planta sem espinhos. Errado, é uma touceira de urtiga. Incomoda a vida toda. É preciso escolher pela raça, para não se pegar com um cavalo chotão ou uma mula manhosa...
* Este conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.