segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

GALDINO CASCAVEL


GALDINO CASCAVEL*

Bem ao centro da Chapada da Borborema, região dos Cariris Velhos, no meio da Caatinga, uma casinha de taipa que parecia mais uma tapera. Para chegar até lá só existiam veredas pouco trilhadas. Ninguém gostava de pessoas por ali. Era segundo se dizia, um ninho de cobras venenosas. Era lá que morava sozinho, o velho Galdino, comedor afamado de cascavel, a cobra mais venenosa do Sertão. Não fazia roça. Nada plantava. Sua profissão era o fabrico manual de cordas de Caroá, que ia vender em várias cidades, nos dias de feira, sentado no chão, com uma dúzia ou mais de peças de corda. À tiracolo num bisaco encardido, onde trazia farinha e pequenos rolos de cascavel assada ou torrada. A meninada passava por longe, olhando-o com a curiosidade de vê-lo comer sua especialidade.
            Quando vendia o produto de seu artesanato rústico, botava o pé no caminho, já de volta, montado num jerico, o seu único possuído. Sozinho, como vivia metido no meio da caatinga silenciosa e agreste, não lhe preocupava o resto do mundo. Nunca se chegou, a saber, de sua vida anterior.
            Alguns pensavam em um retiro espontâneo, outros lhe atribuíram doidice e outros ainda achavam que era algum criminoso refugiado naquelas brenhas.
- Certamente matou muita gente ou pertenceu a algum bando de cangaceiros.  
Água para beber, trazia de longe, quando não chovia. A verdade é que levava uma vida tranqüila, socado naquelas lonjuras, onde nem se ouviam os galos do vizinho cantar. Sim, além do jumento de sua montaria, possuía uma cachorrinha rajada chamada Jararaca, sua companheira nas caçadas de tatu e cascavel. No faro de Jararaca, não escapava bicho.
            E o velho Galdino já sabia de longe o bicho que ela acuava, pelo ganido. Pelo dia, ainda cedo, colhia folhas de caroá na caatinga. À tarde e à noite, desfibrava (descortiçava) e fabricava cordas. Para isso possuía o seu “engenho”. Entretanto à tardinha, ao anoitecer e pela madrugada fazia a caçada de suas cobras prediletas. Contavam que só as matava no dia de prepará-las. Trazia-as para casa, amarrava-as com um laço frouxo e poder de reza. Dali não saia. Sabia mundrungas, o que o fazia ainda mais respeitado e temido.
            A casca do caroá era colocada por cima do telhado de sua choupana e em locais onde serviam de viveiros das “bichinhas”.
            Galdino Cascavel estava totalmente identificado com aquele sistema de vida. Era um favor que lhe faziam não pondo os pés em sua casa. Ninguém iria modificar os seus hábitos. Que o deixassem com sua especialidade. Fazia suas caçadas a qualquer hora. Dependia de dispor de tempo. Era sua melhor distração. Galdino gosta de andar pelas caatingas com a cachorrinha Jararaca farejando cobras, tatu ou qualquer outro bicho. Certamente não era fácil descobri uma cascavel enrodilhada. Tornava-se relativamente fácil quando descobria o rastro das bichinhas. Conhecia perfeitamente, a direção. A posição dos fragmentos vegetais sobre o solo lhe indicava o rumo certo. O resto era com o faro de sua cachorrinha Jararaca.
            Jararaca não se aproximava. Sabia o perigo que corria. Quando a localização tornava-se difícil, usava um espelho que logo refletia a “caça”.
            Seguindo o rastro da cobra cautelosamente, tinha quase certeza de encontrá-la. E costumava dizer – “Está no papo”. Muitas vezes o esconderijo era um velho buraco de tatu ou de formigueiro. Cavava-o ou então ficava vigilante nos dias seguintes, quando a bicha deveria sair à tardinha. Quando a cascavel não havia feito uma boa presa, sairia logo, mas se o havia feito, somente algum tempo depois da digestão. Mas não havia problema. Estava engordando. Conhecia a idade das cascavéis pelo número de enrugas ou guizos do maracá. Na época da parição, respeitava as fêmeas. Eram geralmente de doze a mais cascaveisinhas que iriam aumentar o rebanho, por cada parição. Além disso, tinha certo nojo de cobra choca.
            Um dos locais de caça de maior rendimento era o morro do urubu. Coberto de macambira e xiquexique, cheio de locas de pedras, oferecia condições especiais para moradia.
            Diziam que no morro moravam também grandes cobras de veado que pegava cabritos e até gente se facilitasse. Galdino Cascavel ansioso para pegar a menos uma. Teria carne seca para muito tempo. Mas sempre lhe faltou sorte. Contudo não abandonou a idéia de sempre esperar. Algumas pessoas afirmavam já ter visto.
            Um dia chegaria a sua vez. E como quem espera sempre alcança, o velho Galdino teve um dia satisfeito o seu desejo. Já voltava da caçada, quando deu com o rastro de uma saindo do morro. Rastro recente. E foi seguindo cuidadosamente. Poderia ser laçado e estaria perdido. Confiava na cachorrinha Jararaca que andava sempre na frente. Ouviu-a acuar. Foi-se chegando e encontrou o cobrão com um bodinho seguro. O bichinho tremia apavorado. Ainda não o havia laçado. Malhou-lhe o cacete, até que a bicha o soltou. Fazia pena ver o coitado com os olhos assustados, sabendo que iria morrer. Somente depois de algum tempo começou a andar, berrando a procura do rebanho.
             Cobrão. Dezoito palmos e meio. Arrastou-a para o rancho. Tirou-lhe o couro, rolou a bichona, mas, o sal era pouco para salgar tanta carne. Não havia outro jeito. Assaria sem salgar. Gostou da carne, embora um pouco mais dura do que a de cascavel. Também quantos anos deveriam ter aquele mostro. Secou o couro e levou à feira para vender. Apurou um bom dinheiro. Lamentava-se ser tão difícil de encontrá-las.
            Muitos anos depois de ter se metido no meio daquela caatinga desadorada, Galdino Cascavel, arranjou uma companheira. E correu a notícia:
            - Galdino Cascavel amancebou-se. Botou uma mulher dentro de casa. Foi medo de morrer sozinho. A velhota é igual a ele. Viver no meio das cobras e ter que come-las. Não pode deixar de ser doida.
             Mas não demorou muito. Deu no pé. E o velho Galdino ficou novamente só. Já havia passado dos cem anos e continuava no mesmo regime de vida. Não adoecia nem tinha dores reumáticas. A carne de cobra curava tudo dizia, com quase cento e quinze anos, ainda lá estava sentado no meio da feira de Esperança, vendendo suas peças de corda de caroá e comendo cascavel assada.
            - Olha, fulano, aquele ali é o Galdino Cascavel. Cento e quinze anos nos costados.  Naquele bisaco, tem cobra assada e farinha. É o que come.
            Hoje muita gente come cobra, mas, naqueles tempos era uma novidade, principalmente a cobra mais venenosa do sertão. Era uma especialidade rara.
            Muita coisa contava-se daquele homem excepcional, que se tornou conhecido somente depois de espalhada à notícia de que comia cascavel. E como teria começado essa especialidade. Foi o velho Damião quem contou. Galdino era uma criatura como outra qualquer. Certo dia, durante uma bebedeira entre companheiros, mataram uma cascavel que teve a má sorte de aparecer. A pinga já andava alta. Quiseram apostar com quem comesse a cobra assada. Galdino topou a aposta. O apostador daria o salário da semana de trabalho. E a cobrar foi ao fogo com couro e tudo, menos a cabeça. E Galdino comeu-a tomando mais pinga. Gostou da carne e comeu mais do que esperavam. Cumprida a aposta o sujeito não quis pagar. Era brincadeira. E no paga, não paga, a faca de Galdino saiu da banhinha e antes que houvesse tempo para a defesa já o cabra estava no chão.
            Galdino fugiu. Caiu na caatinga. O patrão do defunto deu ordem para pegá-lo de qualquer forma, o que nunca aconteceu. Acuado no meio da caatinga distante, Galdino não iria morrer de fome e comia o que lhe aparecesse. Com exceção de urubu. Assim também já era demais. E como havia gostado da carne maciça de cascavel, não lhe escapava uma. Também nunca mais bebera. O tempero era sal e um bom molho de pimenta malagueta.
            Morreu de velho. Não de doença. O coração cansou e foi só. Sua longevidade devia-se à tranqüilidade em que vivia e ao clima saudável das caatingas da Serra da Borborema.
30 de Janeiro de 1986
João Henriques da Silva (In Memoriam) 


Notas: Esse personagem, Galdino Cascavel, aparece também em narrativas de José Américo de Almeida e de José Lins do Rego.
*20 de Setembro de 1901 - 16 de Abril de 2003



                                               
* Este conto pertence ao livro "Vidas Nordestinas", no prelo.            

VESTIBULAR DA UNIVERSIDADE DA BAHIA COBROU DOS CANDIDATOS A INTERPRETAÇÃO DO SEGUINTE TRECHO DO POEMA DE CAMÕES


“AMOR É FOGO QUE ARDE SEM SE VER,
É FERIDA QUE DÓI E NÃO SE SENTE,
É UM CONTENTAMENTO DESCONTENTE,
DOR QUE DESATINA SEM DOER”

UMA VESTIBULANDA DE 16 ANOS DEU A SEGUINTE INTERPRETAÇÃO:

“AH CAMÕES!
SE VIVESSES HOJE EM DIA,
TOMAVAS UNS ANTIPIRÉTICOS,
UNS QUANTOS ANALGÉSICOS,
E PROZAC PARA A DEPRESSÃO.
COMPRAVAS UM COMPUTADOR,
CONSULTAVAS A INTERNET, E DESCOBRIRIAS QUE
ESSAS DORES QUE SENTIAS,
ESSES CALORES QUE TE ABRASAVAM,
ESSAS MUDANÇAS DE HUMOR REPENTINAS, ESSES DESATINOS SEM NEXO,
NAS ERAM FERIDAS DE AMOR,
MAS SOMENTE FALTA DE SEXO”
A candidata foi aprovada com nota 10.
Foi a primeira vez que, ao longo de mais de 500 anos, alguém desconfiou que o problema de Camões era falta de mulher...



EU LEVO OU DEIXO?

Diz a lenda que Rui Barbosa um dia ao chegar em casa, ouviu um barulho estranho vindo do seu quintal.
Chegando lá, constatou haver um ladrão tentando levar seus patos de criação.
Aproximou-se vagarosamente do individuo e, surpreendeu-o ao tentar pular o muro com seus amados patos.
Disse-lhe:
- Oh! Bucéfalo anácrono! Não o interpelo pelo valor intrínseco dos bípedes palmípedes, mas sim pelo ato vil e sorrateiro de profanares o recôndito da minha habitação, levando meus ovíparos à sorrelfa e à socapa. Se fazes isso por necessidade, transijo; mas se é para zombares da minha elevada prosopopéia de cidadão digno e honrado, dar-te-ei com minha bengala fosfórica bem no alto da tua sinagoga, e o farei com tal ímpeto que te reduzirei à qüinquagésima potencia que o vulgo denomina nada.
E o ladrão completamente confuso, diz:
- Dotô, eu Levo ou deixo os patos?

sábado, 18 de fevereiro de 2012

LAGOA DE PEDRA

Grijalva Maracajá Henriques¹
Historiador
maracajag@hotmail.com



LAGOA DE PEDRA
TIMBAÚBA DO GURJÃO – PARAIBA
Local onde Antonio Silvino matou o tenente Maurício



Nasci ouvindo minha mãe contar esta história, tantas vezes, que já tinha plasmada a visão daquela “batalha” dentro da minha cabeça de criança, e que hoje, já metido a velho, resolvi desvendar esta epopéia caririzeira.
Lagoa de Pedra ficava dentro de uma propriedade que pertencia ao meu avô materno, Raulino de Medeiros Maracajá (Major Cirurgião da 11ª. Brigada de Infantaria da Guarda Nacional - 1910), hoje desmembrada da antiga fazenda Nova Vista no município de Gurjão-Paraíba.
Lá pelos idos do século passado, a fazenda acima referida era pouso do cangaceiro Antonio Silvino, como também das tropas que o perseguiam.
Num certo dia, de repente, aparece no terreiro da casa uns dois “cabras” que vinham à frente farejar a presença de inimigos e anunciar a presença do seu comandante o Príncipe dos Cangaceiros, que solicitava um refrigério para sua eterna caminhada pelo árido sertão.
Na impossibilidade de dizer um não, meu avô, pôs a sua vivenda à disposição do guerrilheiro matuto.
Chegava e assumia com ordem, disciplina e respeito. Pedia arrancho (com direito apenas, água e comida) sentava-se a mesa com os donos da casa e alguns dos seus lugares-tenentes, o resto: uns ficavam de atalaia e os outros esperavam para a segunda mesa.
Minha avó possuía, junto a um prédio, onde funcionava uma máquina à vapor (locomóvel) e um pequeno engenho de rapadura,  uma bodega, onde vendia aos moradores da fazenda e aos poucos vizinhos, atavios e outros mangaios para as emergências do dia a dia: botões, linhas, agulhas, cortes de tecidos baratos, querosene Jacaré, sabão, velas, fósforos, rapadura, carne de charque, bacalhau, queijo de coalho feito em prensa de miolo de aroeira, manteiga da terra, pinicos, e o diabo a quatro.

Após saciarem a fome e a sede, iam ao armarinho, de dois em dois, pegavam o que necessitavam e voltavam a casa sede, pagando honestamente tudo o que tinham tirado.
O valente cangaceiro, de barriga cheia, sentava-se numa cadeira muito simples feita de madeira, com assento de tecido grosso listrado, chamada espreguiçadeira (ainda existente na mesma propriedade, hoje de Juarez e Nise Maracajá, netos do velho Raulino). Onde ele cochilava, tendo sempre uma das minhas tias ou mesmo minha mãe, ao joelho, não sei se por cortesia ou para sua proteção contra qualquer traição de alguém de dentro da casa.
Naquele dia chamou meu avô e disse:
- Gato! O danado do tenente Maurício vem aí com os macacos no meu rastro. Sei que logo mais aparece por aqui, diga que não vá atrás de mim, pois vou me entrincheirar lá na Lagoa de Pedra, e hoje mesmo, desgraço com ele.
Dito e feito. Não demorou muito, chegou à volante chefiado pelo alferes João Maurício da Costa, fazendo uma algazarra dos diabos, que apesar de serem militares, não mantinha tanta disciplina como os cangaceiros.
Recebeu o recado do velho Maracajá, se abasteceu do que queria e antegozando uma vitória disse: - Vai ver hoje quem é que morre se não é aquele bandido!
Meu avô, o acompanhou até certa parte do caminho, claro, forçosamente e voltou cabisbaixo e triste, pois sabia que dentro de suas terras ia acontecer uma desgraça, além das que a seca já vinha fazendo ano a ano.
Sentou-se na dita espreguiçadeira que colocou no terraço e ficou com os olhos semicerrados e as “orelhas em pé”, aguardando qualquer som que não fosse das rolinhas fogo-pagou que nesses dias viviam bicando e namorando pelo terreiro pedregoso ou o martelar do seu ferreiro de estimação numa gaiola acima de sua cabeça.
Até cochilou, pois o calor no começo da tarde dava uma moleza danado no cabra depois da bóia. Pulou da cadeira ao ouvir os primeiros estampidos meio abafados, e distantes. O local marcado para a peleja ficava a três ou quatro quilômetros de distância.
Selou o cavalo Gaúcho, e danou-se pra lá, andou pelo menos vinte minutos, devagar e com cuidado, pois não sabia o que iria encontrar pela frente. O que viu foi de estarrecer e partir qualquer coração: um cabra do bando, ainda batendo com uma pedra na cabeça do tenente Maurício, e um soldado colocando um fósforo aceso na mão de um colega nos cirros da morte. O desmantelo era grande, rapidamente tudo logo se acalmou; os homens do Silvino, feridos ou não, caíram dentro da caatinga e desapareceram, ficando apenas alguns mortos e feridos gravemente. Os soldados sem o seu valente comandante pareciam perdidos como cego em tiroteio. Fora uma derrota imensa a emboscada!
O terreno é uma verdadeira pedreira dentro de um baixio, onde, nos tempos chuvosos, vira uma lagoa, e quando o sol abrasador chupa todas suas águas, vira um local cheio de rachaduras e de difícil caminhar.
Vendo que não podia ajudar os feridos, meu avô, avisou que ia até a IFOCS (Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas, pertencente ao Ministério da Agricultura, hoje Fazenda Pendência, pertencendo ao Governo do Estado), pedir ajuda através de um telefone de manivela, à delegacia da cidade de Soledade.
Depois de mais ou menos um século do ocorrido, eu e o Dr. Antão Ouriques de Farias, historiador que mora atualmente em São Paulo, e que de férias, faz passeios pelo Cariri Velho, fomos redescobrir o local. Passamos quase um dia por lá, olhando as pedras, as locas, tentando sentir ou ouvir algum gemido de alma penada ou zumbido de bala de rifle 44. Procurávamos qualquer coisa: alguma casca de bala, mancha de sangue nas pedras ou algum indício de gente por lá. O vazio era total, parecia mesmo um cemitério.








Fotos do autor e de antão Ouriques de farias, redescobrindo o local da batalha entre A. Silvino e Ten. Mauricio




Rita Cantalice atual proprietária da Lagoa de Pedra, num ano bom de inverno.



O HOMEM QUE TAPEOU ANTONIO SILVINO







Era uma vez... Dois primos, Inácio e Severino, brejeiros dos bons, que viajavam semanas a fio, de vinte a trinta quilômetros por dias com os burros carregados, só parando para alimentação frugal e à noite para o cochilo mal acomodado, sempre debaixo de árvores que dessem uma boa sombra, e os protegessem do sereno da noite, como os Juazeiros, Mulungus, Trapiazeiros, Umbuzeiros e Craibeiras pelo Agreste Nordestino: Brejo, Curimataú, Seridó, Cariri e Sertão com uma tropa de burros: dois de sela e doze animais de carga, com seus arreios aonde dependurados iam à malotagem, bruacas ou os sacos com as mercadorias, sempre cobertas com lonas, fora a burra madrinha, velha e sabida que encabeçava e escolhia os caminhos melhores, sempre enfeitada com fitas e um sininho característico ou mesmo um chocalho com um som bem peculiar, onde os outros animais a seguiam quer de dia ou à noite; desses burros, dois eram animais com a troçada do dia a dia: comida, redes, água, capote feito de algodão grosso, onde matava o frio e os protegias da chuvas (poncho),  panelas, fumo de corda, cachaça, trempe de ferro para cozinhar, lona, sabão e o diabo a sete. A comida se resumia, quase que carne de charque, ou carne seca (chamada de sol) farinha de mandioca, queijo de coalho, toucinho, sal, café, açúcar, arroz, temperos, feijão dos dois tipos: o mulatinho e o de corda, xerém de milho e um tipo mais fino para fazer cuscuz.
Saiam sempre de Riacho Fundo, fazenda localizada entre Esperança e Areial na Paraíba, Próxima da fazenda Arara do meu avô Manoel Henriques (Virgolino) da silva.
Viviam nas propriedades de seus familiares, onde há muito se produzia feijão de arranca (mulatinho), fumo, que era transformado em “fumo de rolo”, pronto para ser usado, erva doce, batatinha inglesa, agave, café e mais uma finidade de alimentos para sua sobrevivência e para a comercialização.
Muitos tropeiros também partiam do Brejo Paraibano, levando estas mercadorias como também o açúcar mascavo, a cachaça e a rapadura, produzida nos engenhos do Brejo.
 No entanto, esses dois meus parentes, há muito tempo só negociavam com feijão, café e fumo, lá pras bandas de Parelhas, Ouro Branco, Macaíba e adjacências no Rio Grande do Norte. Numa dessas viagens, levaram apenas feijão e fumo de corda, não conseguiram vender o feijão, pois naquele ano o inverno fora bom e quase todo mundo tinha de sobra para comer e vender. Venderam o fumo ligeiro e Severino se decidiu tentar vender os sacos de feijão mulatinho na cidade de Natal-RN.
Disse para o Inácio – Vá levar os burros descarregados pra casa, avise a família meu destino e venha se encontrar comigo por lá.
Assim o fez. Um seguiu com seis burros carregados e o outro desceu em direção a Esperança para fazer o que haviam combinado.

Inácio logo que pode, empreendeu viagem, num burro bom, meeiro que o cabra chegava a cochilar em cima da sela. Num dia e meio espirrou na capital Riograndense, foi direto para o local marcado. Ficou meio contrariado por não encontrá-lo, danou-se a procurar pelos arrabaldes: locais onde sempre se reuniam os tropeiros, depois de desocupados, como ainda se ver hoje nos dias de feiras nas cidades do interior, (sempre um campo de futebol, em terreno abandonado). Bares, bodegas, lupanares, casas de jogos, pensões baratas, currais onde sempre os animais esperavam, pacientemente, pelos donos, a um preço módico, com direito apenas a água e a garantia de que de lá ninguém os roubariam.
Passou-se um dia e nada do primo. Tirou onda de detetive. Começou a fazer perguntas e nada de notícias, já aperreado, passado quase uma semana, mandou avisar pra família do acontecido e que iria continuar nas buscas. Era um mistério medonho. O homem desaparecera sem deixar rastros. Como o primo tinha vontade de conhecer o norte, ele logo pensou que esse seria o rumo que tomara, para vender o danado do feijão, achando que por ali não havia encontrado negócio, seguiu viagem, e na primeira cidade, teve finalmente notícias de um tropeiro com seus burros. Era só esta notícia que tivera, podia ser mentira mais também verdade, resolveu tirar suas dúvidas, pois já faziam mais de duas semanas da separação dos dois. Seguiu em frente e nada de alcançá-lo.
Notícia aqui e notícia acolá, depois de três meses chegou à cidade de Sena Madoreira no Acre, local onde estava havendo migração de nordestinos para trabalhar com a extração da borracha, ficou por lá, sempre procurando o primo e trabalhando juntamente com aquela multidão de desgarrados da sorte. Lutou durante uns três a quatro anos até que resolveu voltar sem o parente, - o mato havia aberto e fechado e engolido o homem – e, como já havia amealhado um bom dinheiro. Fez finca pé de lá e em pouco tempo chegava ao seu velho Brejo, com o coração partido com o sumiço do amigo. Não sabia como se apresentar e narrar aos familiares do desaparecido. Havia de fato enviado cartas, mas falar de cara a cara era outra coisa, olhar nos olhos dos pais matutos e dizer que seu filho não existia era outra coisa mais dura de enfrentar.
Trazia consigo bastante dinheiro e muitas armas, frutos do seu trabalho como seringueiro.
A fama de “rico” logo chegou aos ouvidos de muita gente, inclusive de grupos de cangaceiros, que naquela época perambulavam entre o Brejo e o Cariri Paraibano como: Antonio Silvino, João de Banda, Nêgo Zé Luiz de Queimadas, João Pichaco e tantos outros desocupados.
Um dia lhe contaram que Antônio Silvino e João de Banda vinham tomar o dinheiro e as armas que possuía. Mudou-se da propriedade onde vivia e foi pra bandas de Pocinhos numa fazenda chamada Amaro. Enterrou as referidas armas e escondeu o dinheiro suado que havia conseguindo na luta do ouro branco e contra a malária (impaludismo), no Norte do País, na cidade de Sena Madureira no Acre. Dormia de dia e vigiava de noite, uma bela noite chegou Silvino com sua tropa, cutucaram tudo, reviraram todos os caixotes da casa fizeram ameaças a uns moradores velhos, mataram de tiros várias galinhas e nada de dinheiro e armas.
O danado do bicho também era sabido e jurou que Antônio Silvino não tomaria seus anos de trabalho.
Mudou-se para outra propriedade de nome Algodão perto de Soledade PB; a velha raposa logo descobriu o seu paradeiro e foi bater lá, mas o cabra dizia que “seguro morreu de velho e prevenido ainda estava vivo”, procurou ainda mais se esconder e despistar os cabras que viviam envenenados por dinheiro e armas.
Cada vez mais os cangaceiros ficavam com raiva, por não achar o que não era dele e desta vez, Antonio Silvino, fez o que não era seu costume. Inácio havia ido a fazenda Arara providenciar um enxoval de um sobrinho que havia nascido deixando um menino tomando conta da casa.        
Antonio Silvino emboscou-se com sua tropa atrás de umas pedras, esperando uma oportunidade; nisso viu o menino botar a cabeça fora de casa e aí pegou o molecote, vendo mais uma vez que havia dado o bote perdido, com raiva, deu uns riscos de punhal nos couros do pequeno vigia para que servissem de recado, matando dessa vez umas vacas que estavam no curral atrás da casa.
Inácio fugiu novamente, desta vez foi se embrenhar no lugar chamado Lajedo Vermelho, onde moravam outros parentes, perto da cidade de Soledade. Dizendo sempre que o que era dele ninguém botava a mão. Dessa vez quase que os cabras o pegavam, escapou por um triz. Aprendeu a lição e parou de se gabar e contar lorotas sobre quem era e o que tinha.
Nesse ínterim havia conhecido uma moça de nome Mônica do Município de Santa Luzia, formosa e rica, namorou, noivaram e casaram. Nunca mais Antônio Silvino teve notícias dele. Comprou duas fazendas: Canoa e Poço Salgado, juntamente com seu cunhado (Anísio) e com o dinheiro que tinha guardado montaram uma desencaroçadeira (bolandeira) e prensa de algodão, comprava e vendia gado, negociava com peles de animais num pequeno curtume que tinha na fazenda, possuía caminhões e um automóvel tornando-se um dos mais importantes chefes político e poderoso do lugar. (Ribinha). Antônio Silvino levou a breca, mas não pegou o seu dinheiro nem suas armas.
Muito tempo depois, voltava da feira, montado numa burra branca e pequena, mas que voavam pelas estradas pedregosas da região, enquanto seus filhos e meu tio vinham no caminhão com as mercadorias negociadas na feira, quando - já velho – subiu os degraus da casa e sua esposa abriu a porta contente e satisfeita, se surpreendeu com um cabra, que já o vinha seguindo, o atacando pelas costa, dando-lhe uma gravata com um punhal na mão, era um monstro de forte, dominando-o totalmente, a esposa tentou socorrê-lo, mas o satanás plantou-lhe um ponta-pé que a deixou desmaiada, nisso entra meu tio com seus dois primos e vendo aquela cena horrível, pegou uma trave de miolo de Aroeira que estava atrás da porta, danou na nuca do assaltante derrubando-o, o bicho ainda ficou ciscando no chão e imediatamente os outros tiraram suas facas e fizeram o resto do serviço. Mas, como era dia claro, engancharam o negrão pela gola da camisa no armador e esperaram que anoitecesse, para no silêncio e no escuro da madrugada, sem que ninguém visse, pudessem carregá-lo numa rede e jogá-lo num serrote que havia distante dali uma meia légua, num lugar quase inacessível.
Conto essa história dos meus parentes, hoje, porque já se passaram mais de cem anos e os personagens já não existem mais e nunca souberam quem era o bandido que tentou roubar o velho e cansado Brejeiro Inácio.




Local onde Antônio Silvino foi sepultado
Cemitério do Monte Santo
Campina Grande - PB