A
D E L A I D E*
João Henriques da
Silva
(In Memoriam
20/09/1901 – 16/04/2003)
Adelaide ficou sem mãe no dia que nasceu e foi
criada por uma tia viúva que não tivera filhos. Dois anos depois o pai casou-se
e Adelaide recebeu assim, uma madrasta que para ser agradável ao marido,
pretendeu reavê-la, sob mil promessas de que adorava crianças e de que filha
criada por tia seria mimada demais, e terminaria perdendo o amor ao pai.
Além disso, a menina deveria estar
dando trabalho à cunhada sem mais motivo. Mariano acreditou na sinceridade da
esposa e largou-se para a casa da irmã com o propósito de trazer Adelaide para
sua companhia. Não havia mais razão para deixa-la com aquela preocupação,
quando poderia ficar aliviada da tamanha responsabilidade. Adorava a filha e
deseja tê-la pertinho de si.
Dona Lucimar fez dura oposição e de
forma nenhuma largaria Adelaide, sua única e boa companhia. Não que lhe desse,
naturalmente, qualquer assistência, mas pela afetividade que ligava a pequena
Adelaide.
De outro lado, explicou a Cidrônio,
seu irmão, que era muito raro uma madrasta ter amor aos enteados,
principalmente a partir do nascimento do primeiro filho. E não queria que
Adelaide viesse a sofrer ingratidões e ela própria viesse a ser motivo de
discórdia entre o casal, o que era muito comum, em face de tratamento desigual;
enteada e filho legítimo.
- Afora isto, Cidrônio, Adelaide
está aqui onde poderás vê-la a qualquer momento e estou criando e educando como
tua filha. Não a quero tomar e creio que o futuro dela é mais auspicioso
ficando onde está.
- É verdade, mana, mas não quero desencantar
Almira que não fala noutra coisa e irá pensar que não confio nela.
- Olha Cidrônio, são essas santinhas
mesmo que se relavam mais tarde as piores madrastas. Não te dou Adelaide.
- Mas ela é minha filha e quero
tê-la comigo, embora sem saber como te agradecer tudo quanto fizeste até hoje
por Adelaide, mas não tenho alternativa. E estou certo que estou a fazer-te um
beneficio tirando-te este peso.
- Olha Cidrônio, estás muito
enganado comigo e com o teu ato. Adelaide faz parte da minha vida, dos meus
dias, horas e minutos. Será que não tem sensibilidade, não compreende que isto
é um capricho de tua mulher, ou talvez uma artimanha. Sou eu a mãe que Adelaide
conhece e é ela a filha que tenho. Sou tua irmã, vivo só e tu tens uma
companheira. Vamos fazer um teste. Pergunta a Adelaide de quem ela gosta mais.
De mim ou de ti, se quer ir ou não. E ela então ficará com quem mais ela
dedicar afeição.
- Não, mana, vim para levá-la e é o
que vou fazer. Já te disse que não desejo contrariar Almira que me tem sido tão
boa e carinhosa.
- Quer dizer, então, que irá levá-la
à força? Arrancá-la dos meus braços e de meu coração. Não compreendo como me
fazes isto. Levarás a força e para sofrer somente. Não te peço mais nada. Faça
o que fizeres, mas deixarás de ser meu irmão, pelo menos por muito tempo. Jamais
pensei que esse amor por Almira, fosse maior do que o amor por tua irmã e tua
filha. Vá leve e não me dês mais notícias. Tomarei outra criança para criar.
Não quero me sentir mais tão sozinha quanto antes. Espero que não te arrependas
e nem faças tua filhinha sofrer nas mãos de tua santa mulherzinha, do coração.
Tenho mais experiência da vida do
que tu. Conheço as voltas que o mundo dá e as curvas dos caminhos da vida. Já
vi muito bem o que é uma madrasta com filhos. Não divide o pão, nem os carinhos
igualmente. E tenho pena de ti e muito mais deste anjinho já há mais de dois
anos que me chama de mãe. Não quero vê-la sair. Também não irei juntar o que
lhe pertence. Vai, entra pega tudo que é dela, coloca em sua malinha. Só não
levarás o amor que tenho por Adelaide, nem as minhas saudades.
Isso ficará comigo. Deverias
conhecer melhor a raça de tua mulher e esperar mais para conhecê-la. Mas vai,
vai-te embora, antes que aumente o meu desespero. E esqueça tua mana Lucimar,
aquela que tomou nas mãos Adelaide na hora que ela viu a luz do dia e acariciou
e amou até hoje. Sabes que não tive filhos e que tanto queria. Mas não entendes
nada de amor maternal. Não me martirizes mais. Pega esta inocente que está aqui
agarradinha comigo e corre com ela para os braços de sua madrasta, egoísta e
quem sabe o que mais.
Cidrônio baixou a cabeça como se
estivesse pensando as escondidas, e de repente, entesou-se, tomou a filha nos
braços, acariciou-a, beijou-a e foi de volta sozinho. Sabia que, em casa,
encontraria uma tempestade, tais as recomendações que lhe fizera a mulher.
Não era para voltar sem Adelaide. E
de certa forma, a recomendação havia sido uma ordem. Não se casara para
brincadeira. Haviam de fazer o que ela queria e que se pensasse fazer.
Cidrônio, durante toda a volta reunia coragem e desculpa para justificar o
fracasso de sua ida a Santa Clara.
Era um apaixonado pela mulher e não queria
sensibilizá-la. O caminho foi encurtando, encurtando e quando menos pensou
estava a porta de casa, sem Adelaide e sem uma explicação satisfatória. A
mulher avistou-o ao longe e já antegozava a chegada da menina.
Mas à medida que Cidrônio se aproximava
ia esfriando. Não via a menina. E as veias do pescoço foram engrossando,
engrossando como se nelas estivesse concentrada sua decepção e sua raiva.
Cidrônio, nem tivera tempo de se
apear do cavalo e até parecia não ter forças para isso. Estava sucumbindo.
- Cadê a menina, Cidrônio?
- Que menina?
Estava tão atordoado que nem sabia
o que dizer. Foi se apeando lentamente e procurando articular justificativa.
- Que espécie de homem é você, que
vai buscar a própria filha e volta sem a menina. É incrível. Esperava com tanta
ansiedade e me chega de mão abanando. Será que eu tenho que ir buscá-la. Aliás,
deveria ter ido.
- Olha Almira, foi minha irmã que a
criou deste o primeiro dia e não pode se separar dela. - Lamentou-se de uma
maneira de doer até os ossos. - Vivia sozinha, criou amor pela menina e então
resolvi deixa-la lá.
- Sim. Eu então, que posso ficar sem
ela. Antes de me casar já pensava na menina. Tê-la com a gente, alegrando a
casa. Também fui logo me casar com um viúvo sentimental. Quem, afinal, é o pai
de Adelaide. És ou não tu, Cidrônio?
Cidrônio foi se arrependendo aos
poucos até que se indignou com aquele “fui me casar com um viúvo”. Havia ido
além de sua tolerância de marido.
- Pois é. Deixei-a lá e não irei mais
tentar trazê-la. E fique logo bem claro que nesta casa quem dá a ultima palavra
é o viúvo com quem você se casou. A filha é minha, e está otimamente em casa da
minha irmã. Deixei-a amarrada na saia dela como estivesse adivinhando ou
entendo que queria tirá-la de lá. Espero que você tenha filhos e os crie
também. Quanto a minha mana, ficara criando Adelaide. E sabe da última, vamos
por um ponto final no assunto.
- Mas...
- Mas, coisa nenhuma. Você vai ver
quanto vale um viúvo. Gosto de combinar as coisas, mas não aceito imposições.
Tome nota. E depois quem sabe se você se daria bem com minha filha. Ciúmes da
primeira mulher, inexperiência com crianças e talvez desarmonia entre nós. Não
suportaria ver minha filha magoada por qualquer forma e ela está muito feliz em
companhia da minha irmã e lá há de ficar. Cuidaremos de nossos filhos quando
aparecerem.
- E quem foi que lhe disse que quero
ter filhos. Prefiro não os ter.
- Ah! É assim. E então porque queria
minha Adelaide. Algum capricho seu apenas. Pois olha Almira, creio que um casal
sem filhos é como uma árvore sem flores sem frutos. Não era isto que pensava de
você quando noivamos e nos casamos. Desejava, sim, um lar com alegria e a graça
de filhos, enchendo a casa de alegria e estreitando cada vez mais os nossos
laços matrimoniais.
Francamente que estou estranhando
você, aquela moça que sorria para mim e me enchia de doces esperanças. Chego a
não acreditar no que você diz. Talvez seja simplesmente uma forma de
manifestação de revolta por não ter sido atendida. Será que estou certo?
Não adianta simulação para meu lado,
e muitas menos atitudes caprichosas. Será que teremos de voltar donde vimos. Cada
um para seu lado. Quem não quer ter filhos não se casa e por certo desconhece o
que é o amor.
Os filhos são uns traços de união
entre os pais. Um pouco de vida de cada um. Num lar com filhos não há tédio,
nem solidão. Sem filhos é como ponto final na existência de um casal, uma vida
sem perspectiva e sem horizontes. Se assim pensas e desejas, até quando durará
nossa união?
- Será que não percebeu que um casal
sem filhos não tem preocupações, dorme tranqüilo, viaja, passeia, diverte-se
livremente. Sai quando quer, volta quando entende de voltar. E os doze meses de
gravidez, a mulher deformada, com aquele barrigão pelos ares, pesadona,
enjoada. O homem fica por longe, achando até graça, com ótimo apetite, zombando
do tempo.
- São os preparativos para ser mãe,
a coisa mais bela do mundo. É como uma rosa que vai desabrochar ao amanhecer.
Agora se você não tem essas sensibilidades, Deus que a ampare. E você já pensou
uma velhice sem o carinho de filhos. Envelhecer sem ter quem nos pegue na mão,
sem a doçura dos netos chamando vovô e vovó. A solidão de um envelhecer dentro
de uma casa vazia. Francamente, Almira, você me espanta e desalenta. Parece-me
um galho seco á margem de um caminho sem sombra, com uma ave agourenta nela
pousada. Vou repetir a você uma pergunta, Almira. Por que queria Adelaide aqui.
O que pretendia fazer?
- Pensava, apenas em ser agradável a
você. Nada mais. Poderia ter sido um dos motivos do nosso casamento. Mas não
iria tratar com desprezo a menina.
- É bem certo o velho ditado que
Deus escreve certo por linhas tortas. Minha irmã tinha razão. Não pensei que
ela fosse tão arguta. Livrou minha filha dessa falta de amor maternal de uma
mulher sombria como você é. Mas vou prevenir você, Almira. Iremos ter filhos e vou
ensiná-la a ser mãe. Vá se preparando.
- Não é mais necessário. Já estou
grávida. Foi um descuido meu certamente. E na verdade já começo a sentir
mudanças de comportamento. Começo a sentir desejo de ter filho e certo amor por
essa frutinha verde de nosso amor.
- E porque não me dizia nada.
- Só e só para certificar-me se era
real o que começava a sentir. Achava que não seria possível conforma-me em ser
mãe, passar por tudo aquilo que já citei. Andar de barrigão empinado durante
seis ou mais meses, e ter que enfrentar as dores e o medo do parto. Mas, em vez
de sentir pavor, passei a sentir-me mais amorosa. Uma coisa esquisita que se
passa na gente. E percebi, então, que minha arrogância, não resistia à doçura
de ter um filho. Deixa, pois, Adelaide com tua irmã, que não teve filhos e tem
muito amor para dar.
Mas vou te pedir uma coisa: Dá-me um
filho todo ano... O amor de mãe supera quaisquer sacrifícios. O amor que se faz
da gente mãe, ensina a amar os filhos. Desde o momento que comecei a sentir dentro
de mim a frutazinha gerada pelo nosso amor, comecei também a perceber que
filhos são mesmo as cordas do coração. Verificou-se uma mudança radical em
minhas convicções. Parece até que se
espiritualizaram. Não me era mais possível fingir, tentar ser diferente das
outras mulheres.
- Mas, será mesmo para crer nessa
mudança?
- Verás quando vier o nosso
primeiro filho. Sinto que ele me aponta o verdadeiro caminho para ser mãe. Tenho
já pelo filhinho que está crescendo e vivendo dentro de mim, uma ternura
incomparável.
Almira, entretanto, desejava testar
os seus sentimentos maternais. E foi visitar a enteada, uma quase filha. Querer
bem a uma criança era como querer bem a todas elas. No entanto, constatou que
aquela deveria ser diferente das outras, pois não lhe sensibilizou e, viu nela
o amor de Cidrônio à outra mulher, e em quem ele deveria ainda pensar e ter suas
saudades. Era exatamente como pensava o marido. Mas embeveceu-se o amor que a
menina dedicava a sua segunda mãe. Teria cometido o seu maior erro se houvesse
tirado daquele aconchego maternal.
Adelaide, por sua vez, a via como um
objeto estranho e talvez indesejável. Não mostrava qualquer simpatia pela
madrasta. Por mais que Almira procurasse acariciá-la, mas ela se retraia.
O pai observava aquela tentativa de
relacionamento e, então, não tinha mais duvida de que a irmã teve razão em
resistir. E se aquela aversão espontânea, natural, de Adelaide fosse resultado
do influxo puramente pessoal de Almira.
E se ela estivesse simplesmente
fingindo com aquela encenação de querer muitos filhos e que na realidade fosse
uma revoltada por estar imprevistamente grávida. Quem estava no intimo dela
para saber?
E os meses o tempo levou e Almira
entregou as mãos da parteira, um garotão fornido e que era o retrato do pai.
Almira dizia que queria e havia de ser uma menina. Como isto já mostrou cara de
gavião de rapina. Não deixava de ser uma mulher caprichosa e egoísta.
Preparava enxoval para menina, pois
haveria de ser. Ela o queria. Amamentava o filho sem ódio e sem raiva, mas
sempre pensando que deveria ter sido como ela desejava uma meninazinha de olhos
verdes e parecida com a mãe.
- Este aí é a marca de um viúvo, do
viúvo com quem casas-te. E se brincares só sairá homem.
O pimpolho quando pegava o seio era
para tirar a última gota. Agarrava-se ao peito, como um bezerro faminto. E
chorava por mais.
- Olha. Não aguento Cidrônio, esse
teu filho. Guloso e ligeiro, capaz de sugar-me até o sangue. Se fosse uma
menina seria moderada e mais delicada com a mãe. Este só tem jeito no feijão
com farinha e carne de sol, ou no cuscuz com costelas de bode assada. Se
aparecer outro bichinho deste terei que dar de mamar numa vaca holandesa.
- É raça de viúvo Almira. Raça de
elefante. Tome muito café que dizem que é ótimo para aumentar o leite.
No ano seguinte a barriga de Almira
era dobrada e ele tinha receio quer fosse um parto duplo, duas meninas. Segundo
a experiência da parteira, não havia dúvida de que seria uma menina. E depois
de um ano e dois meses, chamaram, a parteira. E foi a surpresa. Nasceram dois.
- Duas meninas, não é minha comadre.
Como me sinto feliz e realizada.
- Sim, minha comadre. A parteira
queria evitar que a comadre viesse à quebra o resguardo.
- Está vendo ai, Cidrônio. Duas
meninas. Tirei minha desforra.
Cidrônio manteve a ilusão. - É
ganhaste dessa vez. Estou contente. Desejava também que fosse uma garotinha.
Vieram duas melhor ainda...
- Quero ver minhas filhas, comadre.
- Pois não.
- Que pena, tem feições de homem,
pelo que vejo, puxaram ao pai. Antes tivesse nascido homens, com essas
carinhas, de macho. Era melhor.
- As afeições vão mudar minha
comadre. Menino novo é assim mesmo. Os dois sempre empacotadinhos não permitia
que Almira visse o sexo. E quando pós para mamar, eram mais gulosos do que o
primeiro. Chegava a dar focinhada no seio. E Almira achava que eram mais
agressivos que o menino. E lamentava-se de ter tanto desejado meninas e
apareceram àquelas gêmeas de cara grossas, chamboqueironas, que jamais seriam
duas mocinhas bonitas.
No terceiro dia, foi assistir o
banho das duas e teve raiva e alegria ao mesmo tempo. Descobriu a tramenha.
Eram dois correiudos iguais ao primeiro. Estava justificada a ganância nas
mamadas e aquelas caras de machos. Era melhor assim. Raiva por ter sido
castigada e enganada. Zangou-se com a parteira que lhe havia mentido.
- Nada não, minha comadre. Não queria que
quebrasse o resguardo...
- E o que vou fazer com esses três
jumentinhos novos. Irão me devorar. Quero ver o Cidrônio que também me enganou.
- É mulher, isso acontece com quem
se casa com viúvo... E não são tão engraçadinhos. Alem disso não tem fastio.
Adoro vê-los mamar. Toma muito café forte para não faltar leite. Da próxima vez
serão duas mocinhas de teus sonhos, com duas carinhas de anjo.
- Vou dar carne de charque e
bacalhau a estas duas onças. Não há leite que chegue e olha como já estão os
meus seios quando acabam de mamar. Parecem duas mochilas vazias. Vou ficar
deformada. Pelo menos bota cabresto nestes dois jeguezinhos. E vou te dizer uma
coisa curta e certa. Não chegarás mais perto de mim, para não nascerem mais
dois cabeludos destes. Olha mesmo se isto é cara de gente...
- É o teu retrato, criatura!...
- Tu me pagarás.
Não se tocaram durante meses e
dias. Almira era caprichosa. Mas, arrependida chegou-se para perto:
- Cidrônio! Estou com tanta saudade de ti. E tu?
- Menina ou menino?
- Sei lá. O que vier...
- Um ou dois?
- Mesmo que venha uma dúzia...
*O conto pertence ao livro "Vidas Nordestinas", no prelo.